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2 DESEJO E MODOS DE IDENTIFICAÇÃO

2.5 Modos de identificação

2.5.1 Os elementos e o Homem das cavernas

Sujeito, subjetividade e consciência merecem, cada um com seus respectivos atributos, um desenvolvimento filosófico diferente. Afirmar, pois que o sujeito sustenta-se ou mesmo funda-se por meio da fruição não equivale a descrever o âmbito do elemental como uma subjetividade última. Portanto, "o retorno de todos os modos de ser ao eu, à inevitável subjetividade que se constitui na felicidade da fruição, não instaura uma subjetividade absoluta independente do não-eu." (TI, p. 153). Nada abala, pois, a plenitude da fruição porque a felicidade não consiste numa referência a um conteúdo, não traduz, deste modo, uma plenitude preenchida, mas, ataraxia, produz-se enquanto plenitude qualitativa.

surpreender a fruição, mas a resistência dos elementos não corresponde e nem de longe equivale a uma resistência absoluta. Podemos fruir do elemental e, assim, da janela de um apartamento contemplar a sublimidade de uma tempestade que mata pescadores. A presença do infinito no finito, a ideia do infinito, exterioridade absoluta ou a subjetividade, supera a insegurança dessa inquietude, supera o nenhures do elemental que pode ser tomado como uma transcendência tão somente em sua significação mítica, isto é, quando os elementos (o fogo, o ar, etc.) representam deuses. Isto porque já a fruição, felicidade em meio à insegurança do inevitável mergulho no elemental, supera tal tensão ou, em certo sentido, pode ainda utilizar-se dela em vista de sua manutenção.

Afirmar a completude ou a felicidade não significa, todavia, a ausência das necessidades ou a estabilidade do meio. Como vimos, para Levinas, em meio às necessidades o Eu constrói sua independência.

Disposta dessa maneira, a intencionalidade da fruição abre o campo do amor da vida. Enquanto amor da vida, "a fruição atinge um mundo que não tem segredo nem estranheza verdadeira"(TI, p.155). Apesar do mergulho nos elementos, apesar da inconsistência e da inquietude, a inapreensibilidade do futuro, a distância entre o Eu e tal plenitude qualitativa não impõe uma circunstância de abandono e, assim, no recurso do trabalho e através da consciência que se instaura na insegurança do futuro "[...] o homem tem nas suas mãos o remédio para seus males e os remédios preexistem aos males" (TI, p.156). Mas a insegurança do futuro parece tornar fértil uma situação em que, desde o amor à vida, isto é, a partir das articulações da interioridade (egoísmo, fruição e sensibilidade), a separação indique também a suspensão do contentamento em função da insegurança do elemental que perturba a interioridade. O Eu, então recolhe-se e, em meio ao elemental, constitui-se a partir da extraterritorialidade.

O Eu arranca-se a si mesmo do seu puro mergulho no elemento e, assim, através do recolhimento numa habitação, torna-se capaz de representação, passa a constituir aquilo a partir do que fora originariamente constituído (Veremos mais a frente os desdobramentos da relação entre separação e representação). Tal situação, o recolhimento numa casa, torna possível a intimidade com um próximo que revela-se "[...] na doçura do rosto feminino[...]"(TI, p.161). Doçura de mãe, de companheira ou, para além disso, de irmão, de filho e etc. Através da tensão do horror – que pode traduzir a expressão "il y a" constantemente utilizada por Levinas – diante da insegurança, tensão que antes de abalar, sustenta a fruição, o eu recolhe-se e em nome do próprio contentamento, interessado em seu

egoísmo, depara-se, surpreendentemente, com uma "[...] primeira revelação de Outrem [...]"(Ibidem).

Isso não significa, porém, que a revelação de Outrem, precisamente enquanto ideia do infinito, exija tão somente um ser separado. É preciso, de outro modo, que a revelação do Outro enquanto Outrem venha da exterioridade do Outro, não da separação. Não há, pois, uma receita para a alteridade. A circunstância do horror do há que antecede o recolhimento e torna possível a habitação não corresponde a uma fórmula da alteridade. Isso reduziria a metafísica da alteridade a uma antropologia. A proposta levinasiana, parece-nos, reduz toda antropologia à metafísica. Assim, "a luz do rosto é necessária à separação." (Ibidem). Agora, que a retirada do homem do mergulho nos elementos está entre as suposições do ato de representar, isto é algo do que, nessas análises, não podemos fugir, isto porque:

a contemplação, com a sua pretensão de constituir, posteriormente, a própria morada atesta sem dúvida a separação ou, melhor ainda, é um momento indispensável da sua produção. Mas a morada não pode esquecer-se entre as condições da representação, mesmo admitindo que a representação é um condicionado privilegiado, que absorve a sua condição.(TI, p. 163)

A extraterritorialidade em relação aos elementos, isto é, a possibilidade do recolhimento numa morada, torna sublime o horror do há (a fome, a sede, a fraqueza, a falta de pelos ou dinheiro), fazendo com que o Eu da fruição torne-se mais atento "[...] as suas possibilidades e a sua situação." (TI, p.164). Habitar numa moradia é ser capaz de tornar o mundo familiar. É a familiaridade do mundo, portanto, que torna possível o recolhimento que não indica uma fuga a um esconderijo, mas o apoio e a graça do acolhimento feminino. Tal acolhimento não revela, no entanto, uma transcendência. A transcendência, responsabilidade pelo Outro, é pesada para a convivência com a mulher, a brincadeira e a galhofa comandam a relação. É curioso, no mínimo, o fato de Levinas não reconhecer a alteridade feminina como interlocutora. Parece-nos que a alteridade feminina é tomada igualmente à alteridade do mundo e do Eu, a saber, como uma exterioridade que não resiste e, de algum modo, se integraliza na imanência do Mesmo. Poderíamos considerar a relação com o feminino de múltiplas formas, levando em conta o sentido antropológico dessas terminologias, mas dados os estudos de gênero atuais seria preciso dar outra voz ao feminino que não a erótica, não obstante a importância dessa relação.

Todavia, não deixamos de compreender aqui que, em meio as articulações da interioridade, da separação e da fruição, a relação com a alteridade feminina não se trata da linguagem à luz do incondicionado do infinito, ou seja:

[...] a habitação não é ainda a transcendência da linguagem. Outrem que acolhe na intimidade não é o vós do rosto que se revela numa dimensão de altura - mas precisamente o tu da familiaridade: linguagem sem ensino, linguagem silenciosa[...](TI, p.166)

Fora da transcendência da linguagem tudo está dado à fruição. A habitação, o recolhimento e a morada são desdobramentos do egoísmo, neste âmbito tudo que se altera não resiste ao poder do Mesmo. Já a alteridade através da transcendência não só resiste, mas destitui o poder. Nada se pode em relação ao infinito, sua resistência é absoluta.

Agora, arrancado ou recuado em relação aos elementos, o homem circula já "[...] entre a visibilidade e a invisibilidade, está sempre de partida para o interior, cujo vestíbulo é a sua casa[...] ou sua caverna." (TI, p.167). Não se trata de uma fuga dos poderes dos elementos, ainda, pois o recolhimento figura como "[...] um olhar [ou o visar] que domina, um olhar de quem escapa aos olhares, o olhar que contempla." (Ibidem). O recolhimento tornará possível o reviramento da alteridade do mundo por meio da posse e do trabalho. A utopia da morada significada a partir da intimidade que a familiaridade do mundo torna possível traduz modos de relações que, independente das alterações articulam-se dentro do Mesmo. Assim, "o primeiro movimento da economia é, de fato, egoísta - não é transcendência, não é expressão." (TI, p.168). Se assim fosse comprometeria, de um lado, a radicalização da separação enquanto felicidade, de outro, a distância mais que absoluta da transcendência.