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OS CONCEITOS DE RESISTÊNCIA E DISSIDÊNCIA NO CINEMA PORTUGUÊS

No documento Revisitar a teoria do cinema (páginas 187-195)

Conceitos Teoria

OS CONCEITOS DE RESISTÊNCIA E DISSIDÊNCIA NO CINEMA PORTUGUÊS

André Rui Graça

Na senda do que tenho explorado anteriormente no âm- bito da Teoria dos Cineastas, gostaria de apresentar, debater e desconstruir dois termos que têm vindo a ga- nhar o seu espaço: dissidência e resistência. O campo da teoria dos cineastas é uma abordagem ainda relati- vamente nova, até certo ponto ainda experimental e em busca de encontrar as suas delimitações. Este artigo interessa-se por abordar termos específicos, que en- capsulam por vezes ideias muito complexas acerca de ideologia, forma de fazer cinema, forma de o pensar, e acerca dos quais discursos inteiros são construídos. O que se segue são notas acerca de uma leitura próxi- ma do texto “O Elogio da Dissidência”, parte do livro “O Cinema da Não-Ilusão”, de João Mário Grilo (2006). Dissidência e resistência são dois termos que integram, hoje, a história do cinema português e a história dos debates e do pensamento sobre o cinema português, ocupando, até, um lugar relativamente privilegiado, no- meadamente por entre os cineastas. São dois termos recorrentes e perfilhados por cineastas tão díspares como João Mário Grilo, João Botelho, António-Pedro Vasconcelos, ou Miguel Gomes. O objetivo aqui é aferir até que ponto estes termos, que são semelhantes mas não iguais, têm representado uma ética (ou se têm tra- duzido numa) e consubstanciam um aporte teórico.

Os termos dissidência e resistência, em termos gerais e não contextuais, remetem, respetivamente, para uma ideia de separação e de oposição, ou, no limite, defesa contra um ataque. E é, de facto, neste sentido que a questão da dissidência e da resistência surge no cinema português. Resta, portanto, escrutinar que separação e que combates são estes.

Embora este léxico tenha antecedentes tão longínquos quanto o Cinema Novo, terá sido em 1999 que foi trazido para primeiro plano, num diálogo entre Pedro Costa, João Botelho e João Mário Grilo, em Itália, aquando de uma mostra de cinema português organizada em Turim. Esta conversa fi- cou na altura registada no catálogo da mostra com o título “Uniamoci nella dissidenza”, a partir da expressão de João Botelho a que iremos voltar mais tarde, “unamo-nos na dissidência”. Mais tarde, em 2006, a mesma conver- sa haveria de ser traduzida e publicada em Portugal no já referido de João Mário Grilo.

O diálogo em causa surge a propósito de uma caracterização ontológica do cinema português e embora se disperse de tempos a tempos, encontro um polo central na descrição do que tem sido o cinema português e o que deve ser ou não. O discurso é governado primeiramente, pela ideia de um modo de produção intrinsecamente português – não tanto pelos temas ou filiações estéticas, mas por forças das circunstâncias – ideia essa que é ra- pidamente descartada em prol de uma visão internacionalista do cinema português por parte dos seus cineastas. Rapidamente o diálogo entra no campo da discussão e crítica política, algo que está intrinsecamente ligado às práticas criativas dependentes de apoios e legislação. Quando interpela- do a propósito da escassez de financiamento do cinema português, Botelho tenta contrariar a balança acrescentando os seguintes argumentos: como os filmes respiram essa liberdade (não a liberdade económica, porque, aí sim, há “censura”), os “filmes acabam por ter a grandeza das coisas que o dinheiro não paga: a grandeza da durée, do tempo (que já desapareceu praticamente de todo o lado) e da composição. Não há dinheiro para filmar a acção, mas há tempo para a luz, a composição. E nós sabemos fazer isso.

Para além da descrição dos elementos que surgem, por via das circunstân- cias, no cinema português, Botelho introduz aqui um elemento no qual vale a pena atentar e a que se regressará mais adiante: a oposição binária, que perpassa muito do discurso do cinema português sobre si mesmo e da sua visão no mundo: nós, por um lado, a fazer (e a saber fazer) de uma certa for- ma, e os outros, por outro, que não fazem nem sabem nem querem fazer de forma semelhante – desde logo o cinema americano, numa acepção híper- -real construída em torno de uma generalização.

Na mesma linha de pensamento, quando interrogado sobre o futuro, Pedro Costa responde da seguinte forma: “É perguntar aos Professores da Escola de Cinema que desviam os olhos quando reconhecem o jovem apaixonado que eles um dia foram. E aos broncos das televisões públicas e privadas. Aos ministros e aos políticos que promovem os negócios dos poderosos e matam à nascença os pequenos produtores e os primeiros filmes. Restam os casos: um rapaz, uma rapariga. Conheço alguns” (Grilo, 2006: 41). Eis, portanto, como veremos, a definição dos resistentes – daqueles que, segundo Costa, se colocam nos antípodas daqueles que se foram perdendo pelo caminho, dos programadores medíocres e dos políticos vendidos. Por seu turno, João Mário Grilo interpreta e parafraseia as palavras de Costa do seguinte modo, acentuando um outro termo que merece igual destaque no futuro, a ques- tão da “liberdade”: “não é fomentada nos jovens essa ideia de liberdade e de invenção. Falam em eficácia e sucesso em vez de arte e ideias” (Grilo, 2006: 42).

Por fim, Botelho remata com aprumo, pegando na questão das (novas) ideias e concatenando com a resistência e a dissidência. “Troco tudo por um novo modo de produzir. Troco tudo por um novo conceito. Já não é mais a re- sistência que nos deve unir. Juntemo-nos na dissidência” (Grilo, 2004: 43). Eis-nos chegados ao cerne da questão. Neste ponto, é necessária a intro- dução de algum contexto histórico para que seja possível destrinçar o que possam ser a resistência e a dissidência para estes cineastas – e, por acres- cento, para o contexto do cinema português.

Para Paulo Filipe Monteiro a resistência do cinema português provém do contexto socio-cultural do qual brotou o Novo Cinema Português: “Ficou até hoje uma ética de resistência e mau comportamento, que parece her- dar, conforme os casos (mas muitos deles simultaneamente) da oposição ao Estado Novo, do vanguardismo dos artistas anti-académicos, e uma certa aristocracia que despreza a ética burguesa e pequeno-burguesa. Com efei- to, em Portugal, a produção cinematográfica caracterizada por uma crónica escassez de recursos é normalmente apelidada de “artesanal”, encontrando no termo “industrial” o seu antónimo” (Monteiro, 1995: 796). Aliás, assimi- lando já a escolha de palavras aqui em apreço, Jacques Lemière destaca, num ensaio publicado em 2013, que um dos pilares do cinema português pós-74 é precisamente a “resistência a qualquer normalização industrial” (Lemière, 2013: 44-45).

Apercebendo-se que nunca poderiam igualar outras produções em termos tecnológicos, alguns cineastas desde os anos 60, de forma mais ou menos consciente (como tem sido agora nos últimos anos explicitamente declara- do), poder-se-á dizer que fizeram das fraquezas forças. Este discurso parte do princípio que reverteram em seu favor aquilo que de outra forma seria um obstáculo e assimilaram essa circunstância material enquanto característi- ca única e diferenciadora. Como nos explica Daniel Ribas, o cinema nacional (o “dissidente”, como descrito por João Mário Grilo, Botelho e Costa) foi en- carado como resistência ao modelo importado, tido como sendo de forte cariz industrial. E se a “condicionante económica resultou em métodos de produção mais artesanais, também foi construído, da parte dos cineastas, um discurso de proteção em defesa deste cinema” (Ribas, 2014: 132). Contudo, é mais uma vez João Mário Grilo um dos principais tradutores e explicadores da asserção de Botelho. Numa síntese histórica lançada 7 anos depois da mostra de Turim, o autor parece falar, em tom de manifesto Jdanoviano, por todos os seus colegas realizadores, presentes e passados, do seguinte modo: “Recusando ser colonizada pelo cinema americano e pela ideologia industrial que lhe está associada, a cinematografia portugue-

desenvolver ao longo dos últimos 30 anos uma estratégia de combate pela afirmação da sua dissidência em relação ao modelo americano de coloniza- ção imaginária do planeta” (Grilo, 2006: 33). Este combate, desenvolvido em múltiplas frentes e assumindo formas muito diversas – passando as mais importantes pela forma dos próprios filmes (eis aqui uma referência à dita artesanalidade e à questão estética) – foi também, politicamente (e aqui começamos a entrar na segunda acepção da palavra), contra os agentes nacionais do cinema de Hollywood (entre os quais o próprio poder político) figuras pardas de um sistema que o cinema português nunca quis tomar como seu, recusando, nesse gesto, submeter-se à sua hegemonia, à sua lin- guagem, à sua forma de contar o mundo, e recusando comprometer-se com essas imagens de ilusão em que os dominadores se habituaram a ver e a rever, numa história circular e interminável, as razões de ser da sua própria dominação.

A reboque desta citação, surge uma outra expressão que se compagina com a questão da dissidência – que, como vimos, adquire várias dimensões, mas duas fundamentais - e se interliga com a resistência: o combate. Tal como a ideia de resistência implica uma reação, o combate sugere pronti- dão e é algo que encontra a sua tradição no cinema português no tempo da agremiação dos intervenientes do Cinema Novo em torno do projeto do Centro Português de Cinema, do Ofício do Cinema Português e da criação da Lei 7/71 – tradição essa que foi encontrando continuidade ao longo dos anos, quando necessário pugnar pela manutenção dos mais fundamentais interesses estabelecidos durante as décadas de 1960 e 1970. Tudo isto sem prejuízo das divisões sempre existentes no meio, mas que, comparadas com questões de fundo como a proteção de um cinema economicamente frágil, com carências a muitos níveis e com tendências de arte e ensaio, se afigu- raram como superficiais. Por outras palavras, antes da batalha acerca de quem seria protegido, é sempre necessário primeiro travar a guerra dos termos da proteção. Como afirmou Paulo Filipe Monteiro, o cinema novo caracterizou-se por uma extraordinária capacidade organizativa (Monteiro, 2001: 306).

Do mesmo modo que é enquadrável historicamente a razão de ser do “com- bate” referido por João Mário Grilo, o adversário para esse mesmo combate é identificável: o cinema de Hollywood, que ganhou preponderância mun- dial através do seu estratégico estabelecimento nos diversos continentes após as grandes guerras e da implementação de uma visão comercial à es- cala global. Com efeito, como nos revelam números do Instituto do Cinema Audiovisual e da Pordata, o panorama do consumo cinematográfico em Portugal durante os últimos 40 anos é marcado por uma decrescência con- tínua da presença de cinema europeu e português das salas até meados da década de 1990. É durante este período que se consolida o hábito de visuali- zação de cinema americano através de três fatores principais: o domínio de distribuidoras multinacionais (multinacionais essas que passaram a domi- nar igualmente o mercado dos multiplex), com pouco interesse na exibição de cinema de autor, a entrada “em cena” de êxitos de bilheteira que passa- ram a pautar o gosto popular, e uma cultura televisiva com proximidade dos padrões do cinema hollywoodesco. Esta circunstância, independentemente daquilo que possa ser considerado acerca dela, foi olhada pelos cineastas como uma ameaça à sua liberdade e existência.

Com efeito, o discurso em torno da resistência e da dissidência, mais do que deixar transparecer uma ideia de repúdio, separação e dicotomia, encapsula uma dimensão de percepção de perigo. Quer portanto isto dizer que a ideia que é veiculada pelo cinema hollywoodesco imputa-lhe uma análise muito mais elaborada do que meras questões estéticas. Na verdade, considera-a num contexto comercial, estética e politicamente agressivo. Mesmo não ha- vendo hipótese nem razão de ser de competição (cada uma das categorias opera nos seus termos), o desinteresse manifesto das majors pelas atividades do cinema de autor e o seu controlo do espaço cinematográfico funcionam como que uma censura para os cineastas nacionais – e é precisamente essa visão que preferem conservar discursivamente quando referem o cinema português enquanto cinema resistente e dissidente. Neste sentido, o cinema português, de acordo com esta visão, afirma-se em grande medida pelo que não é. Tal como o título do livro de Grilo, o Cinema da Não-Ilusão, como

nos lembra Andrew Higson, a ontologia e construção identitária de uma parte considerável do cinema artístico e português passa por não ser, não pactuar, não fazer, não seguir (Higson, 1989). Do lado inverso, o discurso positivo (mas que no entanto se ancora no repúdio de um outro significante) polariza-se, por exemplo, em torno dos conceitos de liberdade, resistência e dissidência. A mitologia do cinema português constrói-se, assim, na têm- pera e provação de um suposto combate, constante e incontornavelmente necessário, dos quais os seus filmes são testemunhos tão válidos quanto os atos extra-cinematográficos são um legado de sobrevivência e resiliência. É precisamente neste ponto que os termos dissidência e resistência consubs- tanciam, em contexto, um aporte teórico – ao mesmo tempo que contam uma parte da história do cinema português e da sua auto-imagem, veicu- lam uma ideologia, refletem uma prática, desvendam receios e afirmam posições.

Esta é uma visão do cinema que ganha relevância e propósito em função de um outro, de uma ameaça permanente. Em suma, é imprescindível uma percepção de perigo para que exista uma resistência (só se resiste contra algo ou alguém), que é, por definição uma reacção e não uma acção, do mesmo modo que é necessário um vilão para que exista um herói e um propósito para que se criem combatentes. É de uma visão Quixotesca, que vê no cinema de Hollywood uma ameaça, que nasce a ideia de resistência. Um universo em aparente estado permanente de alerta (condição essa que é exacerbada precisamente pela contingência dos favores políticos, da legis- lação e da precariedade de um sector de plantão, pronto a reagir ao próximo sobressalto que o possa beliscar). Já a dissidência, mais do que uma oposi- ção, é caracterizada pelo ato de afastamento, de fuga, de corte (como uma dissecação), no fundo, de inovação.

A forma como Botelho finaliza, ao declarar que troca tudo por um novo con- ceito e que, caso a resistência se tenha esgotado resta a dissidência, deixa transparecer em largo espectro toda a distância que vai, no contexto do ci- nema português, entre a dissidência e a resistência. Com efeito, percebe-se que, por um lado, a resistência refere-se ao contexto de combate contra o

modelo comercial americano e prende-se com a esprit de corps que caracte- rizou o cinema português contemporâneo desde o Cinema Novo. Por outro lado, a dissidência prende-se num sentido mais estrito com uma forma des- formatada de fazer cinema; com uma abordagem posterior à resistência e ao desgaste que esta produz, mais madura, mais estética. Apontar baterias não contra um modelo, mas sim na busca de novos horizontes, de novos conceitos e uniões. É esta uma visão do cinema que é proferida ainda num contexto combativo, mas que pode ser lida como a aspiração ao zénite da liberdade e da invenção; do desagrilhoamento perante os modelos vigentes, sejam eles americanos, franceses, ou, até mesmo, portugueses. Encontrar alternativas, como sugere Botelho, fazendo, assim, da dissidência a resis- tência. É assim esta a concepção de um cinema que resiste contra o seu desaparecimento material (seja ele provocado ou não por um outro) ao mes- mo tempo que clama por uma divergência do statu quo e que faz da recusa a afirmação do seu carácter.

Referências bibliográficas

Grilo, J. M. (2006). Cinema da não-ilusão: histórias para o cinema português. Lisboa: Livros Horizonte.

Higson, A. (1989). “The Concept of National Cinema”. In: Screen 3(2), pp. 36-46.

Lemière, J. (2013). O cinema e a questão de Portugal após o 25 de Abril de 1974. In: João Maria Mendes (ed.), Novas e velhas tendências no cinema português contemporâneo, pp. 38-63. Lisboa: Gradiva.

Monteiro, P. F. (1995). Os guiões de ficção do cinema português entre 1961 e 1990. Tese de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa.

______ (2001). Uma margem no centro: a arte e o poder do “novo cinema”. In: Luis Reis Torgal (ed.), O cinema sob o olhar de Salazar, pp. 306-337. Lisboa: Temas e Debates.

Ribas, D. (2014). Retratos de família: a identidade nacional e a violência em João Canijo. Tese de Doutoramento, Universidade de Aveiro.

BETWEEN ANTHROPOLOGY AND THE SENSIBLE:

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