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CAPÍTULO 1 – TEATRO DE ARENA O INÍCIO

1.4 Opinião e o sentimento de resistência pós-golpe de 64

No estudo Cultura e Política, 1964-1969 do livro o Pai de família e outros

estudos (2008), escrito entre os anos de 1969 e 1970, Roberto Schwarz avalia as

produções culturais de resistência dos anos iniciais do regime, em nota introdutória escrita posteriormente, em 1978. Com o devido afastamento histórico, o autor comenta sobre como a população brasileira recebeu o golpe militar:

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da vasta mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e recuou diante da possível guerra civil. Em consequência, a vitória da direita pôde tomar a costumeira forma de acerto entre generais. O povo, na ocasião, mobilizado, mas sem armas e organização própria, assistiu passivamente à troca de governos.

Em seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução das organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc. Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. (SCHWARZ, 2008, p. 71)

Uma das primeiras ações contra o setor cultural foi a aniquilação do Centro Popular de Cultura (CPC) que estava vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE) desde 1962. A “entidade estudantil teve seu prédio-sede [sic], na Praia Vermelha, esvaziado e dilapidado sob rajadas de tiros das forças policias.” (BETTI, 2013, p. 195). Meses depois da violenta represália, alguns ex-integrantes do CPC se articulam na criação do espetáculo musical Opinião, que estreou no Rio de Janeiro em 11 de dezembro, dando origem ao grupo homônimo10. Entre os criadores

10 Participavam do núcleo permanente do grupo Opinião: Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa, João das Neves, Paulo Pontes, Thereza Aragão, Denoy de Oliveira, Iris Dora Plá (Pichin Plá) e Ferreira Gullar.

estavam Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, assinando o roteiro; Augusto Boal, na direção; Dorival Caymmi, na direção musical, tendo o TA como coprodutor. Para Iná Camargo Costa:

A primeira resposta teatral ao golpe militar de abril de 1964 aconteceu em dezembro do mesmo ano com o Show Opinião, em si mesmo um feito inesquecível, sobretudo se pensarmos no que tinham sido as experiências do nosso teatro épico no Arena e no CPC. Escrito, como as peças do CPC, por um coletivo de autores primeiro dado relevante –, o espetáculo conta inúmeras histórias ao mesmo tempo, usando como recurso narrativo fundamental a música popular, ao mesmo tempo sujeito e objeto dos relatos. (COSTA, s/d)11

Roberto Bozzetti, no ensaio O golpe de 64 e a cultura: frustração, resistência

e consciência do estrago (2014), afirma que foi praticamente imediata a reação dos

setores culturais ao golpe de 1964:

Eram predominantemente jovens os artistas que, oriundos sobretudo do CPCs (Centro Populares de Cultura) da UNE, agora extintos, partiram param para a montagem de peças e de musicais nos quais a intenção de resistir aos desmandos do conservadorismo era flagrante: mas se não eram mais montagens em portões de fábrica e comunidades pobres, como no período pré-golpe, em torno desses grupos, reestruturados a partir dos despojos da militância que se extinguira, a resistência punha-se a falar agora para as classes médias urbanas nos espaços mais (ou menos) convencionais das salas de teatro. Permanecia ainda de alguma forma, a fé em uma aliança de classes, na qual o vetor popular definisse o nacional. (BOZZETTI, 2014, p. 31)

Entre os intérpretes de Opinião estavam Nara Leão – que depois foi substituída por Maria Bethânia –, João do Vale e Zé Kéti, que intercalavam canções com depoimentos pessoais dos três cantores, cada qual oriundo de uma região distinta do país, representantes de classes sociais também distintas. Com um forte tom crítico e com a valorização de signos populares brasileiros, o show utilizava-se de variados gêneros musicais brasileiros e tornou-se referência na chamada “música de protesto”. Segundo Kátia Paranhos:

11 Disponível em:

<https://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2012/07/arenacontazumbi_iccosta1.pdf>. Acesso em: 06 de jul. de 2015.

Podemos afirmar que o espetáculo não só focalizava como “mistificava” os chamados “novos lugares” de memória: o “morro” (favela + miséria + periferia dos grandes centros urbanos industrializados) e o “sertão” (populações famintas, o messianismo religioso e o coronelismo). Através da música, as interpretações e discussões a respeito dessas realidades fluíam no espetáculo, alternadas por depoimentos dos “atores” que compartilhavam, fora do palco, as mesmas dificuldades cantadas por eles, como nos casos de João do Vale (nordestino retirante) e Zé Kéti (morador de uma favela carioca). Já Nara Leão – conhecida como musa da bossa nova que personalizava a classe média -, assumia uma postura de engajamento e se posicionava de forma ativa e questionadora da realidade brasileira. (PARANHOS, 2011, p. 5)

Ao analisar o espetáculo, Fernando Marques (2014) classifica o modelo dramatúrgico do musical como textos-colagem, com estrutura semelhante a um mosaico. Esse tipo de texto requer uma atuação específica, pois são constituídos de procedimentos épicos, pelos quais “os atores entram e saem de suas personagens constantemente” (MARQUES, 2014, p. 68). Em que canções e narrativas se alternam com cenas, permitindo que os intérpretes opinassem – mesmo que de forma velada devido à censura – sobre questões sociais e políticas. A forma de composição de quadros independentes se assemelha aos estilos brasileiros mais populares como a comédia de costumes e o teatro de revista. Para Maria Sílvia Betti:

A estrutura do Show Opinião empreendia em cena uma síntese épica do país. A expressão de uma posição comum de resistência ao golpe era eficientemente alegorizada tanto pela colagem de textos, comentários, e ilustrações musicais, como pela presença cênica dos três artistas que a anunciavam de diversas formas e através de diferentes repertórios. (BETTI, 2013, p. 199)

Entre as memórias publicadas de Augusto Boal (2000) o diretor do musical relata, entre outras lembranças, sua impressão sobre os primeiros momentos do regime e suas inspirações na criação de Opinião:

O primeiro golpe não foi mortal. Prendiam, mas não havia sido instaurada a tortura como método usual de interrogatório: as forças armadas ainda apresentavam tênues vestígios de civilização. Os presos eram encarcerados dentro da lei que previa 50 dias de prisão sem motivo; tempo indefinido, motivo havendo.

Perseguidos voltavam, perdido o medo. Fui a São Paulo, meus colegas viajavam. Trabalhador, eu não parava quieto. Queria teatro. Responder à violência do golpe com a insolência de novas peças.

Voltei ao Rio pensando em novo espetáculo. [...] Tive uma ideia que me pareceu genial. Filmava-se, antes de 64, o cinema verdade: personagens interpretados pelas próprias pessoas inspiradoras da história. [...] Em outras palavras: documentários reais com aparência de ficção.

Se existia o cinema verdade, por que não o teatro verdade? (BOAL, 2000, p. 222)

Nota-se com a fala de Boal, que as opções estéticas selecionadas para a criação do musical estão completamente atreladas ao circunstancial político; as escolhas artísticas tomadas naquele período só foram possíveis devido às inquietações e ao desejo de resistência suscitados pelo golpe. Como estratégia para driblar a censura, os textos e canções se valiam da metáfora para repudiar o quadro político instaurado na ditadura de forma contestatória. Buscava-se provocar nos espectadores, além da cumplicidade, o sentimento de encorajamento e resistência diante das circunstâncias, e o público respondeu como esperado: “ante a impossibilidade de ação revolucionária imediata, cantar em prol de uma convicção política assumiu o papel de um ato concreto (mesmo que simbólico) de mobilização e resistência” (BETTI, 2013, p. 195). A experiência de Opinião fazia com que artistas e público compactuassem de pensamentos comuns, provocando uma sensação de mobilização e luta, mesmo que simbólica. Marco Napolitano comenta que a relação com a plateia:

[...] passa a incorporar a busca da “resistência-catarse”, sem negar, num primeiro momento, o binômio “emoção-consciência”. Se nesse espetáculo o público já era visto como “cúmplice” do que se passava no palco, a busca da catarse aproximava ainda mais o palco e a plateia. (NAPOLITANO, 2001, p. 110)

Opinião foi um sucesso de bilheteria, a receptividade do público foi enorme e

causa entusiasmo também na classe artística. O musical passou a ser encarado como “passo inicial para uma articulação de forças contra o regime” (BETTI, 2013, p. 195), o que faz nascer um sentimento de resistência tanto nos espectadores como nos fazedores da arte teatral, que entoavam juntos um grito de luta, de força simbólica, mas essencial para aquele momento de estado de exceção. Esse mesmo sentimento vai embalar as produções seguintes do TA, dirigidas por Boal que as classificou como a “etapa dos musicais”.