3. AS REFERÊNCIAS TRATADÍSTICAS NO RECIFE FORTIFICADO
3.2. Os fortes do Recife e os tratados de arquitetura militar
Com o intuito de organizar cronologicamente os tratadistas, os tratados e as obras de defesa concebidas para o Recife, foram elaboradas tabelas para dispor informações de maneira objetiva. Em primeiro lugar, fez-se necessário listar as principais obras de defesa concebidas para o Recife, mencionadas na bibliografia e na cartografia pertinente, no recorte temporal adotado, incluindo a Mauritsstad. Estas informações foram dispostas em uma tabela em ordem cronológica, indicando, sempre que possível, a autoria dos projetos e os responsáveis pelas obras.
CRONOLOGIA DOS FORTES CONCEBIDOS PARA O RECIFE
Fortes Data Origem Autor do projeto Responsável pela construção
1 Forte de São Jorge (Velho) c. 1578 Port. - - 2 Forte de São Jorge (Novo) 1597-1603 Port. Gaspar de Samperes -
3 Forte do Picão 1612-1614 Port. Tiburzio Spannocchi Francisco Frias de Mesquita 4 Forte Diogo Paes 1629 Port. - Construção iniciada e não concluída 5 Forte Real 1629 Port. Cristóvão Álvares Não foi construído 6 Forte do Brum 1630 Hol. Tobias Commersteijn Ludolf Nieuwenhuysen e Joris Bos 7 Forte Real do Bom Jesus 1630 Port. Cristóvão Álvares (?) -
8 Forte Ernesto 1630 Hol. Tobias Commersteijn (?) Jan Comans, Christoffel Deterson e Hans Willem Louys 9 Forte do Buraco 1630 Hol. Tobias Commersteijn (?) -
10 Forte Frederico Henrique 1630 Hol. Tobias Commersteijn - 11 Reduto Emília 1631 Hol. Tobias Commersteijn (?) - 12 Forte Waerdenburch 1631 Hol. Tobias Commersteijn (?) - 13 Forte Príncipe Guilherme 1633 Hol. Tobias Commersteijn (?) - 14 Mauritsstad 1638-1644 Hol. Pieter Post (Possível) - 15 F. do Arraial Novo do Bom Jesus 1646 Port. - - Tabela 1 - Cronologia dos fortes concebidos para o Recife. Fonte: elaborada pelo autor.
Após este passo e entrando na esfera teórica, podemos elaborar uma primeira análise. Pode-se salientar que os arquitetos militares do século XVI consideravam pelo menos dois módulos na concepção das obras de defesa: a dimensão dos flancos, que deveriam acomodar pelo menos dois canhões lado a lado, e o comprimento da cortina. Ambos variavam de acordo com as opiniões individuais de seus autores. Alguns insistiam em guarnecer os flancos com três ou quatro canhões. Mas uma vez chegado a uma combinação de valores que o arquiteto considerasse ideal, ele a usaria como base para realização do traçado regulador do projeto da fortificação. A depender da área a ser defendida, o valor de modulação poderia ser multiplicado conforme a necessidade,
114 criando fortes com plantas poligonais. Além disso, outro aspecto a ser considerado é a proporção do baluarte que, no século XVI, deveria ser a mais aberta possível. Porém, nem sempre se conseguiu combinar um baluarte assim com a dimensão ideal das cortinas e dos flancos, o que levou os arquitetos a aceitarem determinadas adaptações, pois quanto menos ângulos a fortificação tivesse, mais difícil seria utilizar um baluarte obtusângulo em conformidade com as regras projetuais da época. Por esta razão, boa parte dos arquitetos militares do mencionado século consideraram o quadrado como a menos eficiente das figuras geométricas para a planta de uma obra de defesa, embora muitos teóricos tivessem representado fortes com este formato em seus tratados como a opção de menor tamanho e, consequentemente, mais barata para se construir. Mesmo para obras menores, o pentágono era geralmente preferido, enquanto polígonos com maior quantidade de lados eram preferíveis para recintos maiores (DE LA CROIX, 1972, p. 49).
A figura abaixo compara, genericamente, os baluartes de um forte de planta quadrada e outro de planta octogonal, cujos lados têm a mesma dimensão dos lados do quadrado. Independentemente de suas medidas, percebe-se, visivelmente, que o baluarte do forte quadrado é acutângulo (menor que noventa graus) e o do forte octogonal é obtusângulo (maior que noventa graus), o que comprova a mencionada preferência dos arquitetos militares da primeira metade do século XVI pelos polígonos com maior quantidade de lados.
Figura 147 - Baluartes em forte quadrado e forte octogonal. Fonte: elaborada pelo autor.
Os primeiros baluartes amplamente difundidos possuíam orelhões e seus flancos eram perpendiculares às cortinas. Além disso, o ângulo flanqueado deveria ser preferencialmente reto ou maior (BUCHO, 2010, p. 22). Contudo, como o baluarte havia se tornado o elemento central na discussão teórica, surgiram opiniões distintas a respeito. O processo de conceber o baluarte possuía inúmeras variantes. Havia
115 defensores de que o ângulo flanqueado deveria ser consequência de linha de defesa rasante. Outros consideravam a linha de defesa fixante.
Os ângulos eram amplamente discutidos. Segundo Bucho (2010), os tratadistas holandeses, de modo geral, davam preferência ao ângulo flanqueante reto. Já os franceses eram divididos quanto à concepção geométrica do baluarte. O tratadista francês Jean Errard de Bar-le-Duc (1554-1626), por exemplo, considerava o ângulo reto mais adequado para o ângulo flanqueado e o agudo para o ângulo flanqueante. O alemão Daniel Specklin (1536-1589) também era defensor do ângulo reto para o ângulo flanqueante.
Para iniciar a elucidação das fontes teóricas que possivelmente inspiraram a concepção desses fortes, fez-se necessário o conhecimento da existência dos tratados militares produzidos no referido período. As leituras realizadas para a presente pesquisa trouxeram à luz mais de uma centena de tratadistas que de alguma forma abordaram o tema militar, considerando de Vitrúvio até o final do século XVII. Com essa informação, pôde ser elaborada uma tabela, chamada de “Relação cronológica dos tratadistas e dos tratados de abordagem militar até o final do século XVII” (anexo I), contendo os tratadistas, em ordem cronológica de nascimento, com suas respectivas nacionalidades, locais de atuação principais e suas publicações com respectivas datas de publicação ou elaboração. A linha cronológica de cada tratadista permite visualizar aqueles que coexistiram e complementar informações em que alguns desses teóricos tiveram contato entre si. Assim, a dinâmica das teorias de arquitetura militar pode ser compreendida, de maneira sintética. Além disso, foi atribuída uma cor para cada nacionalidade e para cada século como forma de melhor visualizar a predominância de cada nação no cenário da teoria da fortificação moderna.
Tratadistas Nacionalidade Quantidade Italianos 55 46,22% Holandeses 11 9,24% Alemães 14 11,76% Portugueses 9 7,56% Franceses 12 10,08% Espanhóis 16 13,45% Ingleses 2 1,68% Total 119 100,00%
Tabela 2 - Quantificação dos tratadistas militares. Fonte: elaborada pelo autor.
Dessa maneira, foram contabilizados cento e dezenove tratadistas e cento e sessenta e dois tratados. Na tabela abaixo constata-se a predominância da presença
116 italiana no cenário teórico, representando quase a metade de todos os tratadistas no período estudado. Ao separarmos os tratados por nacionalidade e por século, a predominância italiana é também confirmada. Todavia, o século XVII assistiu a uma intensificação teórica no contexto militar em que a Holanda, a Alemanha, a França e a Espanha se destacaram, aumentando consistentemente suas produções teóricas. Tal fato contribuiu para que o século XVII detivesse mais da metade de todos os tratados militares produzidos. Esta informação está certamente relacionada ao fato de que as nações acima mencionadas se encontravam em constantes conflitos e focadas na consolidação de suas colônias, tornando um ambiente propício para a elaboração e difusão de conhecimento.
TRATADOS COM ABORDAGEM MILITAR
Nacionalidade Qtd. % Séculos
I a.C. XV XVI XVII
Italianos 72 44,44% 1 100,00% 5 100,00% 37 66,07% 29 29,00% Holandeses 25 15,43% 0,00% 0,00% 3 5,36% 22 22,00% Alemães 22 13,58% 0,00% 0,00% 3 5,36% 19 19,00% Portugueses 10 6,17% 0,00% 0,00% 3 5,36% 7 7,00% Franceses 15 9,26% 0,00% 0,00% 3 5,36% 12 12,00% Espanhóis 16 9,88% 0,00% 0,00% 6 10,71% 10 10,00% Ingleses 2 1,23% 0,00% 0,00% 1 1,79% 1 1,00% Total 162 100,0% 1 100,00% 5 100,00% 56 100,00% 100 100,00% % por século 0,62% 3,09% 34,57% 61,73%
Tabela 3 - Quantificação de tratados militares por século. Fonte: elaborada pelo autor.
Pode-se fazer uma leitura desses números por meio de gráficos, ilustrando o volume de tratados produzidos século a século e em todo o período considerado para a presente pesquisa.
Gráfico 1 – Tratados produzidos entre os
séculos XV e XVII. Fonte: elaborada pelo autor. Gráfico 2 - Nacionalidade dos tratados do século XV ao XVII. Fonte: elaborada pelo autor. 0 20 40 60 80 100 120 Século XV Século XVI Século XVII 0 10 20 30 40 50 60 70 80 Italianos Holandeses Alemães Espanhóis Franceses Portugueses Ingleses
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Gráfico 3 – Nacionalidade dos tratados produzidos no século XVI. Fonte: elaborada pelo autor.
Gráfico 4 - Nacionalidade dos tratados produzidos no século XVII. Fonte: elaborada pelo autor.
A tabela chamada de “Relação cronológica dos tratadistas e dos tratados de arquitetura militar até o final do século XVII” (anexo I) possui ainda a indicação dos anos em que os fortes do Recife foram construídos, considerando o período abordado na pesquisa. Com isso, pode-se realizar uma rápida leitura dos tratadistas e tratados que poderiam ter sido referência na concepção dessas obras de defesa e da Mauritsstad. Assim, pode-se constatar que os tratados de Nicolaus Goldmann (1611-1665), cultuado tratadista holandês, jamais poderiam ter inspirado a concepção do Forte do Brum, por exemplo. Contudo, poderiam ter sido referência no projeto do referido forte e da Mauritsstad alguns tratados de Simon Stevin, Samuel Marolois, Antoine de Ville, Jean Errard de Bar-le-Du e Leonardo Torriani, entre outros.
Outra tabela, a que chamamos de “Relação cronológica dos tratados de abordagem militar até o final do século XVII” (anexo II), elaborada em lógica diversa da anterior, dispõe os tratados em ordem cronológica de publicação ou elaboração, com seus respectivos autores. Com esta tabela, visualiza-se de maneira direta os tratados que antecederam a data de construção de cada forte construído no Recife, e da Mauritsstad, no espaço de tempo selecionado para a pesquisa.
Dos cento e sessenta e dois tratados listados, foram obtidos para a presente pesquisa cento e cinco cópias em meio digital e seis em meio físico fac-similares, o que permitiu um conhecimento geral de seus conteúdos.
0 5 10 15 20 25 30 35 40 Italianos Espanhóis Holandeses Franceses Alemães Portugueses Ingleses 05 10 15 20 25 30 35 Italianos Holandeses Alemães Franceses Espanhóis Portugueses Ingleses
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