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A ordem dos argumentos no discurso

II PARTE A NOVA RETÓRICA

6. A ordem dos argumentos no discurso

Desde sempre foi reconhecida a necessidade de se ordenar as matérias a tratar a fim de mais facilmente se obter a adesão do auditório. Uma primeira forma de ordenação consiste em proceder à divisão do discurso em partes, segundo a específica função que cada uma delas nele exerce. Compreende-se assim que o discurso retórico tenha chegado a ser dividido em cinco partes: exórdio, narração, prova, refutação e recapitulação. Aristóteles, porém, fazendo notar que uma divisão tão pormenorizada seria válida apenas para um ou outro género oratório mas nunca para todos, considera que há somente duas partes que são indispensáveis: o enunciado da tese e os meios de a provar. Perelman, que parece acolher esta divisão de Aristóteles, recorre uma vez mais ao confronto com a demonstração para justificar a importância que se deve atribuir à ordenação dos argumentos. “Notemos, desde já, que numa demonstração puramente formal a ordem não tem importância; trata-se, com efeito, graças a uma inferência correcta, de transferir para os teoremas o valor da verdade, atribuída por hipótese, aos axiomas. Ao invés, quando se trata de argumentar, tendo em vista obter a adesão de um auditório, a ordem é importante. Com efeito, a ordem de apresentação dos argumentos modifica as condições da sua aceitação”. Mas o facto de se olhar a divisão do discurso em duas partes verdadeiramente essenciais, não significa que a primeira das divisões aqui citada – exórdio, narração, prova, refutação, recapitulação – se revele totalmente inútil em termos de ordenação dos argumentos, mas tão só, que não é susceptível de uma aplicação taxativa a todos os géneros oratórios. O exórdio, por exemplo, ainda que em princípio o seu objecto seja estranho à discussão propriamente dita, tem uma finalidade funcional muito precisa: suscitar a benevolência e o interesse do auditório e criar neste uma predisposição favorável ao respectivo orador. Simplesmente, o exórdio pode ser suprimido, por exemplo, se o orador já é bem conhecido do seu auditório, ou, como é cada vez mais vulgar, quando a sua apresentação seja confiada a outra pessoa, que poderá ser até o próprio presidente da sessão. De qualquer modo, sempre que tenha lugar, o exórdio incidirá sobre o orador, o auditório, o tema ou sobre o adversário. No que respeita ao orador e ao adversário, Aristóteles diz que, consoante os casos, o exórdio visa fazer desaparecer um preconceito desfavorável ao orador ou criar um preconceito desfavorável ao adversário. No primeiro caso, é indispensável que o orador comece por aí, pois não se escuta de bom grado alguém que se considera hostil ou desprezível; no segundo caso, ou seja, quando se

trata de enfraquecer o adversário, “o orador deve colocar os seus argumentos no fim do discurso, de modo a que os juizes se lembrem claramente da peroração”. O lugar de um argumento deverá pois ser determinado em função da sua finalidade e do meio mais eficaz de a alcançar. Se a narração dos factos é indispensável no processo judicial, já não o é muita vezes num discurso deliberativo, quando os ditos factos são perfeitamente conhecidos do auditório. Com efeito, seria totalmente contra-indicado proceder a uma exaustiva e enfadonha descrição de situações que o auditório já domina, quando se reconhece que o interesse e a atenção dos auditores é essencial para se obter a sua adesão às teses do orador. Também no discurso epidíctico, quer esteja em causa um elogio ou uma censura, a narração só se tornará indispensável se tais factos forem ainda desconhecidos do público a que o discurso se dirige. Mas a opção ou não pela narração dos factos pode depender também de outras razões. No caso do processo judicial, por exemplo, enquanto o acusador recorrerá a uma narração pormenorizada que dê aos factos uma presença tal que faça com que o juiz não mais os perca de vista, o defensor, em princípio, procurará opor-se à narração do adversário, detendo-se especialmente sobre o que o justifica ou desculpa. Não se pode por isso estabelecer à partida uma divisão do discurso demasiado apertada ou muito rígida, já que nem todos os discursos têm a mesma estrutura. Esta, dependerá sempre da concreta situação retórica a que o discurso se aplica, particularmente do seu objecto, do auditório e do tempo de que se dispõe.

Qualquer que seja a divisão do discurso escolhida, subsistirá sempre a questão de se determinar, mesmo no interior de cada uma das partes, qual a ordem pela qual se devem apresentar os diversos argumentos. Tomando por base a força de cada argumento, Perelman analisa as três ordens que têm sido preconizadas: a ordem da força crescente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana, em que se começa e acaba com argumentos fortes, deixando os restantes para o meio da argumentação. Qual delas será a mais eficaz? Parece que as três apresentam vantagens e inconvenientes. Na ordem crescente, o facto de se começar pelos argumentos mais fracos pode instalar uma certa letargia no auditório e, principalmente, induzir neste uma imagem menos favorável do orador, o que fatalmente irá esmorecer o seu prestígio e a atenção que lhe é dispensada. Na ordem decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, o orador deixa no auditório uma impressão igualmente fraca, que, por ser a última, pode muito bem ser a única de que os auditores se vão lembrar. A ordem nestoriana, não apresenta nenhum desses dois inconvenientes, na medida em que começa e acaba com argumentos fortes, mas tem contra si o facto de pressupor a força dos argumentos como uma grandeza imutável, isto é, não leva em linha de conta que a força de um argumento varia sempre em função do auditório e que este, por sua vez, também muda com o desenrolar do próprio discurso. É o que Perelman pretende mostrar quando afirma: “(...) se a argumentação do adversário impressionou o auditório, interessa refutá-la de início, em aplanar, por assim dizer, o terreno, antes de se apresentar os próprios argumentos. Ao invés, quando se fala em primeiro lugar, a refutação dos eventuais argumentos do adversário nunca precederá a prova da tese que se defende. Haverá muitas vezes, aliás, interesse em não as evocar para não dar aos argumentos do adversário um

peso e uma presença que a sua evocação antecipada acaba, quase sempre por reforçar”. O que é importante é não perder de vista que a eficácia do discurso muda com o seu próprio desenrolar e que por isso mesmo, cada argumento deve surgir no momento em que possa exercer mais efeito e mostrar-se devidamente ajustado ao modo como os respectivos factos vão sendo interpretados. Se a finalidade do discurso é persuadir o auditório, então a ordem dos argumentos não pode deixar de ser constantemente adaptada a tal finalidade.