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CAPÍTULO 3 – O MÉDICO, O CRIME E A RAÇA: O ESTUDO DE

3.4 OS DETENTOS TÊM ROSTO: O ÁLBUM DE SEBASTIÃO LEÃO

Juntamente com a produção escrita de seu estudo de antropologia criminal, Sebastião Leão contaria com um Laboratório Fotográfico na Oficina de Identificação da Casa de Correção de Porto Alegre, a qual estaria em funcionamento desde 1896. Com tal ateliê fotográfico, foi possível ao médico produzir um Álbum com as fotos de 101 presos.

A fotografia surgiu na primeira metade do século XIX com a invenção de Daguerre, em 1839 e, no ano seguinte, já havia notícia das primeiras experiências no Rio de Janeiro. No decorrer do século, a técnica foi sendo aperfeiçoada e, aos poucos, ficando mais acessível à população, permitindo a democratização desse retrato. No Brasil, ―Os novos formatos e suporte logo atravessaram o oceano e se disseminaram [...] na década de 1860. Com a invenção do cartão de visita e o aumento da clientela e do trabalho nos ateliês, ocorreu a divisão dos trabalhos‖ (KOUTSOUKOS, 2010, p. 35), bem como a maior popularização da prática de representar uma autoimagem dos indivíduos. Com a captura da imagem através da foto, acreditava-se obter uma representação ―fiel da realidade‖. O surgimento da fotografia também mexe com a individualidade das pessoas. Conforme Corbin, ―Ascender à representação e pose de sua própria imagem é algo que instiga o sentimento de autoestima, que democratiza o desejo de atestado social. Os fotógrafos o percebem muitíssimo bem‖ (2010, p.425).

As fotografias eram exploradas como cartão de visita, álbuns de família, fotos ao lado do túmulo, etc. Os tipos de capturas e a possibilidade de obtê-las variavam conforme o objetivo da fotografia e as condições econômicas das pessoas. A possibilidade de se representar em uma foto ou em um álbum de família converteu-se em um símbolo de distinção. A fotografia ―soleniza corpo e a posição social do retratado. Além das homenagens e dos afetos, afirmam-se disputas por capital simbólico em torno dos mínimos sinais de distinção‖ (SEGALA, 1998, p. 48). Entretanto, além das imagens demandadas pelas próprias pessoas, havia aquelas em que a pessoa era retrata sem ser consultada (como fotos de escravos ou amas-de-leite) ou em troca de algum tipo de pagamento (fotos etnográficas).

As representações de não brancos nas fotografias, ao longo do século XIX, ocorriam de diversas formas: libertos que queriam mostrar uma condição distinta; donos de escravos que queriam mostrar seus escravos como bens, ou como parte de uma cena em que os senhores eram os principais; amas-de-leite com crianças no colo; detentos de Casas de Correção; figuras tidas como ―exóticas‖ onde se demonstrava a sua etnia ou o seu modo de vida para venda de souvenir; pessoas classificadas como ―objetos‖ de análise científica. Esses dois últimos tipos de imagem eram adquiridos para estudos científicos, embora a foto do tipo

souvenir não tenha sido, necessariamente, produzida para esse fim. Nesse sentido,

Enquanto objetos etnográficos, quem definiu suas classificações e seus usos foram, principalmente, os compradores das fotos. É bastante possível que muita foto produzida na chave do exótico, vendida como souvenir, tenha sido explorada como documento etnográfico em trabalhos ―científicos. E vice-versa. (KOUSOUKOS, 2010, p.135).

Sendo assim, no interior do meio científico da época, houve fotografias especificamente produzidas para auxiliar os estudos sobre as diferentes raças humanas. Sobre esse tipo de imagem, Kousoukos explica que:

[...] foi explicitamente usada como coleta de dados para sustentação de trabalhos ―científicos‖ baseados em teorias racistas então em voga. Esse segundo grupo se dividiu entre retratos, sobretudo de bustos e meio perfil, e fotografias com características antropométricas (de bustos ou de corpos inteiros, de frente, de perfil e de costas), adquiridas como o objetivo de dar suporte visual a estudos comparativos sobre raça humana; estudos nos quais, invariavelmente, se procurava demonstrar a superioridade branca sobre as demais. (KOUSOUKOS, 2010, p.115-116).

O desenvolvimento da técnica fotográfica possibilitou diversas formas de utilização das imagens das pessoas e as fotos possibilitaram um novo modo de pensar a respeito de si próprio. Além disso, mesmo nas pessoas que não eram fotografadas por vontade própria, a autora acima citada afirma haver, por vezes, uma margem para se autorepresentar.

Nessa busca por singularidades individuais, o serviço policial também começou a utilizar a fotografia na identificação dos delinquentes. Quando começou a ser usada pela polícia francesa, na década de 1870, as fotografias ―tomadas de todos os ângulos e guardadas em desordem, têm pouquíssima valia; de todo modo, não permitem que se descubra a verdadeira identidade de um falsário. Tudo muda a partir de 1882, com o emprego da identificação antropométrica estabelecida por Alphonse Bertillon‖ (CORBIN, 2010, p. 432).

Se pensarmos no álbum de Sebastião Leão como forma de identificação de recidivistas, ele também tinha uma valia limitada. Por mais que estivessem identificadas, as fotos eram guardadas em um mesmo álbum, tendo o funcionário que folhá-lo por inteiro para reconhecer um antigo detento. Não se sabe se havia outro lugar em que as imagens estavam dispostas, já que não foram encontradas fichas individuais de cada detento.

Porém, produzir o álbum foi importante, pois ―no enquadramento e na fixação da imagem do outro, tinha-se a disciplinarização do condenado; o que criava uma relação interessante entre poder e foto do preso, como bem cabia a um país civilizado‖ (KOUTSOUKOS, 2010, p. 243).

A forma de fotografar os detentos foi especificada por Alphonse Bertillon na década de 1880. Para ele, as fotografias dos delinquentes não deveriam representá-los de forma artística como queriam muitos fotógrafos. Essas fotografias ―deveriam ser, ao contrário, de uma escrupulosa feiúra, de maneira a pôr em evidência verrugas, sinais, cicatrizes, barba e

pequenas rugas‖ (DARMON, 1991, p. 222). Surgiram as duas fotografias tradicionais de infratores: uma do perfil direito e outra da face. Essas fotografias passaram a ser acrescentadas à ficha antropométrica e deveriam ser tiradas à mesma distância e com as mesmas condições de iluminação. Além disso, Bertillon fixou regras sobre a fotografia realizada no local dos crimes e inventou a técnica do retrato falado. Essa última foi aperfeiçoada depois pelos doutores Reiss, de Lausanne, e Icard, de Marselha.

O álbum produzido por Sebastião Leão seguiu em parte os preceitos de Bertillon, uma vez que apresentou as fotos sem realizar uma representação artística dos detentos e expôs a foto da face. Porém, dos 101 presos fotografados, apenas 11 tiveram as fotos de perfil. Isso pode representar pouco cuidado do médico, como também displicência do fotógrafo ou erro na revelação.

(LEÃO, 1897, p. s/n)

A historiadora Sandra Pesavento reconstruiu em seu livro Visões do Cárcere a história dos condenados cruzando as informações do Álbum Fotográfico, do Livro de Sentenciados e dos processos-crime que conseguiu encontrar de cada um dos detentos fotografados. A

estudiosa deu vida a esses indivíduos esquecidos pela história, fazendo-os ressurgir do passado. A partir dessa obra, é possível traçar apreciações sobre esse material38.

As fotos são extremamente expressivas, principalmente, pelo olhar dos sentenciados, dentre os quais:

Há aqueles que fixam a máquina de forma desafiante, como que a enfrentar o procedimento da antropologia criminal, de fixar a imagem e catalogá-la. Outros encaram o fotógrafo e a máquina com o olhar de desconfiança, por vezes de apreensão, ou até mesmo de desafio. Em geral, há uma seriedade na fisionomia. De modo geral, as expressões não são apáticas. Quase todos dirigem o olhar para a máquina fotográfica, e raros são os que têm a vista dirigida a um outro ponto. No que toca à indumentária, a maior parte dos sentenciados enverga o uniforme da prisão, mas as mulheres parecem exibir a roupa que levavam consigo para a cadeia, pois não segue um modelo ou padrão determinado. (PESAVENTO, 2009, p. 125).

Pode-se cruzar a afirmação dessa historiadora com a de Koutsoukos sobre a possibilidade de autorepresentação, mesmo que pequena, de pessoas que estão sendo fotografados por obrigação. Interessante refletir que ―[...] todos os condenados se encontram distintos uns dos outros. Apesar da construção e da ordenação da foto de preso, cada um dos detentos também conseguiu se mostrar, posar como sujeito do retrato, com dignidade [...]‖ (KOUTSOUKOS, 2010, p. 256). Portanto, o Álbum de Leão nos permite visualizar os agentes considerados perigosos em uma época e suas expressões, permitindo-nos montar um cenário do passado em nossas mentes. Seguem alguns exemplos dessas expressões:

(Leão, 1897, p. 25)

Com essas imagens é possível concordar com Sandra Pesavento sobre a expressividade do olhar desses indivíduos que viveram há mais de um século. Com o álbum, também se pode contrapor as afirmativas compostas nos livros dos sentenciados e, às vezes, discordar, sendo que:

Por vezes parece que o que presidira a identificação não foram os centímetros, mas a apreciação pura do funcionário encarregado. [...] Os descuidos ou os padrões dos funcionários da Cadeia parecem que não colaboravam na tarefa científica na qual se empenhava o diligente Doutor Leão! (PESAVENTO, 2009, p. 127).

O estudo da historiadora permite que entendamos um presídio não como um lugar onde as individualidades se perdem, mas onde elas permanecem presentes e instigam um tipo de socialização que marca o ambiente de crime e do criminoso. Podemos visualizar os detentos como agentes de seus retratos.

3.5 Onde Sebastião Leão e Coruja Filho se encontram

Dentre as diversas colocações e deslocamentos do médico porto-alegrense, os escritos históricos de Sebastião Leão, redigidos com o pseudônimo de Coruja Filho, também ilustram as concepções teóricas do autor e se dirigem a um público mais amplo, contribuindo para a maior divulgação de sua concepção histórica. As crônicas históricas publicadas no Correio do

Povo com o nome de Datas Rio-Grandenses demonstram um pouco da concepção de história

da época. Esses artigos foram publicados postumamente em forma de livro, em 1962, por Walter Spalding. A obra se organiza de maneira factual percorrendo cada dia do ano e relembrando fatos que aconteceram em outros anos nessa mesma data. Através dessa leitura, entende-se o tipo de fato histórico que o autor achava importante destacar: leis, fatos das cidades (como inauguração de fontes, instalação de câmaras, construção de hospitais, etc.), feitos militares, fatos políticos, falecimentos de pessoas tidas como ilustres, fundação de jornais. Além disso, através das várias citações sobre a construção de prédio ou as inovações tecnológicas – como a nota: ―1874 – Inaugura-se a linha telegráfica do Arroio Grande a Jaguarão‖ (CORUJA FILHO, 1962, p. 377) – fica notável a importância das grandes invenções e do avanço científico na visão de mundo de Sebastião Leão. Na forma da narrativa, além da citação do fato daquele dia em diferentes anos, havia algumas observações ou maiores explicações sobre alguns dos acontecimentos por ele referidos.

Com vistas a relacionar esse estudo de Sebastião Leão, publicado sob o pseudônimo de Coruja Filho, com suas reflexões desenvolvidas como médico da Casa de Correção, destacam-se algumas datas, que no livro, remetem a questões significativas para o debate sobre as relações raciais no Brasil.