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Os gêneros do discurso: histórico e considerações teóricas

Capítulo 3 O CRISTIANISMO NA IDADE MÍDIA

4.1 Os gêneros do discurso: histórico e considerações teóricas

Segundo Bakhtin (2000), o uso da língua “efetua-se em formas de enunciados” e está intimamente vinculado às demais atividades humanas, sendo, portanto variável. A estas diferentes formas de incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, já que “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 277).

Dessa forma, pode-se dizer que os textos têm relação intrínseca com a vida social; eles são compreendidos em sua historicidade, que traz consigo também os aspectos culturais. Os gêneros mudam a partir das modificações na situação social na qual exercem sua função, e as transformações ostensivas que se operam nos gêneros pré-existentes ocasionam o surgimento de novos gêneros. Daí a necessidade de se fazer a distinção entre o “testemunho tradicional” e o “testemunho contemporâneo”: diferem em sua função social, em seus participantes, em suas práticas discursiva e social. Se a prática discursiva mudou, também a temática é outra: hoje predominam os “testemunhos midiáticos”, que como foi verificado no nosso corpus, abordam principalmente problemas financeiros.

Portanto, sendo o gênero um produto social heterogêneo, variado e suscetível a mudanças, ele só existe em determinada situação comunicativa e sócio-histórica.

Corroborando com essa ideia, Bazerman (2006) afirma que os gêneros nunca surgem num grau zero, mas num veio histórico, cultural e interativo dentro de instituições e atividades preexistentes. Assim, temos por pressuposto que estudar os gêneros do discursivo é estudar a circulação de discursos e a inovação dos formatos dessa circulação, em termos de meios, canais, modos retóricos e tipificação. Segundo o mesmo autor (2006), pelo uso de textos, não só organizamos nossas ações diárias, mas também criamos significações e fatos sociais num processo interativo tipificado num sistema de atividades que encadeia significativamente as ações discursivas. É na interação social que o gênero se torna significativo, é em sua concretização que as diversas formas de comunicar, de entender e ser entendido, de significar a realidade em todos os sentidos são expressos.

Para Marcuschi (2002, p.19), os gêneros são

[...] entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. [...] Caracterizam- se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio- culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.

O conceito de gênero do discurso é usado recorrentemente nos trabalhos em Análise Crítica do Discurso, e corresponde, de acordo Fairclough (2008, p. 161) a “um conjunto de convenções relativamente estável que é associado com, e parcialmente representa, um tipo de atividade socialmente aprovado [...]”. Além disso, Fairclough (2008) postula que um gênero implica não somente um tipo particular de texto, mas também processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos. Cada gênero, portanto, ocorre em determinado contexto e envolve diferentes agentes que o produzem e consomem. Dessa forma, identifica-se o gênero discursivo como uma ponte entre o discurso e a sociedade.

O gênero testemunho, objeto de nossa investigação, uma vez que está presente em diferentes instâncias da vida social, é um gênero que perpassa diferentes domínios discursivos. Exatamente por isso encontramos diferentes

testemunhos, em diferentes domínios, como no domínio jurídico, publicitário, religioso dentre outros.

Vale destacar que, é cara a ACD a afirmação, também emprestada de Bakhtin (1992), de que os sistemas de gêneros discursivos ao mesmo tempo refletem e introduzem mudanças na prática social, numa relação dinâmica e histórica.

Um aspecto fundamental dos gêneros é sua mobilidade e tendência à mudança em processos interdiscursivos. Destacado por Bakhtin (2000), esse aspecto também é enfatizado na obra de Norman Fairclough (2003, 2008), que aponta a transformação dos gêneros discursivos contemporâneos sob a influência dos processos sociais de desencaixe das práticas operacionalizado pelo capitalismo globalizado. O foco na interdiscursividade é uma recomendação que o teórico britânico faz em suas obras publicadas a partir de 1989, em análises de reportagens de jornais, consultas médicas, textos publicitários, entrevistas políticas e documentos do governo (institucionais), mostrando a mescla entre o oral e o escrito para firmar uma posição de poder. A tendência à mudança nos gêneros discursivos atuais se deve, em grande parte, às relações interdiscursivas, e esse ponto é muito bem lembrado nas práticas sociais globalizadas, como é o caso da publicidade.

Na ACD a intertextualidade é noção-chave para desvelar a tessitura dos discursos. Para Fairclough (2008), a relevância do conceito de intertextualidade dentro da teoria proposta pela ACD está em perfeita harmonia com o foco sobre o discurso na mudança social. Ele comenta que

A rápida transformação e reestruturação de tradições textuais e ordens do discurso é um extraordinário fenômeno contemporâneo, o qual sugere que a intertextualidade deve ser um foco principal na análise do discurso [...] O conceito de intertextualidade aponta para a produtividade dos textos, para como os textos podem transformar textos anteriores e reestruturar as convenções existentes (gêneros, discursos) para gerar novos textos (FAIRCLOUGH, 2008, p.135, destaque do autor).

A ACD faz distinção entre intertextualidade manifesta e interdiscursividade (intertextualidade constitutiva). Na primeira se recorre explicitamente a outros textos específicos em um texto, já na segunda trata-se de como um tipo de discurso é

constituído através de uma combinação de elementos de ordens do discurso (FAIRCLOUGH, 2008).

Para Fairclough (2008), entre os elementos que estabelecem relações complexas nas ordens de discurso (gênero, tipo de atividade, estilo e discurso), o gênero é o elemento que precede em hierarquia aos outros.

Magalhães (2001, p.19,20), apresentando os conceitos chaves da ACD, enfatiza que “as mudanças da prática social refletem-se na linguagem através das mudanças nos sistemas de gêneros, ao mesmo tempo que são introduzidas por estas últimas”. Portanto, as mudanças da prática social não só determinam as mudanças no sistema de gêneros como também são determinadas pelo mesmo.

4.2 O poder do testemunho: o gênero “testemunho” em vários domínios