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Capítulo 3 Entre latas, entre bondes

3. Os enredos em reflexo

“Como un león” e “Frio” parecem ser reflexos um do outro. Reflexos, na verdade, invertidos: enquanto a narrativa de Conti é construída a partir das recordações do jovem Lito, o conto de João Antônio acontece, mais substancialmente, no mesmo tempo das peripécias narradas.

Distintamente de Lito que valoriza a favela onde mora, Nêgo se encanta com as luzes da cidade, os edifícios, os bondes, os lugares que mais se afastam da periferia. A travessia de Nêgo começa durante a madrugada e se encerra com o amanhecer82. Já a “travessia” 83 de Lito começa pela manhã, com a sirene da Ítalo, e se encerra com o escurecer, com as “villas envueltas en una luz somnolienta” (CONTI, 2005, p. 166).

É de modo engenhoso que o menino Nêgo está inserido no mesmo tempo em que as transgressões às regras sociais acontecem. Ele não pode continuar dormindo. O seu sono interrompido abruptamente o coloca no mundo da criminalidade. Nêgo não se dá conta disso, pois os códigos deste mundo ainda não são acessíveis a ele. A imaginação – que é tão fértil no mundo infantil – toma as linhas narrativas. E o que se narra – os passos que precisam resistir durante uma madrugada fria – vai dividindo espaço com o mundo que se imagina.

Já no conto de Haroldo Conti, Lito valoriza o mundo da marginalidade84 e menospreza o outro, regrado, no qual a mãe pretende enquadrá-lo85. Mais do que um testemunho ocular, Lito, vez por outra, margeia a marginalidade.

82 A este respeito, faz-se necessário ressaltar que Azevedo Filho (2008) vê o tempo neste conto de João Antônio entranhável à temática da delinquência. É durante a madrugada que o mundo transgressor funciona. Nesse sentido, o conto retrata com requinte não apenas os espaços e personagens que caracterizam tão bem o lugar por onde o tráfico se move. Este conto retrata também o tempo em que ocorre esta prática: nas altas horas em que todos dormem e os agentes infratores trabalham.

83 A palavra “travessia”, no caso de Nêgo, é no sentido latino de transverse, adv. “de través, obliquamente” (MACHADO, 1952, p.2105), do qual se originou e significa ir de um lado a outro. No conto de Haroldo Conti, a palavra também tem a acepção de percorrer todo o trajeto – da casa à escola, e vice-versa –, com a diferença de que a “travessia” é a que se dá através da memória.

84 No conto “La causa”, a valorização de um lugar que se contrapõe ao centro dominante também é evidente. No entanto, a marginalidade não é sinônimo de alienação social. Ainda a este respeito, uma característica da ficção de Conti é a referência a autores que são comumente chamados para dentro da estória através da voz narrativa. Marinis (1999, p.67) aponta que Jean Giraudoux, William Faulkner, Franz Kafka, César Vallejo, Paul Sartre, dentre outros, são, muitas vezes, citados ou referidos no interior de “La causa”. Não há, conforme aponta Marinis (1999, p.68), uma intertextualidade entre o conto e a obra destes escritores. Na verdade, estes autores são citados e “chamados” por personagens que, no conto, estão à margem da sociedade. Estas personagens, portanto, não são excluídas desde um ponto de vista cultural. São personagens marginalizadas que não são as típicas deambulatórias (estas, por sua vez, são retratadas nos contos “El último” e “Devociones”, nos quais a escolha de um caminho errático ou do vagabundeo é consciente).

85 O retrato que se faz da mãe em “Como un león” é idêntico ao do conto “Cinegética” que também pertence à obra Con otra gente. Nesta narrativa, há um encontro entre dois homens que se conheceram na infância: Pichón e Rivera. O primeiro, de acordo com o que o conto leva a supor, participa de um grupo criminoso e o segundo é um policial. Rivera vai até a favela onde passara a infância. Ele e um grupo de policiais procuram

Ele se lembra de cada habitante da favela, dos episódios trágicos por meio dos quais muitos de seus amigos foram vítimas de uma violência perpetrada pelos que se situam do outro lado da cidade. Chega a participar de um tipo de trabalho que é estigmatizado: ele quer fazer as tarefas como as que seus amigos executam, mesmo com a mãe reprovando sua ação (“a la vieja no le gusta que haga nada de eso”, CONTI, 2005, p.159):

[...] el Negro junta trapos y botellas en las quemas y cuando llega el verano vende melones y sandías en la Costanera. A veces lo acompaño a las quemas y me gano unos pesos abriendo las puertas de los coches en Retiro hasta que aparece un botón” (Ibid., loc. cit.).

Lito tem o seu dia ajustado ao ritmo escolar. Contra a sua vontade, é também despertado pela mãe para não perder hora86: “Es el día. - ¡Lito,!... ¡Arriba, Lito!” (CONTI,

os membros deste grupo, do qual Pichón faz parte. Nesta volta, Rivera recorda-se de sua infância e também do que dizia sua mãe:

Entonces el tiempo se volvía lento y perezoso y le parecía oír a la vieja que lo llamaba a los gritos mientras él estaba echado en el fondo del pozo con el barro seco sobre la piel chupando un pucho, tres pitadas por vez, con el Beto y el Gordo y el Andresito, al que lo reventó un 403 cuando cruzaba la calle precisamente por hacerle caso a la vieja. (CONTI, 2005, p.199)

Ao contrário de seus amigos, cujos destinos foram previstos pelas mães, Rivera é o único que acaba distanciando-se da favela. Presume-se que isso acontecera ao acaso, pois ele também não seguiria os conselhos da mãe, conforme deixa claro. Rivera está em uma busca, ao encalço de Pichón, que era um amigo de infância e, naquele momento, um dos membros de um grupo que para ali foge. Quando Rivera encontra Pichón, este pensa que o outro irá ajudá-lo. Rivera dá a entender que não o entregaria. Mostra-se solícito ao amigo e tenta, inclusive, tranquilizá-lo. Após conversarem, sem escrúpulo algum, Rivera deixa o local e aponta aos outros policiais que Pichón encontra-se ali. Nenhuma recordação influi na atitude de Rivera. Ele cumpre uma ordem e não se compadece do amigo, cujo destino poderia ser do próprio Rivera, que só por acaso não é. Não há aqui nenhum olhar capaz de trazer uma compreensão outra de sua realidade, por meio da qual Rivera poderia escrever um desfecho distinto na medida em que valorizaria as pessoas e o lugar onde nascera. Assim, mesmo com a existência das lembranças – “Cuando era chico se paraba a veces en el baldío lleno de sombras, de espaldas a la casilla, y miraba todo el montón de estrellas que tenía por encima hasta que empezaban a saltar de un lado a otro del cielo y le entraba miedo.” (CONTI, 2005, p.198) – não há uma identificação plena e entranhável com o lugar. O oposto ocorre em “Como un león”. Lito aprende com o pai a contemplar (e, assim, optar) pelas próprias casillas, pelos ferros retorcidos e abandonados na favela. O jovem apreende, ao relembrar o que enxergava enquanto menino, a beleza que estava adormecida nos escombros, nas latas, na sua família. O olhar que agora repousa sobre estes traz a Lito o mundo outro que permanecia escondido (cf. GIL, 2005, p.164).

86 A mãe de Lito acredita que, com essa ação, o destino de seu filho seja melhor, diferente do que acontece com todos os meninos villeros: a convivência e posterior permanência no mundo da criminalidade. No caso de “Frio”, o pedido feito por Paraná conduz Nêgo a um caminho exatamente contrário ao que a mãe de Lito julga estar indicando ao seu filho. A reação dos dois meninos, porém, é a mesma. Não querem acordar. Nêgo quer dormir porque está muito frio, demonstrando com seus gestos e palavras toda a ingenuidade de seu

2005, p.157). Já o mundo de seu irmão e amigos é cadenciado por outro ritmo: “El hermano de Tulio era amigo de mi hermano y aquella noche se salvó por un pelo.” (CONTI, 2005, p.156; grifo nosso). Pode-se conjeturar, de acordo com esta passagem que, como na narrativa de João Antônio, “Frio”, é também à noite que o mundo da criminalidade funciona neste conto. É neste período que o irmão de Lito desaparece.

Lito tem plena consciência deste mundo e está fisicamente próximo do cenário em que ocorrem os episódios de maior violência. Ele e muitos dos habitantes da favela compartilham os mesmos espaços (veem-se nas ruas), entretanto, cada um realiza uma tarefa em um tempo diferente, ou seja, em um tempo que se “ajusta” àquilo que cada um faz. É preciso ainda dizer que Lito envergonha-se de seu dia a dia: “Agacho la cabeza y me pego a las casillas porque me revienta que me vean con el guardapolvo y la cartera como un nene de mamá.” (CONTI, 2005, p.160). Ele despreza a atitude dos que vivem fora da favela e valoriza a de seu irmão e amigos. Conforme o trecho precedente, o narrador não se sente confortável em estar em um dos bancos da escola enquanto, por exemplo, sua própria mãe trabalha em condições aviltantes.

Nos dois contos, apresenta-se o mundo da delinquência. Aos olhos de Lito, este mundo é mais evidente e, a despeito disso, ele não o vê desde um ponto de vista negativo. Já no conto de João Antônio, este mundo hostil não se estampa nos olhos de Nêgo. Enquanto o menino leva a cabo a tarefa de cruzar a pé a cidade de São Paulo, parece não se dar conta do que faz. E, sem querer, converte este árduo empreendimento em algo mais ameno por meio de sua imaginação.

mundo, do mundo de criança. Lito, por sua vez, não quer acordar porque não acredita que a escolha modificará seu futuro.

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