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Os Fatores de divergência

No documento América do Sul : uma visão geopolitica (páginas 77-81)

entre o estrutural e o conjuntural 1 A Religião e a língua

7. Os Fatores de divergência

Já foi referida a existência de várias “Américas do Sul”, embora este facto – consti- tuindo em si um fator potencial de divergência – não se tenha revelado preponderante nas rivalidades que atravessam a história do continente. De facto, estas últimas revelaram- -se principalmente dentro dos vários conjuntos, obviamente devido à contiguidade geo- gráfica potenciada pelos fatores que mais têm acicatado as rivalidades geopolíticas no continente: a fluvialidade, o acesso às fachadas marítimas e a bi-oceanidade, a que Fr ançois Thual (1996: 33-37) acrescenta a bi-continentalidade.

a. A Fluvialidade

Neste particular, o papel geopolítico dos rios e das suas bacias – uma das bases teó- ricas mais sólidas da geopolítica clássica (Nogueira, 2011: 258-260) – foi solidamente confirmado na América do Sul. De facto, num continente em que escasseavam as estra- das ou outros meios de transporte, os rios representavam a vida, os meios de comunica- ção e os vetores do poder político e militar, já que situando-se a maioria das capitais junto ao mar, eles foram durante muito tempo os meios preferenciais (por vezes os únicos) para controlar o interior e afirmar a autoridade dos jovens Estados.

Um recurso tão vital na ordem interna, não podia deixar de se transformar num fator de tensão na ordem externa. Controlar as nascentes, bloquear as saídas ou expulsar um rival de uma margem, grande parte da afirmação do poder dos Estados construiu-se em torno dos grandes rios e das suas bacias. Para o Brasil, por exemplo, a bacia Amazó- nica foi (e é) percebida como uma reserva de imensas riquezas naturais, pelo que desde muito cedo envidou esforços para dela afastar o mais que pode os outros Estados que

com ele fazem fronteira. Mas igualmente esses Estados, não só procuraram contrariar a pressão brasileira como também disputar entre si o domínio de porções da bacia ama- zónica. Foi o que aconteceu entre a Venezuela e a Colômbia, entre esta e o Peru e entre este e o Equador.

Mas certamente os mais importantes conflitos envolvendo os rios foram os que aconteceram na bacia do rio da Prata – 17% da superfície da América do Sul – que, por mais de uma vez conduziram a guerras abertas. Com efeito, aí desembocam os extensos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, uma tríade de extraordinária importância para os países da região. Para os Estados encravados, como são a Bolívia e o Paraguai, eles representam a única via de acesso ao Atlântico. Por seu lado, os Estados da embocadura tentaram estender o mais possível para montante daqueles rios o seu domínio territorial como foi o caso da Argentina e do Brasil.

Hoje em dia as fronteiras fluviais estão estabilizadas, embora se mantenham alguns focos de tensão resultantes da dificuldade em demarcar fronteiras nas zonas em que a floresta se caracteriza pela enorme densidade e também das frequentes mudanças do curso dos rios. Continuam, no entanto, a marcar fortemente a geografia política da Amé- rica do Sul já que 52% das suas fronteiras são fluviais – 34% em África e 24% na Europa. Reconhecendo isso e o potencial de risco que daí pode vir, os Estados sul-americanos têm vindo a pacificar a utilização dos rios, como foi o caso do Brasil que abriu logo em 1866, o Amazonas à navegação internacional beneficiando os outros sete Estados que a ele têm acesso, ou os acordos de 1941 e 1967, ampliados em 1969 pelo Tratado da Bacia do Prata entre o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai e que foram, pos- teriormente, alargados por vários convénios (Sell, 2006).

O seu sucesso tem sido inegável. O território da bacia compreende as capitais de quatro dos cinco países ribeirinhos: Assunção, Brasília, Buenos Aires e Montevidéu. A navegabilidade da bacia propiciou o desenvolvimento de centros urbanos, política e economicamente importantes nas suas margens, como Buenos Aires e Montevideu. A facilidade de transporte e comércio na bacia desencadeou o desenvolvimento agrí- cola e industrial e, atualmente, também com uma desenvolvida rede rodoviária, a região gera 80% do PIB combinado dos cinco países. O desenvolvimento económico atraiu um grande número de migrantes e resultou em um rápido crescimento populacional, especialmente a partir dos anos 70. Aproximadamente 60% da população total dos cinco países encontram-se na bacia (Cordeiro, 1999). A fim de prover a energia exigida pelo crescimento econômico e demográfico, mais de 30 grandes barragens foram cons- truídas na região.

b. O Acesso às Fachadas Marítimas

O acesso às saídas para o mar e o alargamento das fachadas marítimas próprias são pulsões geopolíticas de todos os Estados que por qualquer motivo sofrem de limitações de acesso às grandes linhas de comunicação oceânicas (Vives, 1956; 144-145). De facto, o acesso e alargamento das fachadas marítimas não representam apenas um objetivo de crescimento territorial, já que elas são uma das chaves do crescimento económico através

do acesso às rotas marítimas por onde, desde o século XVI, flui a maior parte do comér- cio do mundo, atingindo hoje 75% do total (Lawrence, Hanouz e Doherty, 2012: 85). A formação rápida da geografia política da América do Sul, ao invés de um lento processo de amadurecimento e consolidação, plasmou – como aconteceu em África na segunda metade do século XX – fronteiras que deram muito a alguns e muito pouco a outros. Daí o tradicional mecanismo das relações internacionais baseadas nas relações de poder: alar- gar o próprio território, impedindo o alargamento do território dos outros, aumentando desta forma o poder próprio ao mesmo tempo que se diminui o poder alheio.

O alargamento das fachadas marítimas tem sido uma constante na América Central, onde a proximidade entre as margens orientais e do Pacífico torna essa possibilidade uma tentação fácil. Mais a sul, o perpétuo desacordo entre a Colômbia e a Venezuela a propó- sito do Golfo de Maracaíbo tem levado com frequência os dois países à beira da guerra. Na verdade, numa atmosfera geral de pacificação interestatal que hoje prevalece no con- tinente, muitas das disputas parecem adormecidas. Não convém, no entanto, numa aná- lise geopolítica esquecê-las completamente, já que as lições da história nos provam a recorrência de certas rivalidades, desde que mudem as circunstâncias.

Este é, quase certamente, o caso do encravamento da Bolívia que, em resultado da Guerra do Pacífico do século XIX, perdeu para o Chile uma parte da região do deserto

de Atacama45 – rica em cobre e nitratos – sua única saída para aquele oceano, situação

tanto mais grave quanto falharam todas as tentativas bolivianas para, em alternativa, obter uma saída para o Atlântico. Foi quase certamente esta última impossibilidade a principal razão para a Guerra do Chaco (1932-1935) onde as forças da Bolívia, sob o comando de um general alemão da Primeira Guerra Mundial, tentou conquistar uma porção da margem direita do rio com o mesmo nome ao Paraguai, embora se possa considerar também – ou principalmente segundo algumas opiniões – o presumível

aparecimento de petróleo na região46, como uma motivação especialmente forte para

países tão pobres. Porém o encravamento é ainda hoje um motivo de forte ressenti- mento na Bolívia, onde a reconquista do território perdido consta na sua Constituição, pese embora que pelo Tratado de 1904 o Chile tenha construído uma via-férrea ligando La Paz à costa do Pacífico e tornado livre o acesso e a utilização dos seus portos pelos bolivianos (Foster e Clark, 2004).

c. A bi-Maritimidade

A ambição de conseguir acesso a dois oceanos é outra constante geopolítica de fácil constatação histórica em vários pontos do globo. No continente americano, ela foi parti- cularmente clara na formação dos EUA quando a conquista do Oeste permitiu ligar ambas as costas e, cereja em cima do bolo, quando a construção e domínio do canal do Panamá ligou efetivamente ambos os oceanos por via marítima.

45 Na qual o Peru, aliado da Bolívia, perdeu igualmente para o Chile uma vasta extensão da costa do Pacífico. 46 Uma outra visão aponta mesmo para uma manipulação de ambos os países pelas companhias petrolíferas

Tanto melhor, no entanto, se essa comunicação se fizer sem necessidade de grandes e dispendiosas obras por um caminho terrestre curto e sob soberania total. Foi o que a independência concedeu à Colômbia e foi o que tentaram obter vários Estados centro- -americanos como El Salvador, as Honduras e a Nicarágua.

Figura 15 - Disputa Entre o Chile e a Argentina no Extremo Sul do Continente

Fonte: Mapa elaborado pelo autor a partir de Physical Map of Chile 2009, retirado de Ezilon Maps [online]. Disponível em http://www.ezilon.com/maps/south-america/argentina-physical-maps.html.

Mais a sul, as ambições de bi-oceanidade manifestaram-se apenas – por força da geo- grafia – na Argentina e no Chile que, á data das independências estavam imprecisamente limitados a sul por vastos territórios apenas povoados por índios. Não tardou que ambos os países investissem para sul, os chilenos contra os araucanos e os argentinos contra os pata- gónios, acendendo uma querela de delimitação de fronteiras que apenas ficou temporaria- mente resolvida por tratado em 1881 no qual se reconhecia o Chile como potência – uma terminologia então na moda – do Pacífico e a Argentina como potência do Atlântico (Thual, 1996: 30). Um conhecimento cartográfico deficiente da zona e as ambições chilenas – a constituição chilena de 1822 reconhecia o cabo Horn e ilhas adjacentes como limite sul – levaram a vários picos de tensão com cartografia divergente publicada em ambos os países. O Chile, que se orientou para a Europa durante grande parte da sua existência procurou, naturalmente, uma saída para o Atlântico, embora a zona seja quase inabitável, tendo, apesar de tudo que engolir uma pílula amarga durante a Guerra do Pacífico desistindo formalmente das suas pretensões sobre a Patagónia para assegurar a neutralidade da Argentina. À beira da guerra em 1978, após rejeição pela Argentina do resultado de uma mediação pela rainha de Inglaterra, foi solicitada nova mediação sobre o Canal de Beagle ao Papa João Paulo II. Esta concluiu pela pertença das ilhas Picton, Nueva e Lennox ao Chile, mas sem direito a zona económica exclusiva. Fim da história, ou a sua continuação a propósito da Antártida?

d. A bi-continentalidade

A Antártida é tida, tanto pelos geopolíticos argentinos como pelos chilenos, como um prolongamento geológico dos seus próprios países, argumentação que, com acentos tóni-

cos diferentes, é utilizada em ambas as capitais para – mais uma vez – justificar uma nova expansão para sul, naturalmente em detrimento da outra parte interessada. A Argentina, encurralada pelo crescimento do Brasil e geobloqueada pelo Chile, vê no controlo do Mar da Argentina – um conceito obviamente inventado em Buenos Aires – que contém as ilhas da Geórgia do Sul, as Órcades, as Sandwich, as Shetland, bem como as Malvinas, um tram- polim de acesso à Antártida, bem como às suas reais ou supostas riquezas.

Sucede que todas estas ilhas se encontram sob domínio britânico o qual, embora já sem o interesse geoestratégico anterior à construção do canal do Panamá em controlar a passagem do Atlântico para o Pacífico, a Guerra das Malvinas-Falkland demonstra-o, a Grã-Bretanha não cederá facilmente.

O Chile, embora não reivindique logicamente o Mar da Argentina pelo menos na sua totalidade, tem ambições similares sobre a Antártida. Em Santiago, utiliza-se a chamada Teoria dos Setores que reclama o direito de ocupação de territórios desabitados quando estes constituem um prolongamento natural do território próprio.

Todas estas questões têm estado em “banho-maria” nos últimos anos, à medida que as relações de cooperação têm vindo a impor-se entre os Estados da região. Algumas condições poderão, no entanto, reatear as brasas de um conflito. A primeira é, natural- mente, a revelação de recursos importantes e economicamente exploráveis no continente gelado que, a ocorrer antes do término do Tratado da Antártida – património de toda a humanidade – previsto para 2041, não deixará de provocar os maiores atropelos e o cres- cer do tom das reivindicações territoriais.

A segunda, que pode ou não acontecer ao mesmo tempo que a outra, é o suave esva- ziamento do domínio britânico, coisa altamente provável num Estado que tem vindo a, pouco e pouco, perder importância e capacidade económica no contexto mundial. Será que UE – se ainda existir como tal – ou os EUA deixarão que a zona se incendeie num conflito entre a Argentina e o Chile?

No documento América do Sul : uma visão geopolitica (páginas 77-81)

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