• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV – A atmosfera onírica

1. Onirismo

Como verificamos no capítulo anterior, a obra de Felisberto Hernández se caracteriza, em grande medida, pelo aprofundamento às memórias. Em meio ao frenesi do desfilar de memórias abundam os motivos oníricos envoltos por um clima de mistério e por um erotismo latente.

O onirismo se instala nas obras deste autor porque em suas narrativas não há uma recuperação puramente realista em relação ao que os narradores observam (ou melhor: relembram), entretanto, como vimos, tampouco há um apelo ao fantástico ou ao surreal que vise explicar e/ou solucionar as situações inusitadas: tudo o que ocorre é explicável dentro das excentricidades da vida cotidiana. O que ocorre nas obras deste autor, semelhante à natureza dos sonhos, é que com frequência espaços reais e imaginados se aproximam e se repelem sem, no entanto, se excluírem.

Refletindo sobre esse entrecruzamento de espaços, Jaime Alazraki destaca os componentes oníricos, suas imagens sem conexão, lentas, deixando evidente que nas narrativas o mundo dos sonhos faz fronteira com o da vigília e ambos os planos se entrecruzam e se confundem em um estilo fragmentário que flerta com a causalidade. Essa dinâmica permite que os relatos reproduzam voluntariamente a incoerência e a estranheza que geralmente habitam os enredos dos sonhos. Os contos deste autor, diz Alazraki, “están escritos como el inconsciente pergeña los sueños: cuando la

100 consciencia intenta comprenderlos les explica la lógica de la vigilia de la cual escaparon para nacer.”108

Alguns relatos parecem saturados de elementos próprios da simbologia dos sonhos, de modo que a narração transcorre na ordem do intangível, do impalpável, por conta do encadeamento de imagens raras e abstratas, o que a torna, em um primeiro momento, de difícil apreensão; outros se iniciam de modo sequencial e lógico, entretanto, apresentam muitas intercalações de sonhos e de digressões que o narrador nunca interpreta, apenas as insere no discorrer aparentemente como um acaso que lhe surge na consciência.

Esta atmosfera onírica se verifica por meio diversos procedimentos narrativos que se assemelham ao funcionamento dos sonhos: pela arbitrariedade das situações resgatadas como matéria narrativa, pelos “buracos” semânticos que o relato fragmentado e esgarçado apresenta, pela paralisia do sujeito frente à autonomia das memórias, pelo desdobramento da consciência dos narradores, pela forma natural em que se personificam os objetos, pelos cortes abruptos que produzem histórias sem desfecho, pelos inesperados mecanismos associativos que enxergam semelhanças em personagens e objetos absolutamente distintos e pelas constantes passagens entre o interno e o externo sem que se faça qualquer explicação ao leitor.

Além desses mecanismos, as situações misteriosas que nunca se resolvem, próprias da natureza dos sonhos, com frequência estão relacionadas a conteúdos eróticos. Em determinadas narrativas os narradores tecem suposições e devaneiam sobre os desejos e a atração que nutrem pelos

101 personagens que a memória recupera, outras vezes, estes desejos ficam apenas sugeridos, porém quase nunca concretizados. Nestas cenas, as descrições são lentas e se constituem por um detalhamento obsessivo, como se a narração detalhada compensasse a falta de concretude.

Tais elementos aparecem com maior contundência nas últimas publicações, como verificamos exemplarmente em La casa inundada: as ações inusitadas dos personagens provocam uma sensação de irrealidade, além da presença constante de um mistério que se alastra por todo o ambiente.

Neste relato um escritor de contos narra sua visita a uma senhora obesa e rica – Margarita – que realiza um estranho ritual de conservação de lembranças sobre o marido desaparecido. Ela manda construir mecanismos para inundar sua mansão de tempos em tempos e faz a água circular pelo interior de sua habitação, pois acredita que deve conservar suas memórias circulando na água.

O narrador, a princípio espantado com o ritual insólito e pela ausência de explicações por parte da dona da casa, apenas observa e participa. Entretanto, à medida que convive e compartilha dos hábitos de Margarita começa a se sentir atraído pela personalidade peculiar da suposta viúva e chega a imaginar- se casado com ela.

Ao final do relato, a senhora rica lhe explica que as cerimônias se referem à memória de seu marido desparecido e permite que o escritor relate tudo o que ouviu e observou em seus próximos contos, desde que, ao final,

102 insira a dedicatória: “Esta es la historia que Margarita le dedica a José. Esté vivo o esté muerto”109.

De modo semelhante ao que ocorre nesta narrativa, nas últimas publicações que incluem também os contos de Nadie encendía las lámparas e a narrativa Las Hortensias, a parte das diferenças de temas que abordam, os narradores possuem um olhar apurado que recusa a aparência inicial de tudo que lhes saltam aos olhos em busca de uma essência que não se revela de imediato.

Os protagonistas aqui procuram nos personagens que os rodeiam aquilo que paradoxalmente a aparência esconde: que sentimentos carregam, que relações possuem com os objetos de casa e que fatos do passado foram marcantes. O enredo que logram é uma realidade que se compõem de um contínuo feito de fragmentos, em que retalhos de sonhos e retalhos de vigília se mesclam de maneira deliberadamente arbitrária. O resultado é um universo em que as classificações e as divisões tornam-se impraticáveis.

2. La casa inundada: a desconstrução dos limites entre o sonho e a

Documentos relacionados