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Capítulo II – A deontologia inacabada das RP

2.1. A origem das Relações Públicas

«Todas as disciplinas e profissões que conhecemos debatem-se com a multiplicidade de, por vezes contraditórias, definições. Esta multiplicidade é, por vezes, explicada como resultante da infância ou da maturidade do seu campo. Nesse sentido, as Relações Públicas não são diferentes de qualquer outra disciplina académica social ou de qualquer outra profissão.» (Verčič, Van Ruler, Bütschi e Flodin, 2001, p. 381).

Para contar a história da origem das Relações Públicas importa realçar o contexto histórico que marca o seu surgimento. Nascidas nos Estados Unidos da América (de ora em diante também “EUA), no século XX, com o advento dos fenómenos populistas, do nazismo e do fascismo, a abalarem a Democracia e a forma como os meios de comunicação de massas passaram a ser vistos pela sociedade - que questionava até o papel dos próprios jornalistas (Cutlip, 1989; L’Etang, 2004). Há quem trace um paralelismo entre a constituição daquela nação e a emergência da disciplina (Grunig e Hunt, 2003; Cutlip, Center e Broom, 2005; Cutlip, 1994 e 1995), com o First Amendment a garantir o direito ao acesso à informação e à imprensa livre enquanto meios para permitir aos cidadãos o cumprimento do seu papel cívico (Bivins, 2004).

O panorama eminentemente político, marcado pelo capitalismo, de onde brotaram é, também, bem caracterizado por Edward L. Bernays, na sua obra Crystallizing Public

Opinion (1923), tida como a primeira obra de RP (Cutlip, Center e Broom, 2005). Numa

altura em que as RP eram, frequentemente, confundidas com propaganda e publicidade (White e Park, 2010; Grunig e Hunt; 2003), Irving “Ivy” Lee – a quem muitos atribuem a “paternidade” da disciplina – introduziu a ideia de que o público deve ser informado, na sua famosa Declaração de Princípios, concomitante com a ocorrência do caso “Pennsylvania

Railroad”. 8Ora, são vários os autores que veem este momento como fulcral para o desenvolvimento das RP na medida em que ditou o surgimento de uma nova dinâmica relacional entre a imprensa e os seus públicos (Schudson, 1978). A partir daqui, fica assente a ideia de que o público deve ser corretamente informado, devendo-lhe ser dadas a conhecer as circunstâncias concretas que marcam os acontecimentos e, bem assim, possibilitando-lhe a formação de uma opinião. Assim, ficam separados os âmbitos da informação e da publicidade (Grunig e Hunt, 2003; Cutlip, 1994).

Responsável pelo desenvolvimento de conceitos como o de “Consultor de Relações Públicas”, ainda hoje utilizado enquanto título profissional, Bernays é considerado por muitos o grande timoneiro da atividade de RP (Blumenthal, 1980; Tye, 2002; Butterick, 2011). Apoiando-se no legado de Ivy Lee, Edward L. Bernays considerava que era imprescindível que o público fosse compreendido pelo que veio associar às RP contributos de outras Ciências Sociais, como a Psicologia.

Alicerçando-se no pensamento de Bernays, Grunig e Hunt (1984), veem olhar para as RP como um subsistema organizacional, sendo considerados os principais responsáveis pelo desenvolvimento e definição do próprio conceito de RP com a sua obra Managing

Public Opinion. Na sua ambição de organizar a prática profissional, desenvolvem o famoso

“paradigma grunigiano” e os quatro modelos de RP, simétrico e assimétrico, uni e bidirecionais, correspondentes à interseção de dois eixos. Tendo à disciplina sido, ainda, atribuído o papel fundamental de gestão no seio de uma organização, passado a partir daqui as RP a ser vistas como abrindo caminho para um processo comunicativo bidirecional entre uma organização e os seus públicos, tendo em vista o equilíbrio de interesses de ambas as partes (Gonçalves, 2010).

Com Effective Public Relations, Scott Cutlip e Allan Center (cuja primeira edição data de 1952) trouxeram para a discussão em torno da disciplina, princípios, práticas e critérios orientadores da conduta do profissional dos RP, adequando-a a certas situações

8 A declaração que decorreu do caso Pennsylvania Railroad é, frequentemente, tida como o primeiro press

release. Estando Ivy Lee em representação da Pennsylvania Railroad Company, em 1906 deu-se um

específicas da sua vida quotidiana e introduzindo parâmetros de avaliação e investigação na área.

Surgindo apenas no início do século XX, o conceito de Relações Públicas viu-se, desde cedo, envolto em alguma indefinição, havendo quem o associasse a uma função estratégica, interna, de gestão da organização (Cutlip, Center e Broom, 2005; Crable e Vibbert, 1986; Grunig, 1992;) e quem valorizasse mais os seus efeitos, externos, na sociedade (Moloney, 2001; L’Etang, 2006; Tench & Yeomans, 2009; Heath, 2010; L’Etang e Pieczka, 2011). A primeira conceção, positivista, que teria por base o ideal de equilíbrio de relações possível pela aplicação do modelo simétrico bidirecional, conflituava com a perspetiva negativista, partidária da visão persuasiva, manipuladora e propagandística das RP que, apesar de tudo, não parece ter sido refutada, mas antes convenientemente ignorada, pelos apologistas de uma abordagem sistémica das Relações Públicas.

Por considerar impossível ignorar a utilização de táticas propagandísticas pelas RP, Grunig (1992) viria, mais tarde, a redesenhar o modelo proposto em Managing Public

Relations, no sentido de o tornar mais fiel à realidade profissional, com isso acabando por

propor que as estratégicas “assimétricas” de comunicação (persuasivas e/ou propagandísticas) seriam utilizadas, somente, como meio para alcançar o equilíbrio de interesses entre a organização e os seus públicos, procurando, ainda, fazer a destrinça entre princípios genéricos e aplicações específicas de RP, no seu “modelo de motivação mista”, alicerçado na teoria dos jogos de Priscilla Murphy (1991). Aqui, como explica Gonçalves (2010) em Introdução à Teoria das Relações Públicas, Grunig faz uma incursão pela perspetiva retórica das RP, propugnada por Toth e Heath (1992), em Rhetorical and Critical

Approaches to Public Relations, conjugando-a com a visão sistémica anteriormente

sugerida. Esta abordagem retórica olha para os media «(...) enquanto veículo excelente para desenvolver relações persuasivas entre a organização e os seus públicos, tanto através de mecanismos formais (identificados facilmente na assessoria de imprensa, p.e.) como por mecanismos não controláveis pelas próprias relações públicas (o gatekeeping mediático).» (Gonçalves, 2010, p.71).

Na cronologia de Edward L. Bernays (1952) – que viria a inspirar os quatro modelos de Relações Públicas construídos por Grunig – a “era do público prejudicado” (the public

be damned era) (p.51), marcada pela prevalência da manipulação e do sensacionalismo, viria

a dar lugar à chamada “era do público informado” (the public be informed era) (p.63), a era das RP modernas, da prevalência do modelo simétrico de comunicação e, portanto, da busca do equilíbrio através do diálogo ao invés do monólogo. Assim, muita da literatura contemporânea considera que as RP modernas, inspiradas pelo contributo de Lee, serão agora marcadas por uma tentativa de equilibrar os benefícios das instituições e dos seus públicos (Murphy, 1991; Heath and Palenchar, 2008; Bowen, 2016;).

Os princípios genéricos associados às RP são mais contundentes com a visão estratégica das mesmas e as chamadas aplicações específicas, mais circunstanciais, tendo em conta o seu impacto na sociedade e respetivas estruturas de poder. Assim, esta conjugação de valores parece ser o dilema com que as RP se têm digladiado desde o seu nascimento, tentando os vários autores que se debruçaram sobre o tema encontrar um compromisso entre duas facetas aparentemente inconciliáveis. Neste sentido, também Greg Leichty e Jeff Springston (1993), em Reconsidering Public Relations Models, viriam considerar que a maioria das organizações aplica uma conjugação dos quatro modelos propugnados por Grunig e Hunt (1984), afirmando existir uma contradição entre a função de gestão da relação e a forma como os modelos de RP são desenhados e avaliados.

Também Jacquie L’Etang e Magda Pieczka (1996), em Critical Perspectives in

Public Relations, desafiaram as assunções feitas pelo chamado “paradigma dominante” das

RP, vindo a obra Handbook of Public Relations, de Heath (2001), consumar a viragem paradigmática das RP no sentido de uma visão crítica, como afirma L’Etang (2005), no seu artigo Critical Public Relations: Some Reflections. O modelo bidirecional das RP e a sua eficácia face aos fatores externos que, segundo estes autores, também deveriam ser considerados na equação, especialmente no que concerne ao impacto das RP nas forças de poder, foi também desafiado alguns autores (Cheney e Christensen, 2001; McKie, 2001).

Por outro lado, autores como Lee Edwards e Caroline Hodges (2011) viriam afirmar a validade da conceção das RP como dominada pelos interesses organizacionais e pela

função de ajudar as organizações a atingir os seus objetivos, mas asseverar a tendência desta abordagem para negligenciar as consequências da estratégia no contexto social em que as organizações operam.

A discussão sobre as RP na Europa é bem mais tardia. Para enquadrar o seu aparecimento no continente europeu, importa atentar no contributo de Dejan Verčič, com

European Public Relations Body of Knowledge Research (2000), onde revelou que a maioria

dos participantes no seu estudo considerava que as Relações Públicas nos EUA eram muito diferentes da prática europeia e que, nesse contexto, são mais orientadas para o público do que para o negócio e adaptadas ao respetivo quadro cultural, sendo de destacar, ainda, o facto de terem sido mais conotadas com a informação pública do que com a Ppublicidade (p. 21-22). Assim, questionando a aplicabilidade da realidade das RP norte-americanas ao contexto europeu, apontam L’Etang, (1999) como uma das investigadoras que contribuiu para provar que as RP também têm uma história na Europa.

Como afirma Gonçalves (2010), «(...) é natural observar-se que, em muitos países europeus, a construção da teoria das Relações Públicas está muito próxima do jornalismo.» (p.81), sobretudo devido à sua «(...) coincidência de funções na sociedade.» (ibidem), daí, também, a alegação por parte de alguns autores de que existe uma proximidade na relação entre RP e jornalistas (Skinner et. al. 2010). Antes disso, já Karl Nessman (1995) tinha afirmado, em Public Relations in Europe: A Comparaison with the United States, que há «(...) diferenças significativas no que os praticantes fazem e no que pensam das relações públicas nos seus próprios países.» Perceber o que são as RP do ponto de vista dos profissionais portugueses do setor é, também, o que nos propomos a fazer nesta investigação.

Depois da Guerra de 1939-1945, foi em França que se instalaram os primeiros gabinetes de RP (Chaumely e Huisman, 1997) sendo Lucien Marat apontado como o grande precursor da atividade no velho continente e responsável pelo desenvolvimento da ética profissional, contribuindo para a elaboração de codificações deontológicas como o Código de Atenas. Ainda, nesta geografia, começaram a surgir as primeiras associações de RP, como a Association Professionelle des Relations Publiques (APROEP), fundada em 1952 que, em 1955, adquiriu a designação de Association Française de Relations Publiques (AFREP).

Contemporânea à criação desta associação foi a criação da International Association of Public Relations (IPRA), tendo posteriormente surgido outras das quais se destaca a Confederation Européene des Relations Publiques (CERP) (Chaumely e Huisman, 1997).

No que concerne ao panorama nacional, na obra Introdução à Teoria das Relações

Públicas, Gisela Gonçalves (2010, p.9) afirma que «Enquanto campo científico, as RP em

Portugal ainda estão na sua infância.», asseverando, ao longo da sua exposição teórica, que este problema deriva, não apenas mas também do facto de não ter sido ainda encontrada uma definição consensual sobre o que são, efetivamente, as Relações Públicas, ainda que seja de conceder que as definições propostas para tal sejam abundantes e provenientes quer da literatura norte-americana, pioneira na incursão por estes assuntos, quer da literatura europeia, que se interessou mais recentemente pelo assunto. Ora, neste estudo, atender-se- á à importância de tentar suplantar esta lacuna na literatura nacional e tentar-se-á dar mais um passo na investigação sobre as RP portuguesas.

Assim, se é relativamente consensual que as RP derivam do campo científico e epistemológico da Sociologia e estão ligadas à comunicação de massas, o “impasse” teórico em que se encontra a sua definição institucional só viria a ser amenizado como o surgimento da obra de James E.Grunig e Todd Hunt (1984), que veio alargar o papel das RP, numa abordagem sistémica; retórica; otimista, sumariada por Gonçalves (2010) como atribuindo ao relações públicas «(...) um papel de advogado na co-criação de significados através da argumentação persuasiva.» (p.14).