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A ontologia não: a ética é fundamental

daquela a que estamos habituados. Levinas faz uma inversão na declinação do pronome do nominativo para o acusativo. Essa inversão indica uma condição para o eu. Ele não poderá simplesmente dizer eu sou. O próprio agora é dizer: É-se. Na interpretação de Susin: “Dizer é- se aquivale a dizer que eu sou “se”, ou eu me sou, nominativo apropriando-se da condição acusativa básica onde há manifestação e exposição antes ainda do domínio”189.

Vê-se que não há um anúncio em primeiro lugar do eu. Afirma-se uma condição para se dizer eu. Primeiramente ele tem que expor-se, manifestar-se, ocupar um lugar e já desocupar esse lugar pela exposição. O “se” indica uma dimensão de profundidade, por um lado, e por outro, uma intimidade, que lhe garante uma afirmação de si mesmo, ter-se a si mesmo.

É nessa perspectiva que se tem a identidade: “A identidade não é uma relação inofensiva consigo mesmo, mas um estar acorrentado a si mesmo”190. O acorrentar-se a si mesmo é, na verdade, todo o esforço que cada eu tem que fazer para afirmar a particularidade do seu si e marcar a sua posição na existência como um ente determinado.

Podemos falar que o eu tem que entrar em luta consigo mesmo e tentar se distinguir de tudo aquilo que não é o “seu próprio”, o de si, sob pena de ser diluído na generalidade do ser anônimo.

Nesse sentido, ganha muita importância a possibilidade de poder se manifestar, expor- se ou não. Para manter-se como eu, é, então, necessário fazer de si mesmo uma tarefa. Nessa direção, a constituição do eu pode ser entendida como um esforço de ter cuidado para consigo mesmo. Em outras palavras, afirmar o si apresenta-se como algo que requer um cuidado, o que implica uma inflexão necessária do eu para consigo mesmo. Nessa inflexão, o eu experimenta a simplicidade da solidão. Ser é, nesse sentido, isolar-se mediante o existir. “Sou mônada, enquanto sou”191 .

1.5 A ontologia não: a ética é fundamental

189 SUSIN, Luiz Carlos. Levinas e a Reconstrução da Subjetividade. In:Veritas, v.37. nº147.set.1992. p. 368- 369.

190 LEVINAS, Emmanuel. El Tiempo y el Otro. p. 93. 191 Ibid, p. 81.

A reação levinasiana à ontologia de Heidegger é eminentemente crítica. A crítica pode ser explicitada na consideração de que ele representa a filosofia do ser. O ser preside a obra da verdade teórica e prática. Nada escapa à sua potência.

Por estar centrado no ser e pretender, prioritariamente, o sistema, a realidade moral e a ética aparecem, nesse modo de pensar, como um simples corolário. Além disso, quando a relação entre o mesmo e o outro entra no foco do pensamento, quando deixa de ser afirmação da supremacia do mesmo se reduz a uma relação impessoal, numa ordem universal, onde os entes são reduzidos à neutralidade da idéia, do ser, da conceituação. Esae juízo já revela a crítica à ontologia e à metafísica, que, tradicionalmente, se puseram como propugnadoras exclusivas da verdade. E, para Levinas, elas compõem-se como amplexo “do ser”, o que resulta na negação e coisificação da pessoa. Provavelmente é em razão disso que ele declara que “o ser é mal”192. Por que o ser é mal? Simplesmente, pelo fato de, no âmbito do ser, não se efetivar a possibilidade de o humano afirmar sua humanidade como ser transcendente, capaz de estabelecer relação ética como tal.

A tradição do pensamento ocidental operou a redução da transcendência à imanência e efetuou um nivelamento que se exprime nas categorias ontológicas da identidade e totalidade. E, uma vez constituída nesse logos, como pensar englobante, a filosofia tem se mostrado incapaz de operar com a alteridade.

As reflexões de Levinas apontam uma via de superação ou uma fratura e indicam uma nova noção de metafísica. Afirmam um modo de filosofar respeitoso da alteridade. Esse novo modo de filosofar admite que a relação "homem a homem", o "face-a-face" é a relação irredutível e a mais imediata e, por conseguinte, a origem do sentido, cerne da "ética como filosofia primeira". Isso quer indicar a anterioridade da experiência ética e a novidade absoluta do outro portador de uma linguagem, um rosto e um corpo.

O acolhimento do outro se converte na condição de possibilidade do pensar. O outro, uma vez acolhido, re-propõe a intelecção da realidade. Trata-se de uma intelecção que se deixa impregnar pela ética, evocada a partir do exterior, da alteridade.

A verdade e sua intelecção não se constituem apenas como tentativa de desvelamento do outro, mas o desvelamento e a penetração de toda a realidade iluminada, pressupõem a alteridade do outro e sua expressão, a palavra. É nesse sentido que a ética já é um modo de

ver. A ética como ótica torna-se a perspectiva a partir da qual as questões devem ser tratadas. Propõe-se um novo paradigma de pensar. No entanto, o que se denomina pensar não significa um pensar "sobre" e nem um pensar "a partir de", mas um pensar "por", como um cuidado zeloso pelo outro.

Esse modo de pensar não tem como tarefa essencial, o apreender, compreender, representar ou, mesmo, explicar o outro numa tentativa de dar-lhe um fundamento. Em vez de fundamento, sua preocupação básica é com outra relação. A relação pressupõe a existência de algo que não está no mesmo lugar, que não se encontra nivelado; que está num outro pólo, como separado. E, portanto, não está formando par, nem sintetizado numa totalidade. Então, enquanto pólos separados, propõe-se a relação que será relação do mesmo com o outro, como relação ética e alterativa.

Suas considerações se direcionam na perspectiva de negar a possibilidade de objetivação do outro, assim como a reciprocidade. Sugere repensar os limites da relação teórica e propõe a meta-física como um modo de pensamento. Suas análises são focadas no humano, capaz de relação metafísica, que, por sua vez, será explicitada no terreno da moral.

Na moral é onde se coloca a questão da obrigatoriedade para como o outro. Por isso, a sugestão do autor vai na direção de indicar que a ética se constitui numa mediação necessária, mesmo para se pensar numa relação com o divino. Em outras palavras, o acesso possível à "realidade" do divino, como outro transcendente, será possibilitado pelas relações éticas. O que significa dizer, por conseguinte, que a relação com o outro transcendente será um comportamento ético e não uma teoria, não uma tematização. A teologia só terá consistência se enraizar o sentido de seus conceitos na ética.

A crítica à ontologia também atinge o fazer teológico, enquanto este imaginou sempre que a teoria teológica seria uma forma válida de conhecimento do divino e não a relação entre os homens. Segundo ele, não poderá haver nenhum ‘conhecimento’ de Deus prescindindo da relação com os homens.

É possível inferir-se que as relações sociais, onde ocorrem a experiência do frente-a- frente, uma vez ordenada no reto comportamento ético, abrem um campo de inteligibilidade no qual é vislumbrada a "compreensão" do transcendente. O comportamento ético mais eminente, capaz de promover o ordenamento das relações e produzir a abertura, é, para ele, a prática da justiça. É nessa perspectiva que ganha toda a significação a afirmação de que a "ética é ótica".

A "visão" ética não coincide com uma operação ótica, que pode abarcar um objeto e torná-lo imanente ao sujeito que o vê. E, portanto, não reduz o que é outro a interioridade do mesmo. Se a ética é ótica, é porque a ética mesma tem uma "intenção transcendente". Em sua obra Totalidade e infinito, logo no prefácio ele escreve: "Se relações éticas devem levar — como este livro mostrará a transcendência ao seu termo, é porque o essencial da ética está na sua intenção transcendente e porque nem toda a intenção transcendente tem a estrutura noese — homem"193. Isso mostra que a visão do que trata é, fundamentalmente, diferente daquilo que, desde os gregos, tem sido compreendido como operação intelectual, ação de ver, observar, e que, posteriormente, assumiu o sentido de raciocinar, pensar, demonstrar, julgar, refletir, em suma, uma teoria.

A visão desenha uma outra estrutura, possibilitando uma relação com a transcendência que a mantém na sua radicalidade de transcendência. Se a visão não é teórica, e a obra de justiça configura essa visão, ela é, portanto, prática. Então, ele propõe a "prática" como um possível modo de relação com a transcendência. Entretanto, é forçoso ter presente que o autor não se declara avesso à teoria e nem propõe acentuar a oposição entre teoria e prática. Assim como a prática, há, para ele, um modo de procedimento teórico, que também pode ser sugerido como uma modalidade de relação com a transcendência. Sem confundir a teoria com a prática, ele as considera como formas de “transcendência metafísica”.

Totalidade e infinito explicita em que sentido a teoria pode garantir uma relação

alterativa com a transcendência metafísica e quando a nega. Em primeiro lugar, a teoria pode ser "uma relação tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhecido manisfestar-se, respeitando a sua alteridade e sem o marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento. Neste sentido, o desejo metafísico seria a essência da Teoria"194. Em segundo lugar, apresenta outra compreensão de teoria como "inteligência — logos do ser — ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conhecido que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se desvanece"195. Nesse segundo sentido, o sujeito cognoscente goza de uma liberdade de modo tal que nada pode limitá-lo.

No primeiro sentido de teoria, há a preocupação de crítica pela "inteligência dos seres”. E assim, com essa preocupação de crítica, pode-se descobrir o “dogmatismo e o arbítrio ingênuo da sua espontaneidade e pôr em questão a liberdade do exercício

193 LEVINAS, E. Totalidade e infinito: ensaios sobre exterioidade. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1980 p. 16. 194 Ibid, p. 29.

ontológico"196. Ora, se a ontologia como inteligência dos seres absorve o outro no mesmo, a teoria, como crítica, ao contrário, põe em questão o exercício do mesmo. Esse pôr em questão, todavia, não é possível ser efetivado levando-se em conta a espontaneidade do mesmo, porque assim ficaria ainda presa ao círculo da sua abrangência. Dizendo de um outro modo, o pôr em questão é algo que se faz pelo outro.

Trata-se, por conseguinte, de uma impugnação da livre espontaneidade do mesmo. Mas, o que promove essa impugnação? A ética, "o acolhimento do outro pelo mesmo, de outrem por mim, produz-se concretamente como impugnação do mesmo pelo outro, isto é, como a ética que cumpre a essência crítica do saber"197. Portanto, as considerações da noção de teoria apresentam uma dupla compreensão, uma, por assim dizer, negativa e outra, positiva. A negativa apresenta a teoria como inteligência ou logos do ser, que opera com um termo "médio neutro" e articula-se intrinsecamente com a ontologia que promove a liberdade e reduz o outro ao mesmo, negando, assim, a alteridade; produz-se, de fato, como “egologia”. A positiva apresenta-se como respeitosa da alteridade, por não reduzir o outro ao mesmo, mas propor a impugnação do arbítrio da liberdade, firmando-se como crítica, que se configura como ética.

Estabelece-se, com certeza, uma contraposição entre a ontologia, que articula conceitos, como o ser, o saber, o neutro, o anônimo e, portanto, possibilita a objetivação e, por outro lado, a metafísica, que articula os entes pessoais, onde é possível propor uma modalidade de relação ética.

Podemos reconhecer, ao lançar a metafísica no horizonte da moral, muito mais a influência de Kant do que a de Heidegger. As intuições de Kant facilitaram, significativamente, as análises de Levinas na consideração da metafísica. Kant tentou investigar a possibilidade de constituir a metafísica como ciência. Todavia, constatando a impossibilidade de juízos sintéticos a priori, no âmbito da metafísica, indica que ela não pode ser ciência teórica. Daí o seu passo para a razão prática. Como razão prática, pensou ser possível a metafísica, não como ciência teórica, mas como racionalidade moral. Do mesmo modo, Levinas admite que "a metafísica tem lugar nas relações éticas" [...] É as relações inter- humanas que compete, em metafísica, o papel que Kant atribuiu à experiência sensível no domínio do entendimento. É, enfim, a partir das relações morais que toda afirmação

196 Ibid. 197 Ibid.

metafísica ganha um sentido”198. Se, por um lado, a aproximação entre Levinas e Kant é importante, por outro, é imperioso apontar uma diferença radical entre os dois. Kant articula a moral com o princípio da emancipação ou autonomia fundados na racionalidade crítica, e, portanto, o ponto de partida está no sujeito, e assim a ação moral aparece guiada pela razão, Levinas, por seu turno, pensa que é o outro quem suscita o agir moral. O outro, ao apresentar- se como frágil e indigente, questiona a autonomia e exige justiça e responsabilidade infinita.

Na obrigação para com o outro, há um sentido que escapa às pretensões da racionalidade. Na responsabilidade para com o outro, há a possibilidade de a metafísica manter-se como exterioridade radical, de fato, como meta-física. Isso porque a responsabilidade comporta uma exigência de infinitude, de modo tal que nunca é suficiente para se poder dizer "cumpri todo o meu dever". "O infinito da responsabilidade não traduz a sua imensidade atual, mas um aumento da responsabilidade, à medida que ela se assume, os deveres alargam-se à medida que se cumprem"199.

198 LEVINAS, E. Totalidade e infinito: ensaios sobre exterioidade. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 65. 199 Ibid, p. 222.