• Nenhum resultado encontrado

C ONSIDERAÇÕES F INAIS

No documento nataliaribeiromartins (páginas 132-136)

O V IGÁRIO , O C OMISSÁRIO E UMA DENÚNCIA QUE VEIO DAS M INAS

C ONSIDERAÇÕES F INAIS

Reunir os diversos fios da trajetória de um personagem, esta foi a proposta principal deste trabalho, que se encerra certo de que não formulou respostas definitivas, mas sim, ofereceu uma possibilidade de análise dentre tantas possíveis. Cumpre agora resgatar brevemente os movimentos de Diogo Nunes Henriques, um personagem único, que viveu sua condição dentro das possibilidades que encontrou para persistir. Nascido no seio de uma família cristã-nova, na vila portuguesa de Freixedas, deu início as suas atividades comerciais pelo interior de Portugal, servindo como comboieiro entre os portos lusitanos até cidades castelhanas. Residiu algum tempo na cidade fronteiriça de Lumbrales, em Castela, e lá serviu como intermediário para diversos negócios entre portugueses e espanhóis. Ainda, foi em Lumbrales que residiu com a sua mulher, Brites Henriques, e onde nasceram seus filhos, Manuel Nunes da Paz, que seguiu o caminho comercial como o pai, e Helena Nunes, falecida precocemente em um naufrágio na costa brasileira, na companhia de seu marido, Manuel Mendes.

Por volta do ano de 1697, Diogo Nunes Henriques resolveu deixar Castela e Portugal para buscar oportunidades comerciais mais promissoras. Da cidade do Porto foi para Salvador, na Bahia, e ali adquiriu um sítio na região de Subaé, perto de Cachoeira, e algumas cabeças de gado vacum, adentrando na rendável esfera da pecuária, que gerava lucros mais imediatos. Logo, outros conhecidos cristãos-novos também voltaram os seus olhos para as terras brasílicas e suas oportunidades e, sobretudo, apreciavam a ideia de se distanciarem dos olhos do Santo Ofício ao adentrarem nos vastos sertões da Colônia. Diogo se associou à vários destes agentes, fosse para a intermediação de seus negócios, adiantamento de crédito ou mesmo para a troca de produtos para a sua comercialização. Assim construía-se uma cadeia de relacionamentos conhecida como rede social, na qual consiste na criação de vínculos simbiônticos entre esses atores, que, individualmente, detinham algum recurso essencial para os demais, produzindo tais relações e associações. Esses comerciantes estendiam suas redes de negócio e garantiam o contato com uma vasta gama de agentes comercias de tipos variados, garantindo suas trocas por preços justos e o seu mercado.

Almejando novos horizontes, Diogo Nunes Henriques deixou Subaé e a Bahia por volta do ano de 1716, se estabelecendo em uma região afastada do centro urbano de Vila Rica conhecida como Curralinho, nas Minas. Dali continuou a importar o gado do sertão para revender nos açougues da região mineradora, além de adiantar créditos a uma gama de comerciantes da região, mediante juros previamente acordados. Ali se relacionou com cristãos-velhos de grandes cabedais, capitães da infantaria e outros agentes que participavam ativamente do alto escalão administrativo das Minas Gerais, sendo cooptado pelos mesmos para adentrar na esfera dos contratos. Em 1722, o cristão- novo arrematou o triênio dos dízimos de Vila Rica.

O fim do triênio dos contratos também trouxe maus ventos para Diogo Nunes Henriques e o seu grupo comercial. A partir de 1726, o Tribunal de Lisboa passou a procurar diversos cristãos-novos entre as regiões da Bahia e Minas Gerais por culpas de judaísmo. A partir das diversas prisões realizadas, cada agente deste grupo decidiu como reagiria frente a ameaça inquisitorial. Alguns rumaram para Lisboa, a fim de se apresentarem e diminuírem as chances de serem penalizados de forma severa. Outros investiram na mudança de vila ou fuga do Reino português. Mas a maioria persistiu na rotina, mesmo que, cada vez mais, quedavam-se acuados e com diversos elos rompidos na rede o qual estavam integrados, impossibilitados, muitas vezes, de seguirem com os seus negócios na forma costumeira. No dia vinte e quatro de novembro de 1728, os comissários do Santo Ofício alcançaram Diogo Nunes Henriques em sua casa no Curralinho. Com sessenta e dois anos de idade, o velho Henriques foi levado para Lisboa, onde responderia perante os inquisidores pelo crime de judaísmo, e permaneceu confinado em sua pequena cela nos Estaus por quase onze meses.

Em sua primeira confissão, Diogo entregou quarenta e três nomes ao inquisidor Teotônio da Fonseca Souto Maior. Como a maioria dos nomes arrolados por Diogo eram de pessoas ou já falecidas ou que já haviam passado pela mesa inquisitorial, a confissão foi considerada insuficiente e o réu foi admoestado diversas vezes para que entregasse outros nomes e confessasse seus erros. Percebendo que suas confissões nunca satisfariam os inquisidores, Diogo foi direto e alegou que nunca conseguiria dar o nome de todas as pessoas as quais se comunicou nos quarenta e cinco anos que seguiu professando a suposta lei mosaica. Com o corpo já mortificado pela idade e pela angústia da prisão, o velho Henriques deixava seu destino, ainda mais, nas mãos da Inquisição e pedia perdão por todos os seus erros, mesmo os que não lhe era possível vir

à memória. Com penas severas, Diogo celebrou seu auto-da-fé em outubro de 1729, ao lado de seu filho, Manuel Nunes da Paz, e de outros compadres de seu grupo comercial. Todos, cumpriram cárcere em Lisboa. Mais tarde, outros compadres foram presos e julgados. Teve seu sobrinho, Domingos Nunes, relaxado à justiça secular.

Arruinados, é certo apenas que o grupo permaneceu em Lisboa por tempo considerável. É difícil deduzir que fizeram de suas vidas após a passagem pelo Santo Ofício. Se conseguiram a licença para retornar à América portuguesa e seguiram com os seus negócios, ou se buscaram refúgio fora do Reino, como em Londres – onde a irmã de Diogo, Ana Mendes, havia se estabelecido pouco tempo antes do irmão ser preso –, é uma dúvida que permanece em aberto. O rastro de Henriques se perde, mas não antes sem legar um rastro precioso que permitiu a reconstrução de sua trajetória pelos caminhos do comércio atlântico e também do sistema de contratos do período. Mas, sobretudo, é pelo caminhar de Diogo Nunes Henriques entre o Reino e a Colônia que tornou-se possível resgatar e perceber uma centelha da adaptabilidade e capacidade do mesmo para absorver as diversas realidades das quais fez parte. Principalmente, demonstra como o “viver na Colônia” poderia assumir nuances tão diversas em relação a ordem estabelecida pelo Reino.

Apesar de sempre em movimento, esses cristãos-novos apresentam um pouco da esfera das sociabilidades nas negociações ultramarinas e os seus desdobramentos. Por meio da vivência destes atores foi possível descortinar um momento importante da expansão da região das Minas Gerais, que, no início do século XVIII passou a ser cobiçada pelos mais diversos indivíduos do Império português, fascinados pela ideia de enriquecer por meio do garimpo do ouro e diamantes ali descobertos. Dentro desta conjuntura, esses atores históricos e suas redes comerciais participaram ativamente na construção de um importante mercado interno que escoava dos portos e das regiões produtoras os artigos necessários para garantir o abastecimento de gêneros e também de escravos no interior do território – fator que selou a dependência da região mineradora do setor mercantil. Juntamente com esse processo de formação do mercado interno, também foram testemunhas da estruturação da administração portuguesa na região, desde o controle do levante emboaba em 1708-09, às políticas limitantes do comércio – resposta para os constantes descaminhos do metal amarelo e outras pedras preciosas –, até a elevação da região mineradora à condição de capitania das Minas Gerais, em 1720.

O sistema de contratos fez parte desse grande arcabouço administrativo português, sendo responsável por levar comerciantes locais a atingir grandes cabedais de força econômica. Diogo Nunes Henriques, homem de negócio, mercador de grosso trato, reuniu em si as características de um contratador dos setecentos e assim aceitou fazer parte deste seleto grupo. Embora Henriques e os seus compadres tenham alcançado algum destaque e prestígio econômico dentro daquela sociedade local, para o Santo Ofício tal influência não anulava o sangue judeu e suas predisposições à heresia. A indistinção social praticada na Colônia incomodou profundamente os inquisidores, que promoveram visitações esporádicas e o fortalecimento dos agentes inquisitoriais e suas redes de informação pelo território. Desta forma, o Santo Ofício garantiu que estes cristãos-novos, mesmo imbricados na elite local destes territórios, pudessem ser presos para responder por qualquer acusação de heresia que lhes fossem imputadas. Afinal, o Tribunal foi a instituição responsável por manter e guardar os princípios mais importantes daquela sociedade, tendo como grande responsabilidade punir exemplarmente todos aqueles que ousassem ferir os ideais católicos, os padrões estabelecidos e o costume.

Havia alguma saída para que Diogo Nunes Henriques e o seu grupo comercial não sucumbissem frente ao poder institucional da Inquisição? Sim. Como muitos outros cristãos-novos que nunca foram alcançados pelos tentáculos inquisitoriais, essas saídas existiam e poderiam ter sido exploradas por estes cristãos-novos. Porém, deve-se sempre ter em mente que as ações históricas também são fruto das escolhas individuais. Diogo Nunes Henriques e seus compadres escolheram construir a sua vida no Reino e em suas Colônias, cientes da existência de uma instituição que, a qualquer momento, poderia lhes arruinar todas as conquistas. A prisão não deve resumir a trajetória destes indivíduos em algum tipo de fracasso. Foi a autonomia destes sujeitos históricos que movimentou os processos políticos, sociais e econômicos do Antigo Regime português e refletiu diretamente no próprio ultramar. Persistiram, se tornaram importantes agentes comerciais, assimilados a uma sociedade local que tinha gosto por afirmar, dia após dia, sua singularidade frente à metrópole ao rejeitar os setores mais tradicionais, descortinando assim as múltiplas relações que compunham e mobilizavam a sociedade portuguesa e colonial.

A

NEXO

I

No documento nataliaribeiromartins (páginas 132-136)