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OPA! Um caixão de defunto e um quilo de ameixas

3 TEMPOS DESENCANTADOS NA CIDADE EM TRÂNSITO: A MOBILIDADE

3.4 OPA! Um caixão de defunto e um quilo de ameixas

Em outros contos de Caio Abreu também percebemos questionamentos em relação ao tempo padronizado, porém em diferentes contextos. Por exemplo, em “Pêra, Uva ou Maçã” (Morangos Mofados) encontramos um terapeuta e uma paciente interagindo num “setting terapêutico”. O terapeuta é guiado a todo instante pelo tempo cronológico através de constantes averiguações das horas em seu relógio suíço. Suas ações parecem se enquadrar dentro de um padrão mecanizado com que percebe sua paciente e a si mesmo:

Como sempre, penso, ao deixá-la passar, cabeça baixa, para sentar-se no mesmo lugar, segundas e quintas, dezessete horas: como sempre [...] Geralmente um cigarro dura entre cinco e dez minutos. Como eu, para tranqüilizá-la, tento gastar o máximo de tempo possível fazendo coisas como fechar a porta, puxar as calças, pensar em isqueiros e ecologias, quase sempre ela fala somente quando termino o primeiro cigarro. Quase sempre depois que pergunto com extremo cuidado, no que está pensando. Só então ela suspira ergue, os olhos, me olha de frente (ABREU, 1984, p.102-103).

No entanto, a paciente durante esta sessão em particular parece não se enquadrar dentro dos rígidos padrões de tempo que vigoram na sua interação com o terapeuta. Sua fala vai

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aos poucos “quebrando” esses padrões até chegar a um ápice no qual ela passa a se apropriar do seu próprio tempo. O pensamento da personagem parece ser mais veloz do que a seqüência cronológica das ações que realizou antes de ir para aquela sessão, de forma que as ações narradas não obedecem a uma seqüência linear de “fatos” (o que faz com que ela constantemente se autocorrija):

Quando dobrei a rua, daquele sobrado amarelo da esquina ia saindo um enterro – tira outro cigarro da bolsa – não, não foi assim. Antes, eu tinha comprado um quilo de ameixas. – Por um momento fica com dois cigarros nas mãos, um aceso, outro apagado. Depois acende um no outro. Antes, ontem, eu dormi até quase às três horas da tarde de hoje. Então minha mãe me chamou para vir aqui (ABREU, 1984, p.105).

Parece aqui que tudo acontece de forma simultânea para a cliente: tira dois cigarros da bolsa, o ontem se confunde com o hoje, o tempo da ação passada é esquecido em função da ação de agora.

Ao deparar-se com um quilo de ameixas vermelhas durante sua caminhada até o consultório do terapeuta, a personagem resolve comprá-las e depois acaba tropeçando num caixão de defunto. Aqui, paradoxalmente, o contato com um símbolo de “morte” (um caixão de defunto) traz à tona todo um contexto particular de “vida”. Isso vai ter amplas repercussões em seu mundo psíquico, fazendo-a descobrir que ela há muito tempo não vivia a sua alegria, sua sexualidade e juventude, que pareciam estar reprimidas.

O contato com este tempo vivido interiormente, quer seja pelo amor, a dor ou a morte, põe em suspensão o sujeito, como argumentamos anteriormente, mergulhando-o em sua condição finita, existencial, e deflagrando o tempo mais fluido e substancial que reitera a inteireza do Ser, diferentemente do tempo da contemporaneidade que corrói a fruição do tempo em seu valor contemplativo e em seu poder emancipatório.É justamente através de um rompimento com o clima rígido da terapia e da interação com o terapeuta que se dá a condição emancipatória da personagem:

E quando a gente precisa não importa que seja proibido. Querer? – interrompe-me como se eu estivesse feito uma pergunta. Mas eu não disse nada. – Querer a gente inventa. Eu apago o cigarro. E bocejo sem querer. – Ou não – ela diz levantando-se. Ela nunca levantou sem que eu dissesse bem-por-hoje-é-só, antes. (ABREU, 1984, p. 108).

No conto “Sem Ana, Blues” (Os dragões não conhecem o paraíso), o narrador também nos traz imagens acerca deste tempo experienciado e sobre possíveis formas de perceber

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o espaço dentro da circunstância específica de perda amorosa. O personagem-narrador, após uma grande “desilusão”, perde-se em uma completa imobilidade e espaços relativamente pequenos de circulação (como o corredor do apartamento) passam a significar grandes espaços a serem atravessados pelo personagem: “Porque no meio daquele momento entre a vodka e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade.” (ABREU, 1988, p. 43).

Numa tentativa de buscar se livrar da dor que o atormentava, o personagem de “Sem Ana, Blues” começa a entrar em contato com uma multiplicidade de opções que as grandes metrópoles oferecem como formas de anestesiar a dor do sujeito. Consumindo, renova seus móveis, copos de cristais, forno microondas, paga mulheres de programa para passar momentos de prazer. Começa a buscar dentro de um processo de “sobrevivência de um mínimo eu” (LASCH, 1987)20 uma infinidade de terapias, ioga, musculação, natação, alongamento, roupas de marca mais jovem (Zoomp, Mr Wonderful) sentindo-se depois de algum tempo “bonito, renovado, superado e liberado” (ABREU, 1988, p. 46) de modo que “o mundo foi-se tornando aos poucos um enorme leque de mil possibilidades além de Ana” (ABREU, 1988, p. 46). E com um ar sedutor de um “homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto [...]” (ABREU, 1988, p. 46).

Em certos momentos, quando chega do trabalho, por exemplo, e vê os inúmeros convites e possibilidades que lhe chegam através da secretária eletrônica, tem a sensação de que o momento da perda ainda continua ali como um “relógio enguiçado preso no mesmo momento – aquele” (ABREU, 1988, p. 46). Como se, no íntimo, ele tivesse ficado parado ali naquela sala segurando o bilhete de Ana, apesar de tanto buscar as alternativas que a cidade oferece, mas com um desejo enorme de sair daquela sensação de imobilidade causada pela perda de um grande amor.

A última imagem que o personagem-narrador nos oferece é, pois, de um retrato congelado no tempo (ele segurando o bilhete de Ana nas mãos no centro da sala) que lhe faz emergir um sentimento metaforicamente expressado como “[...] uma bolha opaca de sabão,

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Este conceito desenvolvido por Lash (1987) em seu livro “A Cultura do Narcisismo” enfoca o estado atual do sujeito contemporâneo que, através de um retorno da libido narcísica ao próprio eu, busca sobreviver diante do cenário pós-moderno de incertezas, do fim das utopias e dos ideais coletivos. O sentimento de vazio e falta de sentido faz com que o indivíduo narcisista busque se preservar diante deste cenário através de práticas culturais variadas que enaltecem o “eu”, tentando se livrar da incompletude e das dores existenciais eminentemente humanas pelo consumo idealizado, programas de crescimento pessoal, expansão da consciência ou pela exacerbação da vivência do aqui-agora.

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suspensa ali no centro da sala do apartamento [...]” (ABREU, 1988, p. 47). Tudo isso num meio urbano sedutor, marcado pelo signo do consumo e, ao mesmo tempo, produtor de uma imensa solidão, que apenas agrega as pessoas para o ato de compra, não produzindo encontros duradouros e significativos (BAUMAN, 2001). Diferentemente da personagem de Pêra, Uva ou Maçã que se emancipou quando se contrapôs ao tempo contemporâneo, o destino do personagem de “Sem, Ana Blues” é o de congelamento do tempo, pela não-vivência da dor em sua amplitude existencial, mas sim pela incursão sem medidas aos apelos externos do consumo tomado como um “mercado de anestesia” das dores existenciais.