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A ONTOLOGIA MÍNIMA DE DAVIDSON

No documento Mente e mundo natural em Donald Davidson (páginas 52-55)

2. O MONISMO FISICALISTA NÃO-REDUCIONISTA DE DONALD DAVIDSON DAVIDSON

2.1 A ONTOLOGIA MÍNIMA DE DAVIDSON

Seria impossível compreender o conceito de mental em Davidson sem levar em consideração que, na sua ontologia, os eventos são individuais (cf. DAVIDSON, 1969, p. 165): Davidson está comprometido com uma ontologia mínima, uma ontologia de eventos particulares, ou “concrete individuals” (IDEM, 1970a, p. 181), individuais concretos: tudo o que existe, em seu universo, são eventos particulares. Um evento é, para Davidson, um particular não repetível e colocado no tempo (IDEM, 1967a, p. 137; IDEM, 1970a, p. 181; IDEM, 1970b, p. 209), isto é, uma entidade individual localizável no tempo e no espaço através de coordenadas espaço-temporais, como a efetuação do Campeonato Mundial de futebol de 1958 na Suécia, como a erupção do Vesúvio em 79 depois de Cristo, como o nascimento ou a morte de uma pessoa (IDEM, 1970b, p. 209-210), ou como a proferência [utterance] histórica das palavras “O senhor Livingston, eu suponho”.

Esta alegação, ontológica e metafísica, de que há eventos, ocupa um lugar central na especulação de Davidson: sem ela, segundo Davidson, os nossos discursos comuns seriam incompreensíveis (IDEM, 1967b, p. 162). Mesmo em nosso discurso cotidiano, nos referimos constantemente a eventos particulares (IDEM, 1969, p. 166).

Os eventos podem ter, além de descrições físicas, efetuadas nos termos do vocabulário da ciência física, outras descrições que são igualmente legitimas do ponto de vista epistemológico. São, estas, descrições que utilizam o vocabulário mental, ou seja, que fazem referência às atitudes proposicionais com as quais tentamos explicar as ações humanas. Davidson afirma que não existem coisas como “mentes”, mas as pessoas possuem propriedades mentais, e isto quer dizer que a elas podem ser atribuídos certos predicados psicológicos que estão continuamente mudando (IDEM, 1994 p. 231). Isto é, outorgamos às outras pessoas processos de modificação de estados mentais, como determinadas crenças, desejos, intenções. Estas mudanças são eventos mentais, dos quais podemos dar descrições

através de relatos de atitudes proposicionais que incluem verbos como crer, esperar, saber, desejar, perceber, etc. Estas formas verbais são chamadas por Davidson de verbos mentais ou psicológicos, verbos que se encontram em frases cujos sujeitos se referem a pessoas, e que expressam atitudes proposicionais como “crer que”, “entender que”, “desejar que”, “esperar que”, “saber que”, “perceber que”, “dar-se conta de que”, “lembrar que” (IDEM, 1970b, p. 210). São exemplo disso: “notar que é hora de almoçar”, “ver que o vento está mudando”, “lembrar o nome da Camboja” (IDEM, 1994 p. 231).

Os eventos como particulares não são somente mudanças, como também estados. Neste sentido, os estados mentais são eventos. Para Davidson, os estados, os processos e os atributos mentais são eventos individuais (IDEM, 1970b, p. 210). Neste aspecto, os eventos mentais são similares a muitos outros gêneros de eventos (IDEM, 1969, p. 176): um evento mental, por exemplo, é análogo a um objeto material, como uma pedra ou uma caneta, por ser não repetível e por ser capaz de suportar muitas descrições diferentes. Porém, as descrições dos eventos mentais possuem, contrariamente às descrições dos objetos físicos, um conteúdo intencional e semântico.

O monismo do mental de Davidson não deve ser entendido no sentido de que o mental, ou o físico, seriam categorias ontológicas. O mental e o físico não são substâncias, mas dois modos de descrever eventos particulares. Davidson não confere dignidade metafísica às coisas ou aos objetos materiais. O que caracteriza a ontologia de Davidson é a particularidade dos eventos, e não sua materialidade ou não materialidade. Os eventos, como particulares, não são necessariamente materiais, mesmo que haja a possibilidade de descrevê-los de determinadas formas, por exemplo, como eventos físicos ou mentais (IDEM, 1970b, p. 210). O mesmo evento pode ser descrito como físico e como mental, assim como o mesmo objeto pode ser descrito como uma gravata e como um presente de Natal. Neste sentido, dizer que os eventos mentais são físicos, não é dizer que eles são não-mentais (IDEM, 1994, p. 231).

O que significa, então, dizer que um evento è mental, ou que um evento é físico? Davidson responde dizendo que, grosso modo, um evento é mental se e somente se possui uma descrição mental, e é físico se e somente se pode ser descrito segundo o vocabulário físico (IDEM, 1970b, p. 210).

O que caracteriza fundamentalmente um evento mental não é ser privado, subjetivo, ou imaterial, mas é, simplesmente, possuir uma descrição no vocabulário mental, uma descrição que contém pelo menos um verbo mental, como “crer”, “desejar”, “esperar”, etc. Um evento ou estado mental, para Davidson, pode ser descrito por meio de um relato de atitude proposicional, e é “intencional” num sentido próximo ao que Brentano13 dava a este termo (IBID., p. 211).

Um critério mais preciso para a individuação de um evento mental é enunciado por Davidson nos termos seguintes: individuamos um evento mental se e somente se é possível encontrar uma descrição no vocabulário mental que é verdadeira somente para aquele evento. Um evento mental “x” é individuado univocamente se há uma descrição mental que é verdadeira de “x” e somente de “x” (IBID.).

Os conteúdos mentais, segundo Davidson, são referencialmente opacos, não gozam da extensionalidade, pois os verbos mentais são completados por frases subordinadas em que as normais regras da substituição parecem falhar (IBID., p. 210). Neste sentido, “…podemos saber que um evento é a morte de Scott sem saber que é a morte do autor de Waverley” (IDEM, 1969, p.177). Isto é, a extensão do termo “Sir Walter Scott” coincide com a extensão do termo “O autor de Waverley”, pois ambos os termos se aplicam a um e ao mesmo indivíduo, a pessoa de Sir Walter Scott. Porém, a verdade da frase “Paulo crê que Sir Walter Scott é um grande escritor” não implica a verdade da frase “Paulo crê que o autor de Waverley é um grande escritor”, pois Paulo pode não saber que Sir Walter Scott é a mesma pessoa que escreveu Waverley. A opacidade referencial è a fonte de uma ulterior dificuldade na análise

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Franz Brentano descreve a intencionalidade afirmando que todo fenômeno psíquico é caracterizado pela referência a um conteúdo e a direção para um objeto, que não deve ser entendido como efetivamente existente. No amor algo é amado, no ódio algo é odiado, no desejo algo é desejado, etc. (cf. BRENTANO, 1997, p. 154-155).

das explicações que concernem aos eventos e aos conteúdos mentais, pois constitui uma razão para o fato de que uma explicação, assim como o fornecimento de razões, se adapta melhor às frases ou às proposições do que diretamente ao que as frases se referem. Assim, uma explicação do porque Scott morreu não é necessariamente uma explicação do porque o autor de Waverley morreu (IBID., p.171).

A metafísica mínima de Davidson tende a deflacionar a ontologia reducionista, que categoriza o mental através de tipos, propriedades, classes. Na sua defesa da ontologia monista e da anomalia do mental, o fisicalismo de Davidson nega que possa haver uma identidade entre propriedades mentais e físicas, ou entre tipos de estados mentais e tipos de estados físicos, mas afirma a identidade entre ocorrências (tokens), ou seja, entre eventos particulares: todo evento mental é idêntico a um evento físico (IDEM, 1994, p. 231).

A identidade entre ocorrências permite a redução ontológica evitando, ao mesmo tempo, a redução epistemológica. Davidson não aceita a existência de identidades entre as propriedades mentais e físicas, pois esta aceitação equivaleria a admitir a possibilidade da redução epistemologica do mental ao físico, isto é, equivaleria a negar a tese da anomalia do mental.

No documento Mente e mundo natural em Donald Davidson (páginas 52-55)