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IV.4 Os fatos alegados (ausência de “posse tranquila” de terra indígena e presença de não

IV.4.1 Os fatos não caracterizam, sequer em tese, violação ao art. 21.1 da CADH em

242. Segundo a CIDH, o Brasil seria responsável por não permitir à Comunidade Indígena Povo Xucuru uma “posse tranquila” das terras habitadas por eles, em decorrência dos conflitos fundiários existentes na região e a presença de não índios e por impor uma suposta demora injustificada no processo demarcatório. Estaria assim, segundo a CIDH,

84 violando o direito de propriedade previsto no artigo 21 da CADH, em combinação com os artigos 1.1 e 2º daquele tratado, assim escrito:

Artigo 21. Direito à propriedade privada

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei. (grifo nosso)

243. Ao reconhecer o direito à propriedade privada, a Convenção Americana prescreve, conforme se depreende do texto convencional, que o direito de propriedade que uma pessoa detém sobre determinado bem não pode ser, como regra geral, vilipendiado pelo Estado ou por outros cidadãos. A Convenção Americana, portanto, não atribui propriedade de nenhum bem a ninguém, mas sim toma como pressuposto a condição prévia de proprietário de certo bem para que a pessoa humana possa ser sujeito de direitos protegidos pelo referido artigo.

244. Da mesma forma, o art. 21.2 busca proteger o proprietário de um confisco, ou seja, de uma atitude arbitrária (geralmente cometida pelos Estados) pela qual aquele se vê privado de seus bens sem a devida contrapartida financeira. Essa proteção compõe uma das garantias mais basilares do ser humano, tendo sido prevista nos mais diversos diplomas internacionais desde a Magna Carta, em 1215: “No freemen shall be taken or imprisoned or disseised or exiled or in any way destroyed, nor will we go upon him nor send upon him, except by the lawful judgment of his peers or by the law of the land”.67

245. Percebe-se, assim, que não se trata propriamente de um artigo que estabelece direito de propriedade sobre certos bens ou mesmo terras coletivas, mas que protege os proprietários devidamente reconhecidos como tal segundo as leis dos Estados nacionais. 246. No caso dos povos indígenas, a jurisprudência desse Tribunal construiu o conceito de propriedade coletiva de suas terras ancestrais, o que foi realizado, no entender do Estado brasileiro, de forma distante do texto da Convenção Americana. Sem entrar no mérito desse

67 The Great Charter. Disponível em: http://www.constitution.org/eng/magnacar.pdf. Acesso em: 11 ago. 2016.

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85 distanciamento entre a jurisprudência da Corte e a Convenção e sua eventual congruência ou incongruência com o disposto no artigo 31.1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados,68 o certo é que o conceito tradicional de propriedade não se coaduna com o regime jurídico das terras indígenas no Brasil.

Em uma interpretação tradicional dos conceitos civilistas de propriedade, a posse seria exercício aparente do direito de propriedade e a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa decorreria do direito de propriedade. Ocorre que, com o objetivo de assegurar a perpetuidade da permanência das comunidades indígenas nas terras que tradicionalmente ocupam, a propriedade das terras indígenas no Brasil é da União, a qual tem o dever de defender a posse, o uso e o gozo dessas terras pelos indígenas e não pode dispor dessas mesmas terras. Logo observa-se que não se aplica às terras indígenas no Brasil o conceito tradicional de propriedade, havendo um regime jurídico especial, que busca atender as especificidades da ancestralidade dessas terras e de sua ligação com a sobrevivência física e preservação dos costumes e cultura dos povos indígenas.

247. Não faz sentido, nesse contexto, afirmar que o direito de propriedade dos indígenas foi violado pelo Estado brasileiro, por disposições legislativas. Como se demonstrará adiante tampouco se verifica essa alegada violação em decorrência do processo administrativo demarcatório, pois o Estado agiu de forma diligente.

248. Já se disse anteriormente que, por dispositivo de fonte constitucional, muito anterior ao desenvolvimento do conceito de propriedade coletiva pela Corte Interamericana, a propriedade das terras indígenas no Brasil é atribuída à União; o direito que vincula os índios às terras por eles tradicionalmente ocupadas é o direito à sua posse permanente e exclusiva, com o usufruto de suas riquezas.

249. No caso em análise, a alegada violação ao artigo 21 da Convenção Americana em conexão com os artigos 1.1 e 2º do mesmo tratado decorreria de reconhecimento tardio das terras indígenas (reconhecimento e demarcação) e da falha em assegurar a propriedade e a posse pacífica (ausência de desintrusão efetiva). A violação do artigo 21 seria indireta, pela falta de observância do dever estatal de respeitar e promover os direitos da Convenção e, após a violação do direito de propriedade por terceiros, pela falta de devida diligência para tratar essas violações em conformidade com a Convenção (retirar os não índios da Terra Indígena Xucuru).

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"Um tratado deve ser interpretado de boa-fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade."

86 250. Ocorre que essa acusação não leva em devida consideração a complexidade da demarcação de uma terra indígena com tamanho mais de cinco vezes superior ao da Costa Rica, sede dessa Honorável Corte; a existência de mais de duas centenas de ocupações cuja boa-fé tinha que ser analisada; e a presença de terceiros não indígenas na região desde tempos remotos. Todo esse quadro demonstra não só o elevado grau de vulnerabilidade do Povo Indígena Xucuru, mas a igual complexidade do desafio de demarcar sua terra.

IV.4.2 O direito da União à propriedade de terras indígenas não caracteriza violação ao