• Nenhum resultado encontrado

A emoção é um aspeto fundamental da MA, em particular, das MAs episódicas. De facto, observa-se o envolvimento de diversas estruturas do sistema límbico na aquisição de eventos pessoais a serem armazenados na memória (ver Markowitsch, 2008 para uma revisão).

Podemos considerar dois eixos essenciais na caracterização de memórias de experiências pessoais em termos emocionais: valência e nível de ativação (ou arousal, estado de ativação geral do sistema nervoso em resposta a um estímulo relacionado com uma elevada ativação emocional, aumentando o nível de atenção) (Kensinger, 2004). Em 1984, Gilligan e Bower resumiram a influência da emoção na memória em quatro aspetos principais, que incluem efeitos de valência, bem como do nível de ativação emocional:

a) O desempenho da memória é superior quando o estado de humor na evocação corresponde ao estado de humor do momento da codificação;

b) Informação cujo conteúdo é congruente com o estado emocional atual é mais fácil de recordar;

c) Informação com conteúdo emocional é mais facilmente recordada do que informação neutra;

d) As interpretações e avaliações do material recordado são congruentes com o estado de humor presente.

Estes aspetos têm encontrado fundamento empírico (Singer & Salovey, 1993). No que diz respeito, especificamente, ao segundo aspeto, vários estudos têm revelado

32

o chamado efeito da recordação congruente com o estado de humor (mood-congruent recall). Este fenómeno consiste na maior facilidade de recordar informação positiva quando uma pessoa se encontra num estado de humor positivo e, por outro lado, em recordar informação negativa, quando o estado de humor é negativo. Este efeito, no que diz respeito à valência positiva, tem sido apontado por diversos estudos (e.g., ver revisão das diversas experiências de Isen et al. – Isen, 1985, 1990; Isen & Daubman, 1984; Isen, Daubman, & Nowicki, 1987; Isen, Shalker, Clark, & Karp, 1978 – como citado em Leichtman, Ceci, & Ornstein, 1992). Contudo, o efeito de facilitação de recordação de informação negativa, após indução de um estado de humor negativo, não tem sido observado de forma tão consistente e apresenta um efeito muito reduzido em alguns estudos (Leichtman et al., 1992). O efeito de congruência do humor com a memória de valência negativa tem sido mais clara e consistentemente observado em amostras clínicas, tais como pessoas deprimidas (Matt, Vazquez, & Campbell, 1992; Murray, Whitehouse, & Alloy, 1999; Williams, Watts, MacLeod, & Mathews, 1997).

Por outro lado, têm surgido estudos reportando um fenómeno de recordação incongruente com o estado de humor em amostras da população geral, sem historial de problemas mentais (e.g., Erber & Erber, 1992; Josephson, Singer, & Salovey, 1996; Parrott & Sabini, 1990). Este fenómeno é interpretado como uma estratégia de regulação do humor utilizada por pessoas sem problemas de saúde mental, em que estas procuram combater um estado de humor negativo através da recordação de eventos positivos (Erber & Erber, 1992). Na verdade, experienciar maioritariamente emoções positivas está relacionado com a saúde e bem-estar emocional (e.g., Alea,

33

Vick, & Hyatt, 2010; Walker et al., 2003; Walker et al., 1997) e parece haver uma relação entre humor positivo e autoestima elevada, bem como sensações de competência ou autoeficácia superiores (e.g., Salovey & Birnbaum, 1989). Neste sentido, Sutin e Robins (2005), num estudo longitudinal, observaram uma relação entre a ativação de emoções positivas intensas por recordações autodeterminantes e níveis mais elevados de autoestima, bem-estar e, até mesmo, melhor desempenho escolar.

Isen (1985) foi das primeiras investigadoras a propor diferentes mecanismos para explicar diferenças nos efeitos sobre a memória de estados de humor de diferente valência. Segundo a investigadora, como as pessoas estão geralmente motivadas para manter um estado de humor positivo e para alterar um estado de humor negativo, é natural a ocorrência do fenómeno de recordação congruente com o humor no estado de humor positivo, e a tentativa de desvio da atenção de informação negativa no estado de humor negativo. A necessidade de manutenção de um estado de humor positivo apresenta um paralelismo com a necessidade de manutenção de um autoconceito positivo, sustentado pelo enviesamento positivo observado nas MAs da população geral (revisto na análise da relação identidade-memória no ponto 2.1 desta dissertação).

Estudos recentes têm indicado também que indivíduos com depressão aparentam não dispor da capacidade de utilizar MAs positivas para regular estados de humor negativos (Joorman & Siemer, 2004; Joormann, Siemer, & Gotlib, 2007). Joorman e Siemer (2004) sugerem que que as MAs positivas em pessoas deprimidas induzem um estilo de pensamento ruminativo negativo, que impede que estas

34

exerçam ou mantenham a sua influência positiva no estado de humor. Num estudo de Smith e Petty (1995), posteriormente replicado por Setliff e Marmurek (2002), a utilização de recordações incongruentes com o humor, como estratégia de regulação afetiva de estados de humor negativo, revelou-se determinada pelo nível de autoestima dos participantes. Deste modo, apenas os participantes com autoestima elevada mostraram utilizar naturalmente essa estratégia, enquanto os participantes com baixa autoestima apresentaram recordações congruentes com o estado de humor negativo. O estudo de Setliff e Marmurek (2002) esclareceu que indivíduos com autoestima baixa são, de facto, capazes de recordar MAs positivas, quando especificamente orientados nesse sentido (confirmando a presença de MAs positivas na memória). Todavia, estes não o fazem espontaneamente, para regular o seu estado de humor, como os participantes com autoestima elevada.

Considerando agora o terceiro dos principais aspetos da influência da emoção na memória propostos por Gilligan e Bower (1984), este trata-se de uma das primeiras observações feitas no estudo da relação entre MA e emoção: eventos caracterizados por emoções intensas são geralmente recordados com mais facilidade e com mais detalhes. Como explicação para a capacidade preditora da intensidade emocional percebida de um evento relativamente à sua acessibilidade na memória, Robinson (1980 como citado em Conway, 1990) afirmou que as emoções intensas aumentariam a atenção atribuída a uma experiência, induzindo maior processamento cognitivo da mesma. As emoções funcionariam, então, como um sinal de que um dado evento seria pessoalmente relevante, sendo este codificado em conexão com as estruturas de autoconhecimento existentes (Conway, 1990). Outros estudos, desde então, apoiaram

35

a ideia de que eventos que provocam reações emocionais fortes, ou arousal emocional, são recordados mais frequentemente e de forma mais vívida do que eventos neutros (e.g., Reisberg, Heuer, McLean, & O’Shaughnessy, 1988; Shulkind & Wodorf, 2005; Talarico, Labar, & Rubin, 2004). A influência que níveis elevados de arousal têm na memória parece remeter para interações entre a amígdala e o hipocampo (ver Kensinger, 2004, 2009; McGaugh, 2004 para uma revisão) e os efeitos destas estruturas na atenção seletiva (ver Kensinger, 2004 para uma revisão). Contudo, algumas exceções a esta relação podem ser encontradas em estudos sobre o efeito de situações emocionalmente traumáticas na memória. Neste tipo de contexto de emoções negativas extremas, a recordação dos aspetos periféricos do evento parece ser prejudicada, apesar da recordação de aspetos centrais ser facilitada (e.g., Christianson & Loftus, 1991, ver Christianson, 1992 e Reisberg & Heuer, 2004 para revisões).

Por outro lado, os efeitos da valência na memória, independentes da intensidade emocional da experiência, parecem não ser modulados pela ação da amígdala, mas antes por um processamento cognitivo mais intensivo, através da ligação de novas experiências de determinada valência a informação já armazenada (ver Kensinger, 2004 para uma revisão). Deste modo, seria a atividade do córtex pré- frontal a mais relevante para os efeitos da valência na criação e retenção de MAs. Considerando mais detalhadamente os processos de recuperação de MAs de diferente valência, Markowitsch et al. (2003) indicaram que redes neuronais parcialmente diferentes são ativadas durante a recuperação de MAs positivas e negativas. Deste modo, a valência emocional parece assumir especial relevância como variável a ser

36

considerada em estudos sobre a MA em diferentes tipos de populações, podendo MAs de valências diferenciadas apresentar características distintas.

A valência emocional das MAs parece relacionar-se, nomeadamente, com o tipo funções preferenciais por estas preenchidas (e.g., Bluck, 2003; Holland & Kensinger, 2010; Pillemer, 2009; Rasmussen & Berntsen, 2009). Rasmussen e Berntsen (2009) observaram que a recordação de MAs positivas parece desempenhar preponderantemente funções sociais e relacionar-se com o bem-estar e um autoconceito saudável. Pohl et al. (2005) observaram que as MAs positivas continham mais conteúdo relacional e eventos relacionados com a identidade em contexto laboral do que as negativas. Por outro lado, as MAs negativas teriam mais frequentemente funções diretivas, como fontes de informação de erros e perigos a evitar. Contudo, as MAs positivas também desempenham funções diretivas, nomeadamente como fontes de informação de ações bem-sucedidas na resolução de problemas e que poderão ser utilizadas para guiar ações presentes. As MAs negativas podem, igualmente, ser alvo de reflexão para maior autoconhecimento, ou partilhadas no sentido de solicitar apoio ou empatia (Pillemer, 2009). Singer e Salovey (1993) utilizaram frases representativas das necessidades psicogénicas de Murray (1938) como pistas para a recuperação de MAs, posteriormente avaliadas quanto a aspetos emocionais e relevância para os objetivos representados pelas necessidades. Verificou- se que as MAs mais relevantes para a concretização de objetivos (função diretiva) eram as mais positivas. Em dois estudos posteriores, um em que se utilizaram pistas relativas às quatro categorias de eventos mais referidas no primeiro estudo e outro em que os próprios participantes definiram os seus objetivos livremente, as MAs mais

37

positivas continuaram a ser consideradas como as mais relevantes para o cumprimento de objetivos. Assim, uma vez que MAs de valências diferentes podem desempenhar qualquer uma das funções principais da MA, bem como uma mesma memória pode desempenhar diferentes funções em diferentes momentos, a abordagem funcional de MAs de valências distintas seria mais uma questão de grau ou preponderância do que de exclusividade (Rasmussen & Berntsen, 2009).

39

Documentos relacionados