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3.2 O Percurso Teórico: discurso/saber, ordem e poder em Michel Foucault

3.2.2 Ordem

A ordem para Foucault (1999) seria uma organização funcional do discurso, no qual o imaginário social irá ganhar corpo a partir de suas formas de controle, coerção e exclusão, ou seja, seria o enquadramento discursivo em leis estabelecidas por instituições presentes em determinadas sociedades; tal enquadramento cuida da aparição dos discursos, dos lugares de seu pronunciamento, determina o nível de importância dos mesmos e seleciona os sujeitos que falam, tentando instituir verdades: “tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso”. (FOUCAULT, 1999, p.50).

Para esse fim as instituições se apegam a procedimentos que as auxiliam na busca por manterem total hegemonia na ordem dos discursos circulantes em seus espaços. De acordo com Foucault (1999), existem três procedimentos que são bastante utilizados em nossa sociedade: dois procedimentos externos aos discursos (limitação e sujeição do discurso) e outro de origem interna aos mesmos (Rarefação) (IDEM).

A limitação se refere aos sistemas de exclusão presentes em nossa sociedade, direcionados aos discursos pelas instituições como forma de controle. A mesma é constituída pela interjeição (tabu do objeto, ritual das circunstâncias e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala), rejeição (oposição razão x loucura/segregação da loucura) e a vontade de verdade (FOUCAULT, 1999).

Estes três sistemas de exclusão podem ser considerados como aqueles que põem em jogo o poder e o desejo, porém a vontade de verdade se destaca, conforme a mesma pode retomar os demais sistemas por sua própria conta, como também modificá-los e fundamentá- los. Para Foucault (1999), a vontade de verdade é um sistema de exclusão guiado por um conjunto de práticas como a pedagogia, a educação, os sistemas dos livros, entre outros, que são regidas por um suporte institucional.

Percebemos que a vontade de verdade sofre influência direta dos meios de aplicabilidade dos variados saberes que circulam em nossa sociedade e que através do suporte institucional que possui, ganha força para consolidar verdades e excluir discursos que não estejam enquadrados nos parâmetros instituídos como verdadeiros:

O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma libera do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir

todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e relacioná-la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura (IBIDEM, p. 19-20).

Dessa forma, a vontade de verdade mascara-se dentro de uma verdade estabelecida, que ganha força ao ser desejada por grande parte da sociedade, que procura se enquadrar no “verdadeiro” a partir do momento em que se busca apropriar-se de forma incontestável dos saberes instituídos. Enquanto isso, aqueles que buscam contestar tais saberes sofrem exclusões diversas que deixam transparecer o poder exercido pelos procedimentos discursivos institucionais.

Outro procedimento de controle e delimitação do discurso é a rarefação. Entretanto esta atua de forma diferente em relação à limitação, à medida que são os próprios discursos que se auto controlam. Para Foucault (1999, p.21) a mesma: "[...] funciona, sobretudo, a título de princípio de classificação, de ordenação, de distribuição, como se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso".

Ela atua conforme três princípios que podem ser considerados como os responsáveis por classificar, categorizar, produzir e divulgar discursos. O primeiro desses princípios seria o do comentário, que se caracteriza por permitir a classificação e categorização dos discursos, a partir do momento em que mantém a possibilidade de reaparecimento dos mesmos em situações diferentes daquela de sua formulação, ou seja, podem contribuir para a permanência ou não permanência dos discursos, à proporção que limita o acaso pela repetição:

O comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito (IBIDEM, p.25).

Os outros dois princípios da rarefação podem ser considerados como aqueles responsáveis por produzirem e divulgarem os discursos. Um destes seria o princípio do autor que de certo modo complementa o comentário, como também limita o acaso na busca por uma individualidade. Para Foucault (1999), o autor se caracteriza por ser o “[...] princípio de agrupamento do discurso, como unidade de origem de suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 1999, p. 26).

O terceiro e último princípio seria a disciplina, que possui a sua existência atrelada à capacidade de formular proposições novas e de estabelecer os parâmetros necessários para que um discurso possa se encontrar no verdadeiro de uma determinada época, ou seja, ela

segue um plano de objeto determinado, passando a dar identidade ao discurso a partir de uma reutilização contínua das regras. Segundo Foucault (1999, p.34):

[...] uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”.

O mesmo finaliza com a seguinte colocação da atuação da disciplina perante a pronúncia de nossos dizeres:

É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem: mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma "policia" discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos (IBIDEM, 1999, p. 35).

Portanto a disciplina se diferencia dos dois primeiros princípios de rarefação, conforme a sua ação e reconhecimento não estão ligados à possibilidade de um inventor, ou quando não busca redescobrir sentidos ou estabelecer identidades a partir da repetição discursiva, e sim, se apresenta como as regras necessárias à criação de novos enunciados.

O último procedimento de controle dos discursos, sujeição do discurso, seria aquele que limita seus poderes, domina as aparições aleatórias e seleciona os sujeitos que falam, ou seja, é aquele que é regido por quatro grandes mecanismos de submissão discursivos, mediante determinadas condições e regras.

O primeiro desses mecanismos seria o ritual, que para Foucault (1999, p.39):

[...] define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados) as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção.

Assim sendo, os rituais determinam para os sujeitos o que devem falar, quando falar e como falar, de forma a buscar o controle dos sentidos decorrentes e presentes nos discursos. Algo que acontece em grandes proporções com os discursos de origem política, como aqueles circulantes no período da ditadura militar brasileira, como veremos mais adiante.

Outro mecanismo de sujeição seriam as sociedades de discurso, cuja função é manter e criar discursos que deverão circular em ambientes fechados. As mesmas se caracterizam pela necessidade de apropriação de segredo e de não-permeabilidade discursiva, ou seja, possuem um regime de exclusividade e de divulgação perante o discurso.

O terceiro mecanismo é conhecido como doutrina, caracterizada por possuir em sua constituição um número reduzido de indivíduos que falam e que em conjunto estabelecem os limites de circulação e transmissão do discurso. Para Foucault (1999, p.43):

A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente todos os outros; mas ela se serve, em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros, A doutrina realiza dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam.

Desta forma, a doutrina questiona o que é dito a partir dos sujeitos que falam, à proporção que tais dizeres deverão ser direcionados conforme a participação desses sujeitos em grupos doutrinários definidos, que influenciam os seus enunciados.

Por último e não menos importante, pode-se falar da apropriação social dos discursos como um mecanismo de sujeição de grande dimensão:

Enfim, em escala muito mais ampla, é preciso reconhecer grandes planos no que poderíamos denominar a apropriação social dos discursos. Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais (FOUCAULT, 1999, p. 44-45).

Esses quatro mecanismos de sujeição do discurso se encontram interligados em vários momentos e atuam de forma a conduzir a relação entre sujeitos e discursos em determinadas situações. Para Foucault (1999 p.45) o sistema de ensino é um meio onde podemos encontrar a atuação conjunta desses tais mecanismos, o que pode ser identificado no seguinte questionamento:

[...] o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; se não a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

Por fim, para que possamos nos situar em relação à ordem do discurso, é necessário falarmos que os dois últimos procedimentos (rarefação e sujeição discursiva) discutidos nesta parte do trabalho, são aqueles que literalmente atuam de forma a impor o processo de ordenação aos discursos, através dos variados mecanismos que os compõem e que foram citados acima. Percebemos a ordem discursiva e todo o procedimento que visa a sua manutenção como algo essencial a que possamos entender da melhor maneira possível o nosso objeto de pesquisa.