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5 – OS DISCURSOS DO EX-PRIMEIRO-MINISTRO TONY BLAIR E O CONCEITO DE TERRORISMO

Como foi discutido no capítulo anterior, é possível considerar os ataques do dia 11 de setembro de 2001 como um evento-chave na análise da utilização do termo terrorismo nos discursos de Tony Blair (Hansen, 2006).

Como veremos a seguir, a comparação entre os discursos do ex-Primeiro- Ministro britânico que antecedem aquela data com os discursos produzidos após os ataques nos revela que o uso de alguns elementos permaneceu estável. Tópicos como o discurso de exaltação da democracia, a necessidade de intervenções em determinados Estados e a posição de Tony Blair em relação à possibilidade de independência da Irlanda do Norte continuam praticamente intactos. Entretanto, outros elementos encontrados nos documentos anteriores ao 11 de setembro passaram a ter seus focos redefinidos. A qualificação do terrorismo com os adjetivos ‘internacional’ e ‘global’, a identificação do Iraque como um Estado ligado a redes terroristas internacionais e a produção de categorias identitárias em relação aos grupos islâmicos são exemplos destas mudanças.

É possível apontar algumas instabilidades existentes nas estruturas discursivas utilizadas tanto no período anterior aos ataques, quanto nas narrativas que se seguiram ao evento. Apesar dos discursos aparentemente possuírem uma lógica individual imediata, a comparação entre argumentos localizados em diferentes documentos mostra que aberturas estruturais presentes em alguns temas podem ser visualizadas. Entretanto, também é preciso notar que a comparação entre as estruturas discursivas sobre terrorismo que antecedem o 11 de setembro com as novas estruturas criadas a partir daquela data nos mostra não apenas a presença de uma simples substituição estável de termos ou estratégias. Dentro de algumas estruturas analisadas é possível apontar um processo de desestabilizações discursivas em relação às narrativas até então estáveis. Mas o processo inverso também é verificado em relação às outras estruturas. Alguns temas, até então instáveis nos discursos anteriores ao 11 de

setembro, passaram a ganhar maior estabilidade com as mudanças ocorridas após os ataques.

Como será discutido no fim deste capítulo, é possível notar uma relação direta entre um maior uso de determinados conceitos e a presença de instabilidades. Quanto mais determinados significantes são utilizados, maior a necessidade de elaboração dos seus sentidos e, conseqüentemente, mais visíveis ficam suas contradições. Quanto mais certos termos se repetem, mais seus significantes se desgastam revelando incoerências e complexidades até então não notadas. Seguindo esta lógica de forma inversa, também podemos afirmar que a periferização de determinados termos da agenda discursiva facilita a estabilização das suas estruturas narrativas. Quanto menos se repete determinado conceito, menor a necessidade de se aprofundar na significação do mesmo e, conseqüentemente, menos instabilidades são verificadas.

A partir destas constatações, é possível perceber como cada autor elabora estratégias próprias na tentativa de neutralizar estas instabilidades. No caso específico dos discursos de Tony Blair, é visível a consciência do autor a respeito destas irresoluções. O que chama a atenção, entretanto, é a utilização de meios políticos próprios na neutralização das mesmas. Assim, a legitimidade de decidir sobre as exceções é ampliada para o nível discursivo fazendo com que as instabilidades de determinada estrutura discursiva sejam apagadas – mesmo que de maneira efêmera – a partir das próprias especificidades que a acompanham. Como será mostrado ao final, o sentido de cada signo é construído pela própria utilização do mesmo. A possibilidade de manutenção das suas estabilidades é gerada por um certo distanciamento temático em relação ao uso de conceitos. Mas, uma vez que a repetição expõe aberturas nas estruturas do discurso, cabe ao produtor do mesmo reelaborar suas estratégias narrativas com o intuito de lidar com estas instabilidades.

Por fim, cabe ressaltar que a intenção de apontar as mudanças de estratégias e as instabilidades presentes nos discursos do ex-Primeiro-Ministro britânico não significa uma crítica à (in)coerência dos mesmos. O objetivo deste trabalho, a partir da abordagem pós-estruturalista, é mostrar como as instabilidades estruturais discursivas são produzidas à medida que determinado tema, ou estrutura narrativa, ganha espaço na agenda do seu produtor.

5.1- Blair e o conceito de terrorismo anterior ao 11 de setembro

Todo discurso político, produzido a partir de um ato fundador, precisa conviver com a tensão existente entre o passado legado pelos seus antecessores e a necessidade de se criar alternativas a partir deste espólio. No caso de Tony Blair não foi diferente. Disposto a colocar em prática a Terceira Via idealizada por Anthony Giddens (1991), o ex-Primeiro-Ministro precisou se posicionar perante temas seculares, tais como a relação entre ingleses e irlandeses, a presença de uma tradição monárquica em um regime democrático e a promessa de uma nova era. Para isto, Blair precisou reinventar o trabalhismo inglês e se posicionar de forma estratégica entre uma linha tênue, mas incisiva, que colocava de um lado os anseios por reformas e de outro o respeito às tradições.

Lidando com temas como a independência da Irlanda do Norte, a relutância iraquiana em relação às inspeções internacionais ou a necessidade de investimentos sociais, Tony Blair soube se manter eficaz e convincente nas suas posições. Optando por um estilo de política transparente, Blair respondia às demandas de forma clara, assumindo, em grande parte das vezes, que soluções fáceis ou rápidas simplesmente não existiam.

Nos discursos que antecederam os ataques terroristas de 2001 aos Estados Unidos, Tony Blair, sem o saber ainda, preparou terreno para o inesperado. Conseguindo relativo avanço nas negociações com o IRA e, simultaneamente, afirmando publicamente a impossibilidade de negociações com quem usa a violência para fins políticos, Blair construiu a noção de terrorismo em termos não ontológicos, e sim como estratégia de ação política. Desta forma, criou a oportunidade para que a mesma fosse abandonada sem a necessidade de exclusão dos seus autores das mesas de negociações.

Quando os ataques de 11 de setembro vieram, já possuía legitimidade suficiente para lidar com a questão sabendo construir seus discursos de maneira significativamente destoante daqueles produzidos pelo governo americano. Assim, ao se declarar principal parceiro dos Estados Unidos na luta contra o terrorismo, pode se

posicionar politicamente como aliado daquele governo sem, entretanto, coadunar por completo com as visões norte-americanas sobre o fenômeno.

Claro que as mudanças também trouxeram novos desafios. A partir do momento que suas estratégias discursivas foram sendo modificadas, algumas estruturas que antes eram estáveis acabaram ganhando centralidade no debate e, inevitavelmente, explicitaram incongruências na argumentação. Outros temas acabaram sendo relegados à periferia da agenda discursiva do ex-Primeiro-Ministro fazendo com que instabilidades verificadas no período anterior aos ataques acabassem sendo apagadas pelo próprio movimento de periferização.

O que chama a atenção, entretanto, é a forma que Blair se propõe a trabalhar com as aberturas estruturais, tanto no período anterior quanto após o 11 de setembro. Sem negar a existência destas aberturas, o ex-Primeiro-Ministro se apóia na especificidade de cada narrativa para neutralizar aquilo que reconhece como exceção.

5.2- Irlanda do Norte: terrorismo, democracia e violência

Uma das questões mais importantes referentes ao cargo de Primeiro Ministro do Reino Unido é sua posição em relação à Irlanda do Norte. Desde a década de 70 do século passado, época em que houve a intensificação dos ataques orquestrados pelo Exército Republicano Irlandês (IRA), todos os Ministros precisaram assumir publicamente suas idéias a respeito da luta pela reunificação irlandesa. A popularidade de cada Ministro sempre passou pela habilidade do mesmo em se situar em um dos dois lados da linha que separa Republicanos de Monarquistas. Aqueles que se colocavam categoricamente contra a possibilidade de independência da Irlanda do Norte sofreram as conseqüências de um inevitável endurecimento da resistência separatista que intensificava a luta republicana através de atentados a bombas e greves de fome por parte dos líderes do movimento. Já aqueles que tentavam demonstrar simpatia pela causa irlandesa sofriam pressões por parte da população inglesa - principalmente daqueles que viviam no território do Ulster - no sentido de garantir a posse das seis províncias pertencentes oficialmente ao Reino Unido.

Como era de se esperar, a citação do conceito de terrorismo por Tony Blair no período que antecede o 11 de setembro de 2001 é escassa e, na maior parte das vezes, ligada às ações do Exército Republicano Irlandês (IRA) ou às ações de grupos paramilitares monarquistas.

A posição do governo Tony Blair em relação à possibilidade de reunificação irlandesa sempre foi extremamente clara desde os primeiros dias do seu mandato. Apesar do tema não ser citado como prioridade nos primeiros discursos de 1997 (ano de início do seu governo), o mesmo aparece como principal objetivo nos pronunciamentos do ano seguinte – “A lasting political settlement and durable peace in Northern Ireland are prime objectives of my government” 148. Segundo Blair, a Irlanda do Norte é parte do Reino Unido e, em princípio, o máximo que se poderia negociar seria um grau de autonomia relativa para seus seis condados. Entretanto, ao mesmo tempo em que Blair nega qualquer possibilidade de independência em curto prazo, o mesmo prevê possibilidades de futuras mudanças, desde que referendadas democraticamente pela maioria da população. Assim, nas palavras do próprio Ministro:

My agenda is not a united Ireland (...) But let me make one thing absolutely clear. Northern Ireland is part of the United Kingdom because that is the wish of a majority of the people who live here. It will remain part of the United Kingdom for as long as that remains the case. This principle of consent is and will be at the heart of my Governments policies on Northern Ireland. It is the key principle. It means that there can be no possibility of a change in the status of Northern Ireland as a part of the United Kingdom without the clear and formal consent of a majority of the people of Northern Ireland. Any settlement must be negotiated not imposed; it must be endorsed by the people of Northern Ireland in a referendum; and it must be endorsed by the British Parliament.149

      

148

 Discurso proferido em encontro com congressistas americanos em 5 de fevereiro de 1998.

149

Discurso proferido na Royal Agricultural Society, em Belfast, Irlanda do Norte, em 16 de maio de 1997.

 

  Soberania, neste caso, não se refere aos fatores históricos ou geográficos, e sim à vontade da maioria dos indivíduos de determinada região150.

  Tony Blair, entretanto, tenta impor como condição para a continuidade das negociações de paz o fim do uso da violência como instrumento de pressão política. Para o ex-Primeiro-Ministro, qualquer tipo de violência, seja ela exercida por parte do IRA ou mesmo por grupos unionistas, não se justificaria como método para se atingir objetivos. A violência descrita nestes primeiros discursos somente atrapalharia as negociações sobre o grau de autonomia do Ulster e os distanciariam de qualquer possibilidade de consenso. Assim, o viés democrático que baliza a argumentação do ex-Primeiro-Ministro é não somente condição imprescindível para qualquer possibilidade de independência futura como, também, não coaduna com qualquer tipo de ato violento, seja ele republicano ou unionista. Democracia e violência são citadas como inconciliáveis neste momento de fundação do novo governo trabalhista.

 

Violence has no place in a democratic society, whatever the motivation of those practising it. Terrorism, republican or so-called loyalist, is contemptible and unacceptable. The people here have stood up to terrorist violence for 25 years. They have not been destroyed by it. But the legacy of bitterness has made normal political give and take difficult, at times virtually impossible. In Britain too we have had our share of terrorist violence from the IRA. But what struck me about their attempts to disrupt the elections above all was the pathetic futility of these actions, real       

150

Nesta estratégia discursiva é interessante notar que está implícita a concordância com uma inevitável independência futura para a Irlanda do Norte. Como todos sabem, ao contrário do protestantismo, o catolicismo é contra o uso de anticoncepcionais. Isto gera, naturalmente, uma tendência a um maior crescimento da população católica, se comparada à protestante. Uma vez que a quase totalidade da população católica apóia a independência da Irlanda do Norte e a população protestante é a favor do

status quo, obviamente é apenas uma questão de tempo até que os republicanos atinjam a maioria da

população e consigam, democraticamente, o fim da união com os ingleses. Este argumento reforça a idéia de que se a independência da Irlanda do Norte dependesse apenas da vontade do governo inglês o mesmo já a teria aprovado há tempos. O fator de complicação neste processo é justamente a presença de ingleses (ou norte-irlandeses) no Ulster que são contra o fim da anexação por parte da Inglaterra e sempre pressionaram o governo britânico para que continuem fazendo parte do Reino Unido.

or hoax. These words are perhaps not new. But they more than ever accurately describe current terrorism in Northern Ireland: not just abhorrent, but pathetic and futile.151

Como também pode ser visto na passagem acima, qualquer ato de violência com objetivos políticos, seja ele por parte do IRA ou vindo dos monarquistas, é considerado como terrorismo e, conseqüentemente, rechaçado. No entanto, seguindo uma lógica que acompanhará seus discursos no decorrer de todo mandato, Tony Blair não se preocupa em definir objetivamente o fenômeno terrorismo, deixando sempre que o mesmo ganhe sentido a partir de suas utilizações específicas. Isto gera uma estabilidade em relação ao conceito que, em nenhum contexto, é problematizado, ou identificado como algo a ser mais bem elaborado. Há somente uma relação lógica direta entre a incompatibilidade de atos terroristas com princípios democráticos. Nestes discursos anteriores ao 11 de Setembro o conceito de terrorismo não é adjetivado em momento algum. Deste modo, prefixos como ‘internacional’ ou ‘global’ somente começam a ser utilizados para o fenômeno terrorismo após os ataques de 11 de setembro.

Podemos, portanto, considerar que a periferização do uso do termo terrorismo nos discursos anteriores ao 11 de setembro acabou por gerar uma estabilidade de sentidos ao conceito que, em momento algum, é indicado como problemático (figura 4).

      

151

 Discurso proferido na Royal Agricultural Society, em Belfast, Irlanda do Norte, em 16 de maio de 1997. 

Figura 4- Elementos do conceito de terrorismo nos discursos anteriores ao 11 de setembro.

5.3- Os discursos anteriores ao 11 de setembro e as narrativas sobre o Iraque

Nos documentos que antecederam o 11 de Setembro, dois países são sempre citados nos discursos do ex-Primeiro-Ministro: Estados Unidos e Iraque152.

No caso dos Estados Unidos, grande parte das referências se deve à ajuda daquele país nas negociações de paz com a Irlanda do Norte e ao histórico de parcerias existente entre as duas nações. A defesa dos interesses britânicos caminharia, segundo Blair, passo-a-passo com as alianças feitas com os norte-americanos. “So of course we want to co-operate with other countries, that is important to do, but it must be done on the basis that Britain´s defense remains with British interests and done in alliance with

      

152

Notem, entretanto, que apesar da haver uma concentração de referências aos Estados Unidos e ao Iraque nestes discursos anteriores ao 11 de setembro, o número de referências a estes países aumenta consideravelmente após esta data.

the United States.” 153. A relação entre os dois países é algo que perpassa a lógica discursiva durante todo o governo de Tony Blair e é reforçada, como será mostrado adiante, à medida que o foco é transferido para a ‘guerra’ contra o terrorismo.

Também nestes documentos anteriores ao 11 de Setembro, o Iraque aparece nos discursos de Tony Blair como preocupação prioritária dentre os assuntos internacionais. Entretanto, em momento algum é feito algum tipo de relação direta entre o governo de Saddam Hussein e atos terroristas. A preocupação é focada mais nas características pessoais do ditador e no potencial perigo apresentado pelas armas de destruição em massa. É interessante notar que a posse destas armas pelo governo de Saddam é dada como certa e o ex-Primeiro-Ministro não indicava ainda nos seus discursos uma real possibilidade de invasão daquele país. As soluções possíveis para o Iraque ainda estariam mais restritas ao âmbito da diplomacia e no reforço da necessidade de inspeções regulares.

First though [about international issues], Iraq. The UK, like everyone else, wants the current crisis resolved by diplomatic means. But we have to be realistic about the nature of the man we are dealing with. Saddam Hussein has lied and cheated at every turn. He is a man without moral scruple. We want a diplomatic solution but this is a dictator developing an arsenal from which the Weapons Inspectors have already uncovered 38,000 chemical weapons, a vast biological warfare plant, 48 Scud missiles and attempts at nuclear capability. This is a dictator who has sufficient chemical weapons to wipe out the world´s population. Simply, he cannot be allowed to prevent these inspectors doing their job. These Weapons of mass Destruction must be destroyed for the future peace of the world.154

Entretanto, apesar da idéia de intervenção não ser ligada diretamente à questão do Iraque, a mesma já aparece em algumas partes dos documentos desta época. É

      

153

Entrevista concedida em Amsterdã em 17 de junho de 1997.

154

possível notar, no decorrer dos discursos que antecedem o 11 de setembro, que Blair tem consciência de uma maior interdependência da relação entre os Estados. Esta interdependência geraria a necessidade de intervenções internacionais esporádicas em nome da democracia e contra atos ‘bárbaros’ praticados por outros governos.

The most pressing foreign policy problem we face is to identify the circumstances in which we should get actively involved in other people´s conflicts. Non- interference has long been considered an important principle of international order. (…) Looking around the world there are many regimes that are undemocratic and engaged in barbarous acts. If we wanted to right every wrong that we see in the modern world then we would do little else than intervene in the affairs of other countries. We would not be able to cope. So how do we decide when and whether to intervene.155

Assim, apesar da possibilidade de intervenção em nome da democracia não ser descartada por Blair, o mesmo cria critérios pelos quais as mesmas podem ser consideradas legítimas. Para o ex-Primeiro-Ministro, citando o exemplo de Kosovo, os pontos que deveriam ser levados em consideração em uma potencial intervenção seriam:

First, are we sure of our case? War is an imperfect instrument for righting humanitarian distress; but armed force is sometimes the only means of dealing with dictators. Second, have we exhausted all diplomatic options? We should always give peace every chance, as we have in the case of Kosovo. Third, on the basis of a practical assessment of the situation, are there military operations we can sensibly and prudently undertake? Fourth, are we prepared for the long term? In the past we talked too much of exit strategies. But having made a commitment we cannot simply walk away once the fight is over; better to stay with moderate numbers of troops than return for repeat       

155

performances with large numbers. And finally, do we have national interests involved? The mass expulsion of ethnic Albanians from Kosovo demanded the notice of the rest of the world. But it does make a difference that this is taking place in such a combustible part of Europe.156

O ex-Primeiro-Ministro, entretanto, alerta para o fato destes critérios não serem absolutos. Seriam apenas pontos de reflexão antes que qualquer decisão de intervenção fosse tomada.“I am not suggesting that these are absolute tests. But they are the kind of issues we need to think about in deciding in the future when and whether we will