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A origem inquisitória do instituto da colaboração premiada e a sua natureza como

3. A VOLUNTARIEDADE NA COLABORAÇÃO PREMIADA CELEBRADA COM

3.1 A RESTRIÇÃO DA LIBERDADE COMO INSTRUMENTO COERCITIVO PARA A

3.1.2 A origem inquisitória do instituto da colaboração premiada e a sua natureza como

É sabido que os sistemas processuais penais inquisitório e acusatório têm origens históricas relativamente contemporâneas e nasceram a partir de razões políticas diferenciadas. O sistema inquisitório surgiu num cenário de declínio da Igreja Católica, possuindo como marco histórico o IV Concílio de Latrão, datado de 1215.133 Há o nascimento de um novo

sistema processual, que substituiu o sistema anterior dos Juízos de Deus e o qual “coloca nas mãos do inquisidor o domínio das premissas, permitindo-o conduzir o resultado para onde estiver a sua convicção”.134

Já o sistema acusatório, por sua vez, nasceu na Inglaterra, no governo de Henrique II (1154-1189). “O sistema judiciário por ele estabelecido sugeriria uma espécie de participação dos lordes dos vários feudos nas decisões judiciais, utilizando a tática de dividir os poderes para melhor dominar”.135

131 PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 333-334. 132 RAMOS, Bruno da Cruz Silva; PEREIRA, Anderson Marques Martins Gomes. A Ilegalidade Na Prisão

Preventiva Como Forma De Obter a Delação Premiada. Revista Pensar Direito, [S.l.], v. 9, n. 2, p.1-22, jul. 2018. Disponível em: http://revistapensar.com.br/direito/artigo/no=a306.pdf. Acesso em: 18 out. 2019. p. 5. 133 CASTRO, Matheus Felipe de. Abrenutio Satanae! A colaboração premiada na Lei nº 12.850/2013: um novo

paradigma do sistema penal contratual? Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 69, p.171- 219, abr./jun. 2018. Trimestral. p. 180.

134 Id., Ibid. 135 Id., Ibid.

O sistema inquisitório tem o princípio inquisitivo como princípio unificador, enquanto o sistema acusatório é marcado pelo princípio dispositivo, sendo que a gestão da prova é o critério identificador. E de acordo com Alexandre Morais da Rosa:

[...] Sendo o processo penal atividade marcadamente de acerto de significantes no presente em face de conduta pretérita, com todos os riscos daí advindos, a fixação de quem exercerá a gestão da prova, e com quais poderes, mostra-se indispensável [...] No modelo Inquisitório o juiz congrega, em relação à gestão da prova, poderes de iniciativa e de produção, enquanto no Acusatório essa responsabilidade é dos jogadores, sem que possa exercer papel de protagonismo. De outra face, no Inquisitório a liberdade do condutor do feito na sua produção é praticamente absoluta, no tempo em que no Acusatório a regulamentação é precisa, evitando que o juiz se arvore num papel que não é seu.136 (Grifo nosso)

Matheus Felipe de Castro ensina ainda que:

[...] a construção mais ou menos contemporânea dos dois sistemas processuais se deu por motivações políticas semelhantes (necessidade de concentração de poder por parte da Igreja Católica, em um momento de declínio de sua hegemonia, e por parte de Henrique II, em um momento de dominação dos feudos ingleses que eram admitidos a participar das decisões judiciais, dividindo certas parcelas do poder governamental), mas com soluções antagonicamente diferentes. O primeiro com contornos autoritários e centralizadores, e o segundo com contornos descentralizadores típicos de modelos de democratização da gestão do poder.137 (Grifo nosso)

No panorama brasileiro atual, para a doutrina majoritária, o Código de Processo Penal revela um sistema processual denominado de sistema misto, no qual há características do sistema inquisitorial com agregação de aspectos da composição do sistema acusatório.

Cumpre ressaltar que o exame dos sistemas processuais penais é importante para o estudo da colaboração premiada, uma vez que sua origem remonta do sistema inquisitório, “uma instituição incrustada em sua essência, derivando diretamente da própria instituição da confissão como método de submissão voluntária ou forçada ao poder institucional da Igreja de Roma”.138 Em virtude de sua origem, resta cristalino que o instituto premial em comento é

caracterizado pelo princípio inquisitivo, o que vem a estabelecer a sua natureza.

Sobre a relevância da apreciação dos sistemas inquisitorial e acusatório para a análise do instituto da colaboração premiada, Matheus Felipe de Castro confirma que:

O instituto jurídico da colaboração premiada encontra sua origem e lógica de funcionamento no interior das legislações inquisitoriais da Idade Média, aparecendo sempre como um importante instrumento no chamado combate à criminalidade pela

136 ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria do jogos. 4. ed. ver. atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 287.

137 Id., Ibid., p. 181.

138 CASTRO, Matheus Felipe de. Abrenutio Satanae! A colaboração premiada na Lei nº 12.850/2013: um novo paradigma do sistema penal contratual? Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 69, p.171- 219, abr./jun. 2018. Trimestral. p. 184.

via autoritária. Daí que a sua compreensão deva partir do levantamento histórico dessas circunstâncias, bem como da compreensão do significado histórico, epistemológico, funcional e político dos sistemas penais inquisitorial e acusatório [...].139 (Grifo do autor)

Antes de adentrar na questão específica da colaboração premiada, é oportuno frisar que o sistema processual inquisitorial – sistema este que caracteriza a lógica do instituto da colaboração premiada – é caracterizado pela constante busca pela denominada “verdade real”. Conforme Aury Lopes Jr.:

O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas políticos autoritários; com a busca de uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz-ator (inquisidor).140

Logo, sendo certo que a função precípua da prova no processo penal é reconstruir a história dos fatos e que a colaboração premiada é um meio de obtenção de provas originado a partir de uma lógica inquisitiva, deve-se ter muita cautela na aplicação desse instituto, para que não seja marcado pela “busca da verdade a qualquer custo”, ofendendo a princípios e garantias fundamentais constitucionais.

A expansão do estudo detalhado acerca do instituto da colaboração premiada, principalmente no que diz respeito à sua natureza inquisitiva e a sua aplicação enquanto meio de obtenção de provas, se deu em decorrência do aumento progressivo do crime organizado, uma vez que o Estado procurou atuar de maneira mais eficaz e inteligente no combate às organizações criminosas e à corrupção, agindo por meio de novos instrumentos investigatórios, sendo a colaboração premiada um destes instrumentos.

Ressalta-se que a colaboração premiada, do modo como é prevista pela Lei nº 12.850/2013, surgiu sob a ótica de combate ao crime organizado, tendo como função precípua a obtenção de provas a respeito da autoria e materialidade das infrações penais praticadas pelas organizações criminosas, a fim de facilitar a persecução penal.

Num quadro geral do campo jurídico-criminal brasileiro, diversos são os aspectos que justificam a expansão da aplicação dos instrumentos de cooperação com a justiça (como o mecanismo da colaboração premiada), mas, com toda a certeza, a enorme quantidade de processos criminais e a morosidade frequente do Poder Judiciário em seus julgamentos são

139 CASTRO, Matheus Felipe de. Abrenutio Satanae! A colaboração premiada na Lei nº 12.850/2013: um novo paradigma do sistema penal contratual? Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 17, n. 69, p.171- 219, abr./jun. 2018. Trimestral. p. 179.

fatores que amparam “demandas de atores do campo criminal e da sociedade em geral por ações estatais visando acelerar o transcorrer dos julgamentos criminais”.141

Entretanto, é necessário dar maior atenção para o sucateamento do aparato investigativo estatal, principalmente no âmbito policial, em razão da falta de investimentos do Poder Público, o que tem exigido uma atuação mais efetiva do Ministério Público na persecução criminal.

Aliado ao sucateamento do aparato investigativo estatal, tem-se o fator midático. Segundo Alexandre Morais da Rosa, a mídia é relevante enquanto jogador externo do jogo processual da colaboração premiada, possuindo muita influência nas decisões, principalmente no panorama brasileiro contemporâneo, na medida em que “vive-se o momento da delação do espetáculo, em que a pressão e furos de reportagem, bem assim os vieses mercadológicos da tendência dos meios de comunicação de massa movimentam o aparato da Justiça, pautando e pressionando as decisões dos jogadores”.142

Portanto, é sob este cenário que a colaboração premiada vem ganhando destaque, “não só para as investigações, mas também para permitir uma melhora da prova processual penal, viabilizando condenações que outrora seriam extremamente difíceis ou improváveis”.143

Sobre a temática em comento, Bruno da Cruz Silva Ramos e Anderson Marques Martins Gomes Pereira salientam que:

Diante da complexidade de certas articulações criminais, torna-se igualmente complexo a elucidação da prática criminal, sendo assim, parece ser inegável a contribuição fornecida por uma suposta confissão e informações que auxiliem no esclarecimento do ilícito penal, pois a prática criminal na maioria das vezes é cercada de detalhes de difícil elucidação, tais como seu funcionamento, sua composição, sua organização, sua hierarquia dentre outros detalhes. Neste contexto, ganha importante destaque a lei 12.850/2013 lei das organizações criminosas e o instituto da delação premiada ou colaboração premiada, como também é conhecida, sendo uma forma de se obter a suposta verdade diante da colaboração daquele que esteve envolvido na prática criminal.144 (Grifo nosso)

141 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e acordos no processo penal: crítica às tendências de expansão da justiça negociada no Brasil. Boletim Informativo IBRASPP, [S.l.], ano 04, n. 06, p. 6-9, 2014. 142 ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias

do negócio jurídico. Florianópolis: EModara, 2018. p. 20.

143 TEOTÔNIO, Paulo José Freire; SILVA, Bruna Carolina Oliveira e; SCHIAVI, Jeferson Dessotti Calvacante Di. A prisão como instrumento de coerção moral ilegítima para obtenção de prova através de delação premiada. Lex Magister. Disponível em:

http://www.editoramagister.com/doutrina_27548967_A_PRISAO_COMO_INSTRUMENTO_DE_COERCA O_MORAL_ILEGITIMA_PARA_OBTENCAO_DE_PROVA_ATRAVES_DE_DELACAO_PREMIADA.a spx. Acesso em: 15 out. 2019.

144 RAMOS, Bruno da Cruz Silva; PEREIRA, Anderson Marques Martins Gomes. A Ilegalidade Na Prisão Preventiva Como Forma De Obter a Delação Premiada. Revista Pensar Direito, [S.l.], v. 9, n. 2, p.1-22, jul. 2018. Disponível em: http://revistapensar.com.br/direito/artigo/no=a306.pdf. Acesso em: 18 out. 2019. p. 5.

Assim, em decorrência do aumento do emprego do instituto da colaboração premiada no cotidiano jurídico brasileiro, surgiram diversas discussões acerca da sua aplicação, sobretudo no que concerne ao uso da colaboração premiada em casos de investigados ou acusados presos cautelarmente.

3.1.3 O uso indevido das prisões cautelares como estímulo à celebração do acordo de