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Os factos de relação

No documento Geografia de Lisboa segundo Orlando Ribeiro (páginas 112-116)

Capítulo II- Os estudos de Olisipografia

OBRA Nº DE TEXTOS EM QUE É REFERIDO

6- Os factos de relação

A visão de Lisboa que Orlando Ribeiro defende é uma visão integradora, pelo que não olvida os fenómenos de relação. Como tal, transportes, relações entre a cidade e o campo e os arrabaldes e a atração da cidade e os subúrbios são também abordados nos textos, mas amiúde na sua forma tradicional, com base no seu método e de forma superficial. É de notar que pouco usa o termo «circulação» no seu sentido clássico, caro a geógrafos seus contemporâneos. Com cerca de seis dezenas de referências, é o tema definido menos aprofundado para caraterizar a urbe, até pela formação «clássica» do geógrafo.

Os meios de transporte citados são os seus contemporâneos, desde a tração animal, corrente na sua juventude, ao metropolitano (inaugurado em 1959), o elétrico e o automóvel. Os proprietários destes são classificados como privilegiados, talvez por Orlando Ribeiro nunca ter possuído carro ou carta de condução. Pode-se mesmo

Fig. 5- Exemplo de trabalho do ferro representado em azulejo de uma fachada de Alfama. Os ofícios

tradicionais eram os preferidos por Orlando Ribeiro nos seus estudos de Geografia urbana. Os azulejos, com a sua origem árabe eram explorados enquanto recurso didático.

levantar a interrogação sobre de que forma esta circunstância influenciou a sua forma de ver a cidade: é diferente caminhar pelas ruas da capital, mais ou menos vagarosamente, observar a paisagem e falar com os habitantes, do que estar preso no automóvel durante um engarrafamento. Nos diversos textos, além dos transportes já referidos, há menção ao autocarro, ao comboio, à atividade marítima e à navegação fluvial, todos estão representados, dando já conta da dificuldade de circulação no interior da cidade e soluções para a ultrapassar (no texto de 1955) e como forma de abastecer Lisboa, ligando-a à Margem Sul do Tejo e ao Mundo.

Os transportes são vistos como fator de desenvolvimento dos arrabaldes da cidade, dando o exemplo da Ajuda, Lumiar e Odivelas: «A linha [dos elétricos] vem assim acorrentar aos destinos de Lisboa as povoações dos arredores.»375 Ou noutro texto «(…) a tração elétrica ligou definitivamente ao centro algumas aldeias da periferia, que logo se transformaram em áreas residenciais; e a cidade alastra pelos arredores, penetra, através do trânsito rápido, em aglomerações rurais, cujo caracter modifica, criando, aqui e além, satélites de pura feição urbana.»376

A cidade influencia assim o ritmo de crescimento dos arredores, acelerado entre 1940 e 1960, como o geógrafo constata nos «Fragmentos» que escreve sobre Lisboa. Os arrabaldes da capital têm uma função constante ao longo do tempo: o fornecimento de espaço para o seu crescimento. Esta questão é vista historicamente (caso da integração do Bairro Alto) acompanhando a evolução populacional e a expansão territorial: «Foi à custa das hortas e dos vazios internos e dos arredores que se construíram alguns edifícios extensos e se alargou a cidade»377 Mas este processo ocorre igualmente por alastramento, à medida que surgem moradas permanentes em áreas de veraneio: «As quintas e as casas de campo onde se passava o verão têm tendência a tornar-se lugares de residência permanente»378 e «Já várias estações de veraneio se transformam em moradas permanentes. Até Cascais, em plena costa atlântica, num percurso de 26 km,

375 Ribeiro (1994-b), p. 19. 376 Ribeiro (1994-d), p. 47. 377 Ribeiro (1994-i), p. 124. 378

No original: «Les fermes ou les villas où l’on passait l’été ont tendance à devenir des lieux de résidence permanente.» Ribeiro (1994-c), p. 34.

avista-se sempre casas e não se tem a impressão de ter deixado a cidade.» 379 Mas também por coalescência com vilas periféricas: «Algumas aldeias dos arredores

urbanizam-se por sua vez e ligam-se definitivamente à cidade.»380

Com esta questão relaciona-se o impacto sobre a organização do espaço. A cidade influencia as áreas contíguas, tanto mais longe quanto mais se desenvolve. Lisboa «(…) englobou parte dos arrabaldes e foi influenciar a outra parte, até muito longe, pela extensão e afastamento dos lugares de veraneio, pela organização da agricultura (…)»381. A sua influência não ocorre apenas sobre «(…) pequenas e pitorescas povoações rurais (…) Situadas quase todas sobre o manto basáltico, que dá barros de grande fertilidade, orientam a sua atividade económica, à parte a exploração de algumas argilas e pedreiras, no sentido da produção agrícola.»382, mas igualmente nos locais de recreio, pois «(…) à medida que a cidade cresce, afastam-se dela os lugares preferidos de veraneio.»383 De fato, «(…) ainda no último quartel do século XIX se ia passar o Verão em quintas no Arco do Cego»384, na década de 1960 estes locais estavam já integrados na malha urbana. Fora do perímetro concelhio, Amadora, Queluz e Odivelas eram já dormitórios.

Nesta evolução pode-se ver também que o pensamento de Ribeiro evoluiu desde a sua fase de formação. Se no texto de 1935 manifestava a sua curiosidade por um grupo humano localizado «(…) nunca além do Termo, é a terra do Saloio.»385, que julgava com caraterísticas específicas; décadas depois, em nota de rodapé, no mesmo texto, havia abandonado tal pensamento. Pelo mesmo diapasão alinha a influência sobre as atividades da população. Em 1935, escreve a propósito desse grupo que «As

mulheres são as lavadeiras de Lisboa.»386 Em 1963, estas eram raras, como as ribeiras

de água limpa, e começavam a ser substituídas por outras alternativas.

379

No original: «Déjà plusieurs stations d’été se transforment en séjour permanent. Jusqu’á Cascais, en pleine côte atlantique, sur un parcours de 26 km, on aperçoit presque toujours des maisons et on n’a pas l’impression d’avoir quité la ville.» Ribeiro (1994-c), p. 36.

380

No original: «Quelques villages de la banlieu s’urbanisent à leur tour et se rattachent définittivement à la ville.» Ribeiro (1994-c), p. 34. 381 Ribeiro (1994-b), p. 23. 382 Ribeiro (1994-b), p. 20-21. 383 Ribeiro (1994-b), p. 20. 384 Ribeiro (1994-b), p. 21. 385 Ribeiro (1994-b), p. 23. 386 Ibid.

O abastecimento a Lisboa é outra função dos seus arredores. Ribeiro dá conta de relatos detalhados a partir das suas fontes favoritas: «Lisboa importava ao tempo (começo do século XVII) carnes da Beira e do Alentejo, e daqui e do Ribatejo trigos e azeite.»387 E ainda: «Os arrabaldes tinham grande importância no abastecimento de Lisboa: farinha (…) fruta e hortaliças, leite, queijo, manteiga, requeijão, galinhas e ovos. Em cada dia entravam na cidade 4600 cavalgaduras e 2000 homens e mulheres a pé; da margem sul aportavam cerca de cinquenta barcos que traziam peixe e hortaliças à

Ribeira.»388 Mas não dá apenas informação histórica, também relata a chegada das «(…)

frutas e legumes produzidos nas numerosas quintas e hortas que rodeiam a cidade»389 ou

«(…) desciam das hortas dos arredores carroças saloias e carros de bois carregados de hortaliça.»390 Fala de agricultura, pecuária e extração, sendo curiosas as suas referências aos «vinhos do termo» que mantiveram fama, por contraponto aos «morangos de Sintra» que olvida. Propõe-se estudar «O abastecimento de águas, os esgotos, a energia e a iluminação, os problemas de trânsito (…) constituem outros tantos aspetos essenciais da existência material das cidades. Nenhum talvez como a circulação nos dá

uma imagem da vida: ela é como o sangue que percorre a urbe.»391

Nos textos finais, o geógrafo aflora ainda a formação de subúrbios, originados pela procura de habitações mais económicas e pelo desenvolvimento dos transportes. Fenómeno que não estuda, mas constata e que aborda de forma tradicional: «Os transportes rápidos, as casas de renda mais modesta (…) rodeiam hoje as grandes cidades de uma cintura de dormitórios: o desenvolvimento recente e o pleno progresso da construção em Almada, Algés, Amadora (tomando qualquer destas povoações no sentido lato também das que lhe ficam contíguas) fazem delas os maiores satélites residenciais de Lisboa; mas em pleno campo, ao acaso de um passeio de cada vez se vê aumentar esta proliferação desordenada das formações suburbanas. A construção da ponte sobre o Tejo trará como consequência o extravasar de Lisboa para a Outra Banda (quase todas as cidades portuguesas na margem de rios têm subúrbio do lado oposto) e

dará a Lisboa uma feição semelhante à do «grande Porto».392

387 Ibid. 388 Ribeiro (1994-b), p. 102. 389 Ribeiro (1994-b), p. 23. 390 Ribeiro (1994-i), p. 126. 391 Ribeiro (1994-d), p. 51. 392 Ribeiro (1994-h), p. 108.

Outros problemas novos em torno da cidade suscitam igualmente a sua curiosidade ao afirmar: «(…) ignora-se como funciona esta enorme cabeça num corpo que o êxodo rural e a emigração enfraquecem, até onde vai a atração direta de Lisboa (a indireta estende-se a todos os territórios portugueses da Metrópole e do Ultramar) e onde ela interfere com outros centros nodais próximos, como Setúbal ou Torres Vedras.»393 E «(…) cerca de 30 000 pessoas que viviam em «bairros de lata»»394. Orlando Ribeiro manifesta o intuito de abordar estas questões pessoalmente e tem a preocupação de chamar a atenção para o fato de não serem problemas inéditos já no século XVIII: «À medida que se alargava a cidade e desenvolvia o gosto das quintas, a especulação ganhava, tal como hoje, os terrenos dos arredores.»395

O geógrafo debruça-se sobre os fenómenos de relação entre cidade e campo envolvente, mas não os aprofunda talvez por reconhecer implicitamente que não possuía as ferramentas para dar deles ideia exata. Com efeito, o estudo dos fluxos será um dos temas da «Nova Geografia». Ainda assim, tem a preocupação de sublinhar que não eram fenómenos novos e, se eram intensificados em número e distância com o crescimento urbano, tinham de ser vistos como decorrentes de um processo de longa duração. Tal como havia aprendido destaca aquilo que dá carater à sua terra natal por confronto com outras cidades que conheceu.

No documento Geografia de Lisboa segundo Orlando Ribeiro (páginas 112-116)