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Modernidade, História, Literatura

2.1. Os discursos e os novos modelos de sujeitos

As mudanças físicas na sociedade brasileira - ou, mais especificamente, da sociedade flimiinense dos trinta primeiros anos do século XX - ocorreram juntamente com a modificação das subjetividades. Surgiram, ao mesmo tempo (ou antes) que as práticas de reforma da capital, das campanhas de higiene e de modernização, os discursos de reforma das subjetividades, os quais pretendiam dar o direcionamento sobre o modo de os sujeitos comportarem-se, vestirem-se e de agirem de maneira dita “civilizada” ou de acordo com padrões europeizados. Para isso, discursos “civilizadores” foram incorporados a outros discursos de prestígio na sociedade do início do século XX e também passaram a fazer parte das práticas dos sujeitos que pretendiam dizer-se “modernos”.

Os discxirsos médico, jurídico, jornalístico, etc. e também o literário, unidos às práticas e à atuação da policia e de outras instituições públicas, funcionaram como instrumentos de assujeitamento dos indivíduos, que deveriam adz^)tar-se às regras da “nova sociedade” que surgia, da qual fariam parte aqueles que pudessem reunir em si os atributos exigidos para serem considerados cidadãos “respeitáveis”.

Como as práticas de modernização eram também medidas de “aburguesamento” elas serviram para reforçar os preconceitos de raça e classe, excluindo, de uma forma geral, os pobres (dos quais fazia parte a larga população de ex-escravos) do convívio com as prometidas “vantagens” trazidas pela implantação da modernidade na capital da República.

Um exemplo de medida de exclusão foi a lei de exigência do uso de paletó (para os homens) e s ^ a to s para transitar no centro da capital. Essa lei não permitia que circulassem pela cidade pessoas que não fizessem uso de tal componente de vestimenta ou que andassem descalças,'*’ ou seja, a moda, mais do que nunca, exercia o papei de instrumento de docilização dos corpos e passava a exercer papel fiindamental na constituição do cidadão da nova sociedade, como mais um dos mecanismos de assujeitamento endossado pelo discurso jurídico.

Para se ter livre acesso ao centro, era preciso incorporar todo um conjunto de comportamentos e procedimentos, e aqueles que não cumprissem com essa exigência

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passanam a representar o que se quena deixar para trás; a imagem do pais pobre, doente e atrasado.

Com a finalidade de transformar a imagem na capital para que parecesse civilizada, além das obras e reformas e das exigências a respeito da vestimenta, foram proibidas as práticas culturais e religiosas populares já tradicionais, como o carnaval de rua, a festa da Glóna, etc., e substituídas por festas a modelo das européias, com carnavais de pierrôs e colombinas. Da mesma forma, ou seja, de maneira impositiva, novos padrões de conduta tiveram que ser adotados pelas classes baixas, e seu comportamento passou a ser severamente fiscalizado. Um exemplo de procedimento que teve de ser adotado pelas classes populares foi a “conduta decente”.

A preocupação com a moralidade havia se tomado um símbolo de civilização e de progresso. Tendo isso em vista, lomou-se necessário que os cidadãos tivessem uma “conduta decente”, que passou a ser regulamentada e definida através do casamento oficial. Os promotores da moral e da ordem determinaram que toda união de homens e mulheres que não estivesse “regularizada” pelo contrato matrimonial seria considerada ilícita.'** Vale lembrar que, o casamento dito “oficial”, até o final do século XIX, era quase uma exclusividade das classes mais abastadas, uma vez que estava estreitamente ligado aos interesses econômicos das famílias, sendo uma forma de manter o poder e de evitar a dissipação dos bens. Desta forma, nas classes altas, os pais continuavam atuantes sobre a escolha da melhor proposta matrimonial para as(os) filhas(os), a fim de garantir que somente se comprometessem com pessoas do mesmo círculo social.

Embora tivesse sido, até então, o matrimônio no Brasil uma instituição utilizada pelas elites tradicionalmente, e caracterizada pelos interesses econômicos, passou a ser um dever de todos, justificado pelas regras da moralidade e pelos discursos científicos e juridicos. Proliferavam, então, os manuais“*^ que invocavam os rigores metodológicos da ciência coni a finalidade de realçar a importância da instituição matrimonial, tanto para a sociedade e para o estado, assim como para a geração de filhos ditos “legítimos” (de acordo com as leis brasileiras da época).

Os manuais matrimoniais ou de incentivo ao casamento (que proliferavam com diversos títulos) continham “receitas ’ de comportamento “ideal” para serem incorporados pelos cônjuges a fim de garantir uma boa convivência entre os dois. Destinados, '‘® MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In; NOVAIS. Fernando A.; SEVCENKO. Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: 1998. p. 387.

normalmente, às noivas, esses manuais veiculavam também um discurso que buscava redefinir e “naturalizar” os papéis de homens e mulheres na modernidade como caracterizados pela atividade e passividade, respectivamente, de forma que era defendida a Gxação das mulheres na esfera privada, espaço culturalmente identificado como feminino,“** em oposição ao espaço público, considerado de domínio masculino.

Os discursos que pretendiam a delimitação dos espaços de atuação das pessoas de acordo com o gênero eram convenientes aos conservadores, que estavam escandalizados com as mudanças que vinham ocorrendo no comportamento das mulheres nas primeiras três décadas do século XX. Algumas mulheres, principalmente as pertencentes às classes mais abastadas, como resultado de lutas feministas pela ampliação de seus direitos e pela igualdade com os homens, cada vez mais conquistavam o espaço público e adquiriam direitos como o de transitar nas ruas sem uma conçanhia masculina'*^ (uma recente concessão da lei na cidade do Rio), de desfilar pelas avenidas, pelos cafés, vestidas com as modas francesas vendidas nas lojas da rua do Ouvidor. Naquele momento, a vida na capital do Brasil tomava-se mais mundana e cosmopolita, e a vida das mulheres, principalmente das pertencentes à elite, adquiria novos contornos e possibilidades. Porém, o mesmo não se poderia dizer em relação a todas as mulheres e pouco se poderia falar em verdadeiros ganhos para elas que fossem trazidos pela simples instauração da modernidade. Vejamos por quê.

Nas figuras de revistas e de manuais da época são apresentadas tlguras de mulheres que pareciam plenamente realizadas no exercicio de suas fimções domésticas, que vinham acompanhadas por discursos que a defendiam a idéia da mulher como mãe e rainha do lar. Estes discursos eram muitas vezes produzidos por mulheres. (MALUF; MOTT. Op. Cit. p. 379).

® Refiro-me, mais exclusivamente, neste exemplo, às mulheres de classes mais abastadas, cujo dever de manter a “honra" do marido fazia com que tivessem, até o século XIX, uma cobrança moral mais rígida sobre sua atuação em espaços públicos. Quanto às mulheres das classes populares, principalmente as lavadeiras, cada vez mais estavam sendo afastadas do centro do Rio, proibidas de carregar as trouxas de roupa suja nos bondes causando ameaça à saúde dos passageiros (ninguém pensava na saúde das lavadeiras, que lidavam com essa roupa de origem diversa). Além disso, como foi dito anteriormente, o acesso das pessoas de dasses baixas à capital, ao centro, mais especificamente, estava sendo controlado de diferentes maneiras através de práticas de exclusão que visavam criar um ambiente txjrguês e europeu na cidade.

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