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OS ATORES DO PROCESSO

No documento FICHA CATALOGRÁFICA (páginas 61-146)

2. PRIMEIRO CAPÍTULO

2.2 OS ATORES DO PROCESSO

2.2 OS ATORES DO PROCESSO

2.2.1 O surgimento das Religiões Ayahuasqueiras Brasileiras

Embora o uso da ayahuasca conte com uma longa tradição indígena e mestiça no Brasil e em outros países da América do Sul, é na região brasileira (que abrange as bacias dos rios Madeira, Purus e Juruá), que o uso do chá tomará a forma de religiões urbanas organizadas e não indígenas, como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal (GOULART, 2004, p. 13). Seus Mestres fundantes são o Mestre Irineu97, o Frei Daniel e o Mestre Gabriel, respectivamente. Estes cultos seriam organizados já em contextos urbanos, embora em áreas periféricas das capitais (Rio Branco e Porto Velho), talvez porque surgem num momento de mudanças do mundo rural. Alguns estudiosos afirmam que estes grupos operaram uma verdadeira tradução98 do uso ameríndio da ayahuasca para uma visão cosmológica ocidental e uma transposição das práticas ayahuasqueiras originárias para o mundo dos “cariús” ou “não-índios”, em sua maioria migrantes nordestinos trazidos pelo governo para trabalhar nos seringais nos dois ciclos da borracha. Como corroboram os relatos históricos relativos à constituição e surgimento dos referidos cultos, os mestres fundadores Irineu e Gabriel conheceram a bebida através de contatos iniciais com curandeiros mestiços ou caboclos, que atuavam nos seringais da tríplice fronteira (Brasil, Peru e Bolívia)99.

Assim, estas religiões surgem na união entre elementos da cultura indígena e elementos da cultura seringueira cabocla da Amazônia em um nível bastante profundo, expressados na sua mitologia, em seus rituais e na sua moralidade. Neste contato,

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Para NEVES (2010) in: MOREIRA & MACRAE (2011), Mestre Irineu tem um papel fundante porque sua história de vida situa-se na origem, mais especificamente no ponto de passagem de uma tradição indígena para uma tradição cristã, “ponto de convergência, de mutação, de transformação, sintetizada através de uma vida humana, um personagem que se tornou catalisador de um conjunto de referências culturais”.

98 De acordo com Clodomir Monteiro da Silva, acreano, autor da primeira Dissertação sobre o Daime: “O Palácio de Juramidam, (1983)”, o “Santo Daime é uma autêntica sociedade religiosa rural” e ainda um ritual de passagem, um meio caminho entre a cidade e a floresta, um encontro entre o catolicismo dos seringueiros nordestinos e o feiticismo florestal indígena, entre os santos e as vidências mágicas das práticas indígenas. BASTOS (1979) afirma que a existência no Daime do Mutirão (Putirum), um dos institutos básicos das comunidades indígenas, o uso de alucinógenos naturais, como o Ipadu e o Paricá, a prática da vidência (miração), o uso de maracás aliado a visão incorporada a uma entidade superior, Jesus ou Santo Poderoso fazem do Santo Daime um culto que já nasce impregnado da cultura indígena e da cultura colonizante.

99 Segundo ARRUDA (2009, p-p. 158/178), esta é um exemplo típico de uma fronteira em movimento caracterizada por constantes mudanças e transformações em relação aos seus componentes populacionais (povos indígenas, portugueses, espanhóis, depois brasileiros, bolivianos e peruanos, depois migração cearense, etc), e pelas mudanças na demarcação política. Só no inicio do século XX se formalizam os atuais limites entre Bolívia e Peru (1902), Bolívia e Brasil (1903) e Peru e Brasil (1909).

trabalhadores bastante influenciados por uma evangelização cristã passam a usar o chá “indígena” para variados fins, mas principalmente de forma religiosa (GOULART, 2004, p. 12). Neste ensejo, componentes desta cultura amazônica, como o vegetalismo peruano e a pajelança cabocla (MAUÉS, 1994), combinam-se a aspectos do catolicismo popular, afro-religiosos, kardecistas, dentre outros, implicando em alguns “messianismos”, já que estes cultos organizados foram fundados por líderes carismáticos que expressaram a estruturação de doutrinas proféticas.

Existem autores, inclusive, que afirmam que os primeiros cultos organizados não-ameríndios a se formar na região podem ter sido justamente os ayahuasqueiros, já que, somente em 1920, é que chegarão ao Acre os primeiros grupos católicos hierarquicamente organizados, quando a região dos rios Acre e Purus foi desmembrada da Arquidiocese de Manaus e entregue à Cura da Ordem dos Servos de Maria (SOUZA, 2013, p. 115). Antes desta data, entretanto, já existiam padres aventureiros solitários que entravam nos vales dos rios Acre e Purus para evangelizar seringueiros de forma solitária, como é o caso dos pioneiros Padres Constant Tastevin e Jean-Baptiste Parissier, cujos relatos históricos servem como base para a etnografia do Alto Juruá100. SOUZA (2013, p. 133), a partir do relato oral do Sr. Francisco de Lima101, refere-se aos irmãos Costa, fundadores do primeiro grupo religioso ou espiritualista que utilizava a ayahuasca de forma coletiva, que se têm notícia na região. Era um grupo autodenominado de CRF (Centro Rainha da Floresta) fundado pelos irmãos Antônio e André Costa e freqüentado por Raimundo Irineu Serra, fundador do Daime, todos negros maranhenses, que teriam agregado à prática do uso ritual da bebida um profuso conjunto de símbolos e ritos cristãos e afro-brasileiros (NEVES, 2011a). Tal relato demonstra que o “curandeirismo” com plantas medicinais e a automedicação eram práticas constantes nos seringais, locais onde os remédios da “medicina oficial” eram escassos. De acordo com NEVES (2011a), entre 1912 e 1920, os irmãos Costa e Irineu teriam aprendido a usar a ayahuasca, mais precisamente na cidade de Brasiléia, localizada na tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia.

100 Jean Baptiste Parissier realiza em 1897-1898 sua expedição ao Alto Juruá e fornece a primeira descrição da região, em manuscrito datado de 1898. Já Constant Tastevin, que teria seu primeiro contato com índios Kanamari em 1910 no Médio Juruá, realiza sua expedição ao Alto Juruá em 1914. Fornece diversos manuscritos sobre o Juruá e sobre os índios Kaxinawá (CARNEIRO DA CUNHA, 2009a, p. xv).

101 “Brasiléia era muito pobre, depois de pobre, é a época da crise. Entrou a borracha em crise desde 1913 e aí em 1919 nós fomos atingidos aqui pelo maior flagelo, a gripe espanhola. Ela veio. (...) Rio Branco não morreu muita gente porque não tinha, mas nos seringais, por toda parte, foi uma lástima (...) morreu muita gente, muitos pais de família. Ficou uma colônia quase só de viúvas... (...) No tempo da gripe tinha uma farmácia, uma farmácia do Lauro Ribeiro. Essa farmácia não tinha medicamentos suficientes, nós fomos atendidos aqui pelo João Costa, o maranhense que era amigo do Irineu, desse negócio de Daime de Rio Branco. O Costa saía pelas colônias dando chá de limão e de folha de vinagreiro. Era com que se curava naquela época”.

2.2.2 O CRF, A iniciação de Mestre Irineu e a criação do Daime

Segundo MOREIRA & MACRAE (2011, p. 105/108), há indícios de que o CRF funcionou de 1916 a 1943. Durante suas reuniões tomava-se ayahuasca e eram realizadas sessões mediúnicas ou espíritas, quando se manifestavam entidades espirituais identificadas como princesas, rainhas, reis, etc., e seguiam algumas datas do calendário cristão. Seus praticantes recebiam patentes militares como “General”, “Marechal”, o que demonstra a influência da cultura militarista da Guerra da Borracha. Já naquela época havia perseguição da polícia ao grupo, possivelmente por ele ser visto pelas autoridades como formado por “negros curandeiros”, usuários de “substâncias venenosas”. Para evitar a repressão policial às suas cerimônias, os membros do CRF frequentemente as disfarçavam de festejos ou reuniões dançantes, assim como faziam os seguidores de religiões de matriz africana, por exemplo, em outras regiões do Brasil. O grupo recebeu influências do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (CECP)102, bem como possivelmente comportava entre seus freqüentadores uma maioria negra.103

Para MOREIRA & MACRAE (2011, p-p. 87/102), tudo indica que a iniciação de Irineu teria sido com os irmãos Costa, em uma viagem para conhecer a aoasca com caboclos em seringais peruanos. Relatos afirmam que numa dessas viagens, Irineu participou, junto com Antônio Costa, que era regatão104, de uma cerimônia com um grupo ayahuasqueiro que supostamente invocava o “demônio”, mas, mais provavelmente eram entidades “caboclas” ou indígenas desconhecidas pelos católicos. Vemos nesse relato indícios de preconceitos correntes na época contra as culturas indígenas. Como mostram os relatos históricos, Irineu, de fato, ao experimentar a bebida, teria tentado “invocar o demônio”, porém só via cruzes, tendo concluído que a bebida não era do “demônio”, já que o Diabo odiaria a cruz. Os autores afirmam que existem diversos relatos da iniciação de Irineu Serra, onde se detectam versões semelhantes da mesma crença, ou seja, de que sua primeira vez teria se dado no contexto de um culto satânico. Essa ideia acabou se consolidando entre seus seguidores como uma espécie de mito de fundação, marcando um momento quando se abandonavam as “práticas pagãs” e se adotava valores cristãos. Isso marcaria o início de sua missão, em oposição à ambigüidade dos

102 O CECP é uma ordem ocultista fundada em 1909 em São Paulo, pelo português Antônio Olívio Rodrigues, inspirada nos ensinamentos do guru indiano Swami Vivekananda e nos princípios teosóficos de Madame Blavatsky. A ordem tinha uma revista chamada Revista do Pensamento, que circulava em regiões longínquas da Amazônia e do sertão nordestino. De acordo com FRÓES (1986, p. 47 apud MOREIRA & MACRAE 2011, p. 124), Irineu se filiou à mesma em 1955, e também à ordem Rosa Cruz.

103 Para saber mais sobre o CRF, consultar MOREIRA & MACRAE (2011, p-p. 103/112).

104 O regatão era o Barqueiro que burlava o sistema local de barracões trazendo gêneros alimentícios em trocas de pelas de borracha. Para fazer tal serviço, deveria possuir o barco e conhecer os rios.

brujos ou hechiceros, chefes da ayahuasca.105 Um desses relatos refere-se ao peruano mestiço Don Pizango, que por vezes é lembrado como um ser humano ou como uma entidade espiritual, capaz de se transportar para o recipiente da ayahuasca. Em uma das versões da história, durante uma cerimônia específica, Irineu teria visto Pizango dentro da cuia de ayahuasca. Nenhum dos outros participantes teria conseguido vê-lo, o que foi considerado como uma demonstração de que apenas ele teria a capacidade de trabalhar com a bebida, dentre aqueles presentes.

Conta-se que ao continuar as suas experiências com a bebida, Irineu aprende a confeccioná-la e passa a ter contato com uma identidade feminina de nome Clara, Princesa, Senhora ou Mulher, a qual o guiaria por todo seu processo de iniciação. Esta entidade, confundida inicialmente com o Diabo ou com uma cobra106, entregou-lhe uma missão, após ordenar que observasse uma dieta de isolamento na mata por cerca de oito dias, comendo apenas macaxeira insossa. Irineu teria pedido à entidade para se tornar um grande curandeiro, o maior do mundo e para ela colocar tudo o que pudesse curar naquela bebida. A entidade teria rebatizado a bebida de daime, como uma pequena prece: “dai-me saúde, dai-me amor”. Os autores afirmam ainda que Irineu esforçou-se para construir uma identidade própria para o novo uso da bebida, tendo mudado alguns nomes relacionados aos contextos vegetalistas, caboclos ou indígenas, como ayahuasca para daime, “borracheira” (efeito) para “afluído”, Mariri (o cipó) para “Jagube”, “Chacrona” (a folha) para “Rainha”, o que possivelmente dava mais legitimidade social ao grupo de Irineu e Antônio Costa e enfatizariam o “batismo” do daime à cultura local107.

Irineu Serra mudaria-se para Rio Branco em dois de janeiro de 1920 em um momento de migração generalizada para a capital, devido à quebra da economia da borracha. A capital sofreu um inchaço de população, mas ao mesmo tempo, ocorreu um aumento da diversificação da produção agrícola, como a castanha do Pará (Brasil), madeiras, oleaginosas e o comércio de peles e couro de animais silvestres. Logo que chega a Rio Branco, entra para a força policial, retornando, assim, à vida militar, já que havia servido no exército como infante, ainda no Maranhão, e posteriormente logo que chegou à Amazônia, na Comissão de Limites, na fronteira do Acre com o Peru. Segundo MOREIRA & MACRAE (2011, p. 113), a volta de

105 A ambigüidade dos hechiceros ou brujos da ayahuasca é mostrada de forma densa por TAUSSIG (1993), de modo que estes poderiam agir, tanto para o “bem” quanto para o “mal”. Vale lembrar que diversas concepções ameríndias não interpretam o mundo dentro da dualidade bem/mal, de modo que esta é uma visão dos povos influenciados pelo Cristianismo, que colonizaram as Américas.

106 De acordo com MOREIRA & MACRAE (2011, p. 112), a ayahuasca é frequentemente lembrada como um ser espiritual em forma de cobra nas tradições vegetalistas.

107 Para saber mais sobre a iniciação de Irineu Serra, consultar MOREIRA & MACRAE (2011, p-p. 87/102), GOULART (2004), NASCIMENTO (2005), CEMIN (2001), dentre outros.

Irineu à força policial marca uma inversão de papéis em sua vida, já que da condição de perseguido, passou a ser membro da instituição, mas mesmo assim, continuou a fazer uso do daime de forma isolada e discreta. Dentro da força policial, fez algumas amizades que posteriormente lhe defenderiam de autoridades policiais e até de governantes, como o Major Fontenele de Castro, que seria designado três vezes para o cargo de governador do Território Federal do Acre. Em meados de 1930, Irineu se junta a outros agricultores e ex-seringueiros e passa a morar numa Colônia, chamada de Vila Ivonete. Teria ainda trabalhado como operário de obras na administração do governados Francisco de Paula Assis Vasconcelos e em 1932, passaria a trabalhar integralmente como agricultor (MOREIRA & MACRAE, 2011, p. 118).

Em maio de 1930 Irineu inicia o Daime em Rio Branco com alguns de seus companheiros. Sabe-se que, aos poucos, Irineu foi formando uma comunidade de seguidores, geralmente pessoas que foram curadas de febre, malária, impaludismo, etc. Segundo MOREIRA & MACRAE (2011, p. 145), Irineu também recorria a remédios de farmácia, pílulas, urina, ossos velhos, dentre outros recursos mais exóticos, como combinações, dietas sexuais, banhos de ayahuasca, etc. Irineu também usava a bebida para adivinhar as causas da doença em miração108, descobrir os remédios para cada mal, além de fornecer “diagnósticos” de vida ou morte. Segundo relatos, quando era caso de sentença (morte), ele via um lençol branco em miração pousando sobre o corpo do paciente. GOULART (2004, p. 40) relata que os primeiros seguidores de Irineu moravam na Vila Ivonete mesmo. Mas outros de fora da comunidade, muitos desenganados pelos médicos e já sem esperança ou então pela própria escassez de médicos e remédios na região, também o procuravam em busca de curas para diferentes condições. Muitos destes, após serem curados ou terem algum parente curado, acabavam permanecendo na comunidade, onde se sentiam “amparados” e “protegidos”. Nesta comunidade, se aprofundou também as relações de trabalho, já que o Mestre Irineu orientava seus discípulos, amigos e vizinhos a trabalharem a terra comunitariamente, sob a forma de mutirões109.

Segundo MOREIRA & MACRAE (2011, p. 145), Irineu, possivelmente, derivava muitos de seus conhecimentos e métodos de cura das tradições vegetalistas e caboclas, as quais concebem doenças e outros males como resultados de desequilíbrios orgânicos, ou até inveja, feitiços ou panemas. De maneira análoga a um xamã, às vezes empregava o daime apenas para que o paciente pudesse ter uma expansão de consciência para reviver

108 A miração, que vem do verbo mirar do espanhol, é a maneira pela qual os adeptos do Daime chamam as visões provocadas pela ingestão da bebida.

109 O mutirão ou o putirum é um instituto básico das comunidades indígenas (BASTOS, 1979) e também do meio rural brasileiro (GALVÃO, 1959), sobretudo no Nordeste.

intensamente a situação a partir da qual o distúrbio se originou, e nesse novo enfrentamento, superá-lo. A cura era complementada por uma mudança de vida, norteada por princípios morais cristãos. No que se refere à sua ritualística, o daime é uma doutrina musical, onde os adeptos, dentre os quais, alguns recebem hinos110, se organizam ao redor da mesa divididos em fileiras opostas de homens e mulheres, e, após ingerir o daime, bailam durante horas sob o efeito da bebida, cantando os hinos e tocando seus maracás. Para MOREIRA & MACRAE (2011, p. 273), o Daime, em sua ritualística, sofreu influências do Tambor de Crioula, do Baile de São Gonçalo, do Bumba Meu Boi e possivelmente do Tambor de Mina, além de elementos do catolicismo popular, da pajelança e do CECP. Não adentraremos nas minúcias doutrinárias do culto formado pelo Mestre Irineu, o que alongaria demasiadamente o nosso trabalho, até porque tais elementos podem ser consultados através das referências citadas aqui.111

Sobre o ritual, CEMIN (1998) aduz que Irineu seria um Mestre Ensinador, cuja “missão” seria a formação de uma “escola” para o ensino espiritual. Esta religião tem como texto sagrado o “Cruzeiro”, que é uma compilação de hinos recebidos que funcionaria como um “terceiro evangelho", sendo também conhecido como "Evangelho da Floresta" (CEMIN, 1998). De acordo com MOREIRA & MACRAE (2011, p. 375), no seu hinário podemos encontrar referências fragmentárias a personagens bíblicos como Jesus, Maria, José, Salomão e Samuel, ao lado de personagens de outras cosmologias: Curupipiraquá, BG, Princesa Soloína, Papai Paxá, Papai Velho, Mamãe Velha, além de fragmentos interpretativos do esoterismo do CECP e outros elementos poéticos de louvação a Deus. Para CEMIN (1998), Irineu constituiu, a partir de suas sucessivas hierofanias112;

“todo um dispositivo capaz de produzir subjetividade. Sua máquina de produção é composta de diversos elementos: os regulamentos, as hierarquias, o vestuário e seus adereços, a postura dos corpos, a bebida, o tipo de sociabilidade e, sobretudo, seu hinário. Visto que a bebida tem "poder inacreditável", dentro daquela "verdade" e

110 Os hinos são ensinamentos ou letras musicadas recebidas do astral pelo Mestre Irineu e por seus seguidores mais graduados. Esse elemento do Daime pode ser associado à tradição vegetalista dos Ícaros, que são canções recebidas pelos xamãs e através das quais estes realizam as suas curas. De acordo com MOREIRA & MACRAE (2011, p-p. 139/141), a palavra Ícaro é uma curruptela de ikaray, que significa assoprar fumaça para curar, como a prática vegetalista de assoprar fumaça para curar, sobre os doentes ou sobre a ayahuasca a ser servida, como o Mestre Irineu também fazia. Segundo os mesmos autores, além do tabaco para diversos fins de cura, inclusive baixar a “miração”, Mestre Irineu fazia uso em seu culto de um rapé (ou paricá) bem específico (cujos ingredientes são tabaco, sementes de imburana, erva-doce, cravo, pião e cabacinha) e da caissuma (bebida feita de macaxeira, erva-doce e gengibre fermentados), associado ao daime, assim como os vegetalistas associavam a ayahuasca com diversas “substâncias” da floresta como outros psicoativos, perfumes, chás de cascas de árvores, comidas específicas, etc.

111 Para saber mais sobre o Daime, consultar MOREIRA & MACRAE (2011), GOULART (1996, 2002 e 2004), SILVA (1983), dentre outros.

conforme os seus "ensinos", nos marcos, portanto, de sua doutrina, a única capaz de gerar o "Daime verdadeiro". Trata-se de um dispositivo "territorializado" (Guattari e Rolnik: 1986), ou seja, relativo à "cultura da floresta" e circunscrito à uma corporação religiosa que se reconhece composta por daimistas do Mestre Irineu, Filhos de Juramidã. (...) Os hinários “falam do processo de constituição e legitimidade do "Mestre Ensinador" e, a "Lua Branca", enquanto símbolo dominante, funda o "regime da imagem" em sua "polaridade noturna" (Durand, 1988 e 1997), ao mesmo tempo em que prolonga hierofanias anteriores - a Deusa Universal - conciliando, também, os contrários, no casamento simbólico ou hierogamos sagrado entre a Virgem Mãe e o Pai Eterno, o cipó (Banisteriopsis caapi) e a folha (Psicotria viridis), a Força (princípio masculino) e a Luz (princípio feminino). O simbolismo lunar explicita, ainda, o "complexo temático" relativo à regeneração, desse modo, o "Santo Cruzeiro" é instrumento de recuperação, ordenamento e cura do mundo, do corpo e da alma.

CEMIN (1998) ressalta ainda que a novidade do Sagrado no Daime reside no fato de o próprio Mestre Irineu, e sua obra, terem se tornado objeto de divinização, já que as plantas utilizadas na ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psicotrya viridis) há muito são tidas por sagradas (em virtude do modo como suas potencialidades psicoativas são interpretadas nas sociedades indígenas que as usam) sem que necessariamente tornem divinos àqueles que as utilizam ritualmente. Para a autora citada acima, Raimundo Irineu Serra “deve ser considerado em duas dimensões: histórica e transcendental”. A primeira corresponde aos condicionamentos impostos por sua historicidade, já a segunda dimensão é aquela que a transcende, já que “em decorrência de diversas hierofanias sustentadas por práticas sociais, constitui-se a dimensão transcendente, divina, quando então, Irineu passa a ser também, o Chefe Império Rei Juramidam".

Em 1945, Irineu se muda da Vila Ivonete para a Colocação Espalhado na Colônia Custódio Freire, logo mudando o nome do local, que passou a se chamar Alto da Santa Cruz, e, mais adiante, simplesmente “Alto Santo”. Posteriormente, seria registrado o CICLU (Centro de Iluminação Cristã Luz Universal) em 20 de abril de 1971, cuja sede localiza-se, até hoje, no

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