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1. CAPÍTULO I REFERENCIAL TEÓRICO

1.5. Os botos como símbolos culturais e naturais na Amazônia

As espécies animais que compõem a rica fauna do planeta aparecem configuradas como símbolos (totens) entre as diversas expressões culturais de distintos grupos humanos. Podem-se perceber estas representações através nas danças, nos rituais e nos mitos (Cano- Contreras, 2009). Os valores que permeiam as sociedades humanas e os elementos simbólicos associados à vida selvagem influenciam fortemente a eficácia dos esforços de conservação (Ceríaco, 2012).

Os golfinhos de rio são permeados por lendas locais. Manifestações nesta ótica aparecem no folclore amazônico envolvido por tradições com alusões aos animais, entre eles os mamíferos aquáticos, como é o caso do boto. Pescadores do rio Indo acreditavam que um santo que viveu na margem deste rio amaldiçoou uma mulher de uma aldeia próxima transformando-a em um golfinho cego que passaria o resto da sua vida a chorar. Conta a lenda que o golfinho baiji do rio Yangtze dizia ser a reencarnação de uma princesa bonita jogada no rio, depois que ela se recusou a casar com um homem que não amava. Um antigo épico indiano conhecido como a lenda do Mahabharata descreve a descida do poderoso rio Ganges "do céu à terra”, como um cortejo seguido de peixes, tartarugas, sapos e golfinhos (WWF, 2010).

Botos são tidos como entidades do campo das encantarias e juntamente com as iaras, a boiúna e a mãe do rio compõe, segundo Loureiro (1997), as formas míticas do fundo do rio: “as encantarias amazônicas são uma zona transcendente que existe no fundo dos rios, espécie de Olimpo, habitada pelas divindades encantadas no íntimo de todas as coisas, que compõem a teogonia (conjunto de divindades) amazônica” (p.12-13). O rio, neste caso, não tem um papel meramente utilitarista, mas perpassa pelas relações diretas com o imaginário popular. Com esta interação tão estreita com os ambientes aquáticos, pois o rio é fonte de alimento, é a principal via de transporte e de trabalho, também é fonte de inspiração para a gênese dos mitos e devaneios, o rio possibilita atingir um estado de alma diferente de tal forma que passa a enxergá-lo com poderes “mágicos”, pertencente ao mundo das encantarias (Loureiro, 1997; Fraxe, 2004).

Do ponto de vista da conservação, entretanto, os poderes sobrenaturais atribuídos golfinhos na Amazônia podem atualmente representar ameaça às populações dos referidos cetáceos. Alguns trabalhos sugerem que este pode, de fato, ser o motivo, e os botos estão sendo propositalmente mortos para abastecer um comércio (Da Silva & Best, 1996, Alves &

Rosa, 2008; Gravena et al, 2008 ). Os mercados do Ver-o-Peso na grande Belém e do Guamá, sustentam, há décadas, a livre comercialização de órgãos de botos-cinza e/ou tucuxi (Sotalia sp.) nas mais variadas formas de preparo, refletindo o apelo da lenda entre os amazônidas (Sholl et al. 2008; Gravena et al, 2008; Rodrigues et al., 2012; Bitencourt et al., 2014). Nos mercados de Iquitos, no Peru, McGuire & Aliaga-Rossel (2010) reportaram a comercializam de dentes e gordura de golfinhos, porém não confirmaram se os animais foram mortos intencionalmente para este fim e se existe uma demanda direcionada para atender esta economia local.

Apesar de outras espécies deste grupo como baleias e peixes-boi figurarem personagens nas tradições e relatos dos vários grupos sociais da Amazônia, decidimos por manter apenas os relatos de lendas que se referem aos botos, pois percebemos ao logo da tese uma ênfase maior na região amazônica das histórias que remetem a estes últimos, além da escassez de literatura e relatos nas regiões pesquisadas que remetessem à outras espécies de mamíferos aquáticos.

Os golfinhos são atores importantes no imaginário das populações que vivem na Amazônia, e esta afirmação refere-se particularmente ao boto. Muitas lendas enfocam a transformação do golfinho em homem e vice-versa. Para os moradores de localidades rurais, o boto representa um papel análogo ao da sereia, ou seja, enquanto a sereia canta para seduzir os pescadores, o boto dança para seduzir as moças ribeirinhas. Sob a influência dessa lenda, diz que qualquer filho de pai incógnito é filho de boto (Cascudo, 1978; Slater, 2001; Alves & Rosa, 2008; Silva, 2007). As pessoas acreditam que aquele que mata um boto do gênero Inia sp., popularmente chamado na Amazônia de boto-rosa ou boto-vermelho não conseguirá caçar outro animal e sofrerá continuamente punições (Alves & Rosa, 2008). Entre os povos Inuits existe a crença de que os espíritos dos animais que foram caçados retornam em busca de vingança, e as consequências serão sentidas desde os que participam da caça até os seus familiares (Serpell, 2000).

As narrativas de lendas sobre botos variam conforme a região, porém guarda entre si um eixo central quando se refere ao poder de sedução do animal que se transforma em homem a fim de se aproveitar de moças em festas, engravidando-as em seguida (Maués, 2006; Slater, 2001; Cravalho, 1999; Paschoal et al., 2013). Na região do Salgado, nordeste paraense, Maués (2006) colheu uma série de relatos em que pessoas se referiam ao boto macho e ao boto fêmea como seres sedutores e atraentes. Esse mesmo autor chama atenção para a questão do espaço e do tempo das narrativas, pois nunca ocorrem no presente e muito menos no local onde se mora, mas em algum tempo do passado e lugar distante.

Acredita-se que parte das histórias contadas sobre os botos na Amazônia ocorra pelo fato do mesmo ser visto como animal que foge aos padrões gerais, ou seja, é anômalo, diferente, pois se trata de um peixe especial que mama e que apresenta nadadeiras, segundo relato de pessoas que vivem ao longo dos rios na Amazônia (Maués, 2006). Tais histórias são comuns na maioria dos países amazônicos e parecem ter se originado no período da colonização quando os europeus chegavam às comunidades costeiras em barcos pelos rios (Trujillo et al., 2011).

Segundo Rodrigues (2008), a lenda do Boto tem sido transmitida ao longo de gerações, replicando informações sobre o boto-vermelho em uma extensa área da Amazônia. Essa lenda pode ser considerada como uma “variante cultural” de extremo sucesso ou “meme” (fragmentos de informação guardados nos cérebros humanos e replicados entre as pessoas- conceito biológico para definição de memes, Dawkins, 1979). Esse “meme” parece ter reforçado as conexões entre as populações locais e os botos. O conhecimento é repassado geralmente por alguém da família e as crianças vão incorporando essas informações.

Do ponto de vista dos tabus alimentares, botos geralmente são evitados para consumo, com exceção de algumas comunidades que ingerem a carne de forma oportunista (Silva, 2007). Segundo Garine (1995), tabus relacionados com alimentação são definidos como atitudes e comportamentos negativos em relação a alimentos que não devem ser consumidos ou manipulados pelo medo das consequências negativas inevitáveis. A evitação é criada geralmente pela aparência do animal, pelo cheiro forte conhecido popularmente como “pitiú” e por ser visto pela maioria dos pescadores como principal competidor, pois frequentemente captura peixes no espinhel e estraga as redes de pesca (Plagáynyi & Butterworth, 2002). Na cosmologia Desâna (Alto rio Negro), o boto é um wáimahsá (peixe-gente) dos antigos, por isso não é morto nem comido pelos índios (Ribeiro, 1995; Silva, 2007).

No contexto religioso, dependendo da crença, o boto pode se manifestar de várias formas, na pajelança pode ser considerado “bicho do fundo” ou ainda ser encantado. Nestas condições eles são pensados como perigosos, pois podem provocar maus-olhados (Maués, 2005). Dos Santos & Alves (2007) encontraram em contexto de brincadeirinhas ribeirinhas aspectos religiosos ligados à religião cristã quando ao valorizarem histórias bíblicas reforçavam um caráter negativo, relativo ao demônio voltados aos personagens do folclore amazônico, um deles o boto.

As relações do homem com os botos são aspectos ainda pouco estudados no campo das etnociências, ora achamos literaturas que discorrem apenas sobre as lendas, ora vamos encontrar aquelas que baseiam suas hipóteses apenas em características biológicas. Análises

relativas dessas bibliografias tendem a separar as interações que resultam da figura do boto como uma ameaça real- os conflitos diretos com a pesca e as que resultam da figura do boto como ser mítico e sobrenatural- as lendas, os usos mágico-religiosos para cura de enfermidades tratadas com as partes do corpo dos botos e os amuletos para atrair a pessoa amada. Além destes aspectos é interessante entender como a lenda do Boto tem se modificado ao longo do tempo, agregando ou perdendo informações acerca das relações das atitudes das pessoas frente a estes animais (Slater, 2001; Maués, 2006; Rodrigues & Silva, 2012).

Diante das premissas teóricas apresentadas neste primeiro capítulo, as perguntas norteadoras da tese foram:

Quais os conhecimentos etnozoológicos de estudantes de ensino fundamental a respeito da mastofauna aquática da Amazônia (botos, baleias e peixes-boi)?

 De que forma tais conhecimentos podem contribuir para a conservação dos mamíferos aquáticos?

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