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2 Democratização, Descentralização e Participação

2.1 Os condicionantes do novo sistema: breve panorama histórico

A intensificação da crise financeira na economia brasileira durante os anos 70 associada à forte pressão política gerada pela ineficiência do Estado em atender as novas demandas sociais, refletiu-se fortemente nos programas sociais e políticos e exigiu um reordenamento da postura político-institucional do sistema federativo brasileiro (AFFONSO:1996; MELO:1996; ALMEIDA:1996; DRAIBE:1986).

A crise, ao comprometer a retomada do desenvolvimento e inibir a eficácia da plataforma das políticas públicas, desestabilizou o pacto de poder sobre o qual se sustentava o regime militar. Esta desestabilização trouxe para a pauta de discussão a dependência financeira de Estados e Municípios em relação ao governo federal e desencadeou um movimento crescente dos governos subnacionais (AFFONSO, 1996).

A emergência do movimento municipalista, que envolvia diferentes espectros partidários somado à emergência e multiplicidade dos movimentos sociais assessorados pela igreja católica e por grupos técnicos de profissionais liberais - que passaram a reivindicar do Executivo Municipal melhores condições de infra-estrutura urbana, ampliação e maior qualidade nos serviços das áreas sociais e direito de participar da gestão da sociedade -, fez com que o movimento de democratização/descentralização aparecesse na agenda política brasileira como a mudança necessária à reorganização das bases institucionais de um novo poder.

"No contexto da luta contra um regime autoritário de fortes traços centralizadores, a descentralização se tornou, para as oposições, sinônimo de democracia, de devolução à cidadania da autonomia usurpada pelos governos militares. Segundo a percepção oposicionista dominante na época, a descentralização era condição para o aumento da participação, e ambas compunham uma utopia democrática cujo horizonte remoto era o autogoverno dos cidadãos" (ALMEIDA, 1996, p. 91).

De acordo com Almeida, as forças que se opuseram ao autoritarismo e impulsionaram a redemocratização convergiam quanto à necessidade de profundas reformas nos programas e políticas da área social, consideradas ineficientes e iníquas. O Processo de descentralização aparece, neste contexto, como meio de reestruturação do aparelho estatal de gestão das políticas públicas de corte social e, portanto, como condição para atingir esses objetivos.

Neste cenário de mudanças na dinâmica de intervenção pública e adaptação as modalidades de gestão destas políticas, podemos identificar duas diferentes abordagens sobre o entendimento do papel do Estado na ordem social e econômica. De um lado, a neoliberal, que propõe o rompimento com o modelo de Estado intervencionista keynesiano e prioriza um Estado mínimo, onde o mercado exerce as funções produtivas e regulatórias. De outro, a perspectiva social democrata, que através de reformas econômicas e sociais, busca constituir um Estado forte, capaz de superar a crise do welfare state brasileiro e garantir a democratização da gestão e a construção da cidadania (MENDES: 1998).

Percebe-se no campo das políticas sociais, em especial, no sistema de saúde brasileiro, que a descentralização estatal aparece sob a perspectiva social democrata. Isto é, a racionalização da aplicação dos recursos, melhorando o atendimento e ampliando a cobertura dos serviços, constitui o foco central da Reforma do Estado, na medida em que passa a garantir, à população, o acesso eqüitativo a bens e serviços.

Para Sônia Draibe, citado por Almeida (1988, p.91), no terreno próprio das políticas sociais, “a proposta descentralizadora brotou da critica ao padrão de proteção social construído pelos governos autoritários: hipercentralizado, institucionalmente fragmentado e iníquo do ponto de vista dos serviços e benefícios distribuídos”.

A nova Carta Constitucional de 88 ao alterar as regras do jogo e definir um novo arranjo federativo com significativas transferências da capacidade decisória, funções e recursos da União para Estados e Municípios, induziu os entes da federação a assumir uma série de responsabilidades e atribuições nas áreas sociais. Ou, dito de outra forma,

os municípios brasileiros passaram a executar importantes tarefas, antes conduzidas pelo poder central, como, por exemplo, assegurar as condições mínimas de bem estar social às suas populações e a estabelecer um novo tipo de relacionamento com o setor privado, visando promover as potencialidades econômicas do âmbito local. “Esse novo formato do Estado modifica a agenda tradicional de Integração social e regional e de coesão política, especialmente o papel de cada nível de governo no pacto federativo, gerando o desafio de redesenhar novas formas de organização e gestão públicas” (SOUZA, 1996, p. 103).

Entretanto, para que ocorra a descentralização e os Estados e Municípios passem a assumir funções de gestão de determinadas políticas públicas não basta que a União se retire de cena. Como considera Arretche (1999), em um estado federativo, caracterizado, por um lado, pela efetiva autonomia política dos níveis subnacionais de governo e, de outro, por expressivas desigualdades regionais e grande número de municípios fiscal e administrativamente fracos, um processo de transferência de atribuições da gestão de política social para os municípios jamais pode ser considerado espontâneo ou automático. Para a autora, “a assunção de atribuições em qualquer área de políticas públicas – na ausência de imposições constitucionais – está diretamente associada à estrutura de incentivos oferecidos pelo nível de governo interessado na transferência de atribuições” (p. 119). Isto implica que o processo de descentralização das políticas públicas depende da implementação de estratégias bem-sucedidas de indução para se obter a adesão dos governos locais.

De acordo com Arretche, no Brasil pós-88, os governos locais aderem à descentralização a partir de um cálculo onde são avaliados os custos e os benefícios prováveis dessa decisão. Isto é, os representantes das administrações locais antes de vir a assumir determinadas funções de gestão na área social realizam um cálculo racional sobre três possíveis custos. O primeiro e o segundo dizem respeito aos custos financeiros e políticos. E o terceiro derivado dos anteriores, está diretamente associado

à estrutura de incentivos oferecidos pela União na ausência de imposições constitucionais.

Um exemplo radical de descentralização que visa à cooperação entre as instâncias de governo para alcançar fins comuns e que contrapõe custos políticos a custos financeiros, se encontra no Sistema de Saúde Brasileiro (SUS). Os custos financeiros dos governos locais em aderir e se adaptar as novas regras de uma das modalidades do SUS são muito menores do que os custos políticos em não aderir. Isto porque existe uma regra constitucional de universalidade do atendimento em Saúde e mecanismos de operacionalização do SUS que atribuem à responsabilidade política pela oferta, quantidade e qualidade ou não dos serviços às administrações municipais.

Na próxima seção, discutiremos as características mais gerais da reforma que redefiniu o perfil do Sistema de Saúde brasileiro e de seus instrumentos reguladores próprios que modificou o modelo de prestação de serviços – vigentes no período militar – e transferiu aos governos subnacionais (Estados e Municípios) a tarefa de gestão dos atos e procedimentos médicos (ambulatoriais e hospitalares) do setor público e privado.