• Nenhum resultado encontrado

5 REGISTROS (AUTO)BIOGRÁFICOS DE UMA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

5.4 Os entremeios

A vida não costuma ser uma linha reta. Saramago disse isso lindamente: “Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo... já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.17”... E o destino fez muitos rodeios por um tempo.

Em agosto de 1989, meu pai adoeceu e se internou em estado grave, vindo a falecer no hospital. Deu-se então minha terceira vivência hospitalar. Vivi nestas circunstâncias um outro lado do adoecimento, na pele de familiar. Era minha terceira experiência em hospitais: a primeira como paciente, a segunda como profissional (muito embora ainda não certificada) e, naquele momento, como família. (Mais tarde, estas três perspectivas me ajudaram a compreender mais empaticamente por que a atenção do profissional de saúde e, em especial, do psicólogo, precisa contemplar este tripé em sua assistência: paciente, família e equipe de saúde). Aquela vivência, no entanto, era diferente de tudo até então. Entrar e sair de hospitais, com vida, planos, expectativas, e, no caso profissional, com a sensação de dever cumprido,

17

em nada se comparava ao vazio daquelas circunstâncias. Até então, hospital, para mim, podia representar medo, dor, desafio, mas, ainda não, o luto. Precisei de tempo para ressignificar tudo. Eu estava a um semestre do fim do curso de graduação, e me sentia vulnerável demais para atuar na perspectiva de “cuidadora”. Assim, fiz um desvio na rota, até aí tão retilínea. Graduada, fui para a área de recursos humanos, e a oportunidade de emprego que me apareceu foi em empresa de ônibus... Será que destino entende de preferências ou somos nós, e não o destino, quem vai demarcando os caminhos um dia a se trilhar? Filosofias à parte, permaneci na área por quase dois anos, durante os quais pude reformular minhas preferências, e trabalhar com motoristas de ônibus não se sustentou como uma delas; não por eles, dignos de todo o meu respeito, mas porque aquele não era o meu lugar: era só o meu emprego.

Iniciei, nesta época, um curso de formação em Psicologia, Psicoterapia e Psiquiatria da Infância (GEPPPI- Fortaleza) 18, com Oswaldo Dante Milton di Loreto, um dos pioneiros da psiquiatra da infância nestes Brasis, como ele gostava de falar. Di Loreto desenvolveu uma metodologia de estudo para a compreensão da psicogênese das moléstias da mente, embasado nos preceitos da Psicanálise (Freud, Melanie Klein, Winnicott e muitos outros) e a usava conosco, convidando-nos a pensar exaustivamente sobre um caso clínico concreto, dividindo- o por etapas, a fim de respondermos às questões demandantes de cada fase. Estes estudos acirraram minhas intenções de retorno à clínica psicológica, mas ainda não cogitava em fazê- lo na área hospitalar. Enveredei pela clínica particular, no atendimento infantojuvenil, intercalando essa atividade com outros empregos, primeiro na área organizacional, como já comentado, depois na escolar.

18

6 SEGUNDA PARTE

6.1 Com o diploma na mão, procurando antigos caminhos

Parece que o que tem de ser tem muita força, mesmo. Três anos depois da graduação, recebi convite para participar de uma seleção para psicóloga substituta de uma das profissionais do Ambulatório de Pediatria do HUWC, que entraria de licença gestante. “Vou; não vou; fui”! Consegui a vaga e retornei aquele espaço, já na categoria de profissional diplomada. Não demorou nada para eu me sentir em casa, nem nada para saber do meu lugar de pertença. Desta contratação provisória, acabei sendo efetivada e permaneci na Pediatria por dez anos, atendendo crianças de zero a 14 anos, provenientes de encaminhamentos externos e ou espontâneos e de encaminhamentos dos outros profissionais da equipe do Ambulatório de Pediatria. Minha antiga supervisora de estágio havia se aposentado e a psicóloga responsável pelo serviço, com a minha chegada, dedicou-se a montar o atendimento psicológico na Enfermaria Pediátrica, após ter ela mesma, anos antes, inaugurado a Psicologia naquela instituição.

O atendimento psicológico, no Ambulatório, por esta época, já havia se consagrado como lugar de encaminhamentos com demandas psicológicas provenientes da comunidade do entorno, ou de bairros mais distantes da cidade de Fortaleza, e até de outros municípios.

No que diz respeito ao nosso público, em 1996, finalizei uma pesquisa19 sobre o perfil da clientela que buscava atendimento psicológico, lá, no ambulatório de Pediatria, do HUWC. Tencionava conhecer as características da população atendida e da efetividade de nossa capacidade de assistência. Era uma análise retrospectiva dos casos atendidos em triagem nos anos de 1993 a 1995. A amostra foi composta por 155 crianças de zero a 14 anos, tomadas aleatoriamente, correspondendo a 30% do número total de inscritos.

O ritmo de trabalho sempre intensivo do serviço proporcionava uma falsa ideia de efetividade, desmistificada com os resultados obtidos. Os dados revelavam que 55,4% do total amostral não teve seus atendimentos iniciados após triagem20. Tal circunstância se equivalia

19 Resultado do curso de Especialização em Psicologia Hospitalar.

20A distribuição dessa parcela ficou assim: encaminhados para outros serviços (11,6%); não respondentes à

convocação (5,8%); em lista de espera por acompanhamento psicológico sem disponibilidade de comparecimento às consultas de orientação (31,5); evadidos sem comparecimento aos retornos complementares (51,1%).

ao que Ancona-Lopez (1995) encontrara, em levantamento realizado em 1981, na caracterização das clínicas-escola da cidade de São Paulo, onde 54,1% era o percentual de abandono sem conhecimento das causas de desistências. Desde essa exposição sobre as insuficiências institucionais, a autora traz à discussão a discrepância entre as demandas da clientela e as propostas dos serviços de atendimento psicológico público, realidade e temática que em muito se assemelhavam à realidade nossa do ambulatório. Estas reflexões suscitaram grande inquietação em mim. Ao mesmo tempo em que eu entendia ser urgente um modelo mais próximo à realidade da população, eu me perguntava como arregimentar e implementar mudanças ante o acúmulo nas funções de assistência e ensino em uma carga horária de meio período, sendo eu a única profissional efetiva daquele setor.

Comecei por ampliar o número de estagiários e extensionistas sob minha supervisão. A um só tempo, tentava aumentar as ofertas por atendimentos em outros horários da semana, bem como sedimentar um lugar de estudo e discussões na clínica da infância. Do ponto de vista dos atendimentos, já há muito que as ideias de Winnicott sobre a clínica ampliada me acenavam, pondo em questão o modelo clássico de atendimento clínico em Psicologia. A perspectiva da Clínica Ampliada é proporcionar para a criança/adolescente em sofrimento psíquico, no âmbito público, a restauração de um ambiente facilitador ao seu desenvolvimento emocional. Nesse sentido, novas experiências devem oferecer a possibilidade de ressignificação das maneiras de se vincular e se relacionar com o mundo em um novo padrão afetivo e de comunicação (TARALLI E THOMÉ, 2005).

Os conceitos e método de trabalho de Winnicott tiveram, assim, um papel preponderante no meu processo de mudança. Sua concepção de que outros cuidados deveriam ser ofertados para quando a Psicanálise clássica não se aplicasse, forneceu-me base teórica para ousar. Comecei a pensar o atendimento psicológico oferecido dentro desta perspectiva, por se tratar, prioritariamente, de um público proveniente de famílias de baixa renda, ou vindas de cidades pequenas do Ceará, onde a permanência nos projetos muitas vezes se tornava inviável. Para muitos daqueles pacientes, a saída era elencar recursos e equipamentos públicos existentes no entorno de suas moradias, fossem de caráter psicológico ou social passíveis de cumprir uma função terapêutica e significativa à demanda e necessidade psíquica daquela criança. Para isso, fazíamos contatos, fossem por cartas ou telefonemas, em nome da Instituição HUWC, com secretarias municipais (de Saúde, Educação, Assistência social), escolas, centros comunitários, entidades filantrópicas ou mesmo pessoas com potencial de

agregar suporte de algum tipo à criança e suas necessidades. Na sequência, registos de uma clínica ampliada: