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Os conselhos tutelares e seus limites

No documento Estudos de Sociologia n 36 (páginas 33-41)

Uma etnografia do antropólogo francês Bruno Latour (2004) sobre o poderoso

Conseil d’Etat francês revela um cotidiano de conversas, telefonemas, pressões e

conchavos, comprovando a banalidade do fazer jurídico. Outras questões decorrem das consequências da judicialização. Na medida em que os movimentos sociais têm objetivos ou demandas parciais seu potencial político é limitado, não somente em termos da sua capacidade de mobilização, mas, também em termos de seu tempo de vida. É por isso que o descrédito dos partidos políticos, cuja função clássica é representar/defender interesses mais amplos, referidos às classes sociais, constitui um problema para o desenvolvimento da democracia. A resolução dos conflitos pela via judiciária desloca a arena da luta fazendo com que o juiz seja o grande e exclusivo árbitro.

Desta maneira, por um lado temos a desmobilização política e a perda dos objetivos maiores de transformações sociais assim como o refluxo dos movimentos sociais e o aparelhamento dos partidos políticos. Em contrapartida, observa-se a transformação do Congresso numa arena de disputas em que as bancadas religiosas crescem assustadoramente dado que são elas os substitutos da representação política das classes populares. O trabalho político que os movimentos sociais faziam décadas atrás, hoje está sendo feito pelas diversas denominações dos evangélicos. Essa influência é notória na disputa por cargos nos vários organismos de participação democrática, como os conselhos de saúde.

Os Conselhos Tutelares, criados em 1990 com o objetivo de efetivar o ECA em nível dos municípios, constituem um bom exemplo de um órgão que não é vinculado ao Judiciário e sim ao Poder Executivo (prefeituras) e goza de autonomia. Eles são criados por iniciativa do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Segundo o art.132 do ECA “em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local pelo mandato de três anos, permitida uma recondução.” Para se ter uma ideia da importância crescente dos Conselhos Tutelares, basta citar a cidade de São Paulo onde existem, hoje, 44 Conselhos Tutelares. Na última eleição, realizada em outubro 2011, cerca de 200 mil pessoas votaram (basta morar no município e ter título eleitoral). Os candidatos chegaram a 1.012 disputando 230 vagas, vale dizer 23 candidatos por vaga.

Ademais de uma demonstração de efetiva participação popular, a disputa por um cargo nos Conselhos Tutelares também revela a crescente participação de candidatos pertencentes às igrejas e seitas religiosas, reforçando as dificuldades do laicismo na República brasileira. À diferença dos anos 1970 em que a esquerda

laica e a esquerda católica da Teologia da Libertação tinham forte presença nos movimentos sociais, a hegemonia da ala mais conservadora da igreja católica possibilitou o aparecimento de outras correntes religiosas que gradativamente ocuparam o espaço dos católicos de esquerda. Ao mesmo tempo, o processo de redemocratização permitiu a reorganização partidária, levando ao surgimento do Partido dos Trabalhadores - PT e ao deslocamento de muitos de seus militantes de base para a arena da política partidária, com crescente afastamento de suas bases de origem.

Assim, também os evangélicos e outras seitas religiosas ganharam força nos bairros das periferias urbanas e aos poucos passaram a atuar politicamente no Congresso. Evidentemente que, da mesma maneira que a igreja católica, são conservadores em tudo ao que concerne aos direitos reprodutivos ou reconhecimento dos direitos dos homossexuais. Em consequência, muitas decisões do Congresso dependem e dependerão da correlação de forças entre bancadas religiosas e laicas. Ao mesmo tempo, as camadas médias e altas cada vez mais se secularizam e rejeitam entraves ou restrições ao livre exercício da sexualidade, às novas famílias e rearranjos familiares. Nesse sentido, como já foi dito, o IBDFAM pode ser considerado como a instituição mais progressista com respeito ao direito de família, não obstante a defesa que faz da judicialização das relações familiares, como no caso da lei da alienação parental.

Concluindo

De tudo o que foi dito, cabem algumas considerações. De um lado, há o fato objetivo do fenômeno da judicialização, um fato social, tal como descrito por Emile Durkheim. Fenômeno esse que é mais peculiar nas democracias ocidentais, como na França, Alemanha, sem se falar dos Estados Unidos. Nesta medida, não se trata de dizer se é bom ou ruim, mas, de entender suas consequências. A judicialização nos interessa em três dimensões: a dos legisladores; a dos agentes da justiça e a de cidadãs e cidadãos envolvidos em disputas jurídicas.

O Legislativo, transitório, mudando a cada eleição, dependendo do apoio dos eleitores e do financiamento das campanhas, parece mais vulnerável às pressões de grupos de interesse, tanto financeiros como religiosos. Assim, um projeto de lei pode rolar anos pelas duas casas do Congresso até ser sancionada pelo Executivo.

O poder judiciário goza de prerrogativas únicas, como a vitaliciedade e autonomia financeira garantida constitucionalmente. O estatuto de funcionários especiais de que goza a magistratura é materializado, por exemplo, no direito

à pensão igual ao último provento. Em outros termos, trata-se de um estrato privilegiado. Nessa medida e dada a transitoriedade e rotatividade dos cargos eletivos, o Judiciário poderia ser o salvaguarda dos direitos dos cidadãos. Mas a origem social e a formação teórica ministrada na maior parte dos cursos de direito, está dominada pelo formalismo jurídico, pelo predomínio do direito contencioso e pelo distanciamento dos problemas sociais da realidade brasileira.

A terceira dimensão que nos interessa é a da relação da judicialização com o exercício da cidadania. Nesse sentido, tomamos o direito de família como exemplo da dinâmica do processo de judicialização da sociedade. O interesse da justiça de família reside, antes de mais nada, em sua conexão com a realidade factual, porque, como bem observa Maria Berenice Dias (2014), uma das mais citadas autoras de vanguarda na jurisprudência atual, o fato de alguma coisa estar fora da lei não significa que não exista.

Está em estudo no Legislativo da proposta denominada de Novo Estatuto da Família, de autoria da senadora Lidice da Mata. Este estatuto legitima a existência de famílias paralelas, definindo direitos. Em outras palavras, o novo estatuto deve garantir direitos a ambas (ou mais) famílias de um indivíduo que, anteriormente, seria preso por bigamia. Nesse sentido, não é mais o casamento que produz a família e sim a convivência e o cuidar. O que, evidentemente, amplia em muito as possibilidades de famílias.

Todas essas mudanças supõem uma rede de interesses e grupos que se articulam na defesa da diversidade sexual e familiar, tendo seus teóricos em advogados e parlamentares. Já mencionamos a importância do IBDFAM na formulação e defesa das mudanças do direito da família. No Boletim de Jurisprudência do IBDFAM os associados podem ler a íntegra de julgamentos que consagram as ideias progressistas de juristas que também são membros do IBDFAM, caso de Maria Berenice Dias que é das mais citadas quando se trata de novas jurisprudências, como já foi assinalado. Assim, pode-se dizer que a judicialização pode assumir conotações democráticas e igualitárias ou classicistas e tradicionalistas.

Mas é preciso ser dito que o maior problema é a própria família e a precariedade dos equipamentos públicos para crianças, a começar pelas creches e escolas primárias. A psicóloga Fúlvia Rosemberg cunhou a expressão de pais infantofóbicos para definir a omissão pública na questão das creches e escolas. E, finalmente, chegamos às famílias com pais e mães de carne e osso, capazes de amar, mas, também de usarem violência verbal ou física. Como se sabe, as crianças são especialmente vítimas de violência de familiares e a violência doméstica é uma realidade com que nos deparamos cotidianamente. As mesmas leis ou jurisprudências que se propõe a defender o melhor direito da criança pode ser instrumento de luta

dentro do casal (hetero ou homo) pela guarda dos filhos ou então pelo desejo de desincumbir-se dele. A denúncia de alienação parental pode alimentar projetos de vingança como o da menina Joanna.

Assim, no caso do direito de família a dimensão positiva da judicialização refere-se principalmente ao princípio da defesa da criança, o que inclui a legitimação das mais variadas composições familiares e a jurisprudência baseada nos direitos e deveres de ambos os progenitores com relação à progenitura e, em casos de separação, a prevalência da guarda compartilhada. Nessa medida, o documento norteador das decisões dos tribunais, quando a questão familiar envolve crianças é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Dele decorre o princípio de que a justiça deve ser orientada pelo melhor interesse da criança. E a família, como corolário, passa a ser definida pelo cuidar. Família é quem cuida, e não simples ou exclusivamente pais e filhos consanguíneos.

Em resumo, o melhor interesse da criança pode ser estabelecido tanto pela jurisprudência, refletindo a influência de grupos organizados da sociedade civil, quanto pelo Congresso, a partir do embate entre concepções laicas e religiosas. Dessa maneira, a proteção das crianças transforma-se em mais uma das muitas arenas de disputa politico-ideológica do país. Este é um dos muitos paradoxos da democracia brasileira.

T

he brazilian judicial sysTem and The definiTion

of The besT inTeresT of The child

ABSTRACT: Few institutions have undergone such profound changes as the

Brazilian family. The changes affect both the institution of marriage and the relations of power and responsibility between mothers and fathers. Recent data confirms that family size has decreased as well as divorce and consensual unions have increased over time. It is necessary to highlight that changes in family laws have followed changes in real life as shown in the 1982 Constitution and the 1990 Statute of Children and Adolescents. Thus, the consolidation of new legal rights is accompanied by the increasing judicialization of social relations. In other words, the judiciary has become the arbiter of relations between parents and children, bolstering decisions in the field of human sciences. This paper presents some considerations on the implications of the judicialization of family relationships.

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Recebido: 16/04/2013 Aprovado: 5/03/2014

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Juliana TONCHE*

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