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Os humanistas contra Agostinho

No documento Rousseau e o Evangelho dos direitos do homem (páginas 107-117)

Capítulo 1 – Um vigário e uma profissão de fé

2.3. Homem bom e o pecado original

2.3.2. Os humanistas contra Agostinho

Essa nova explicação contrariava o entendimento tradicional das ortodoxias que atribuíam o mal ao pecado original. Segundo Delumeau, a civilização cristã colocou a queda original no centro de suas preocupações e a compreendeu como uma catástrofe que marcou o início da história.444

A noção de primeiro pecado nem sempre figurou como parte integrante do universo cristão. Nos Evangelhos e no símbolo de Niceia, não se fala do pecado original. É sobre o “pecado do mundo” que Jesus insiste e ele não faz menção a Adão. São Paulo, em compensação, num texto célebre da Epístola aos Romanos (5,12-21), põe vigorosamente em destaque o papel de Adão: é por ele, diz o apóstolo, que não apenas a morte, mas também o pecado entraram no mundo. O objetivo do “apóstolo dos gentios”, todavia, é sobretudo mostrar que a graça predomina sobre o pecado e que o Cristo-redentor apaga a “condenação” aplicada contra a humanidade. Graças ao sacrifício da cruz, “a multidão será constituída justa”: trata-se, portanto, de uma linguagem de esperança.445

Embora a narrativa figure no primeiro Livro do Antigo Testamento, o judaísmo antigo também não centralizou sua teologia sobre o primeiro pecado. Foi somente nas vizinhanças da era cristã que alguns escritos judaicos (não-canônicos) fazem remontar a Adão os castigos que pesam sobre a humanidade, mas sem marcar nitidamente a transmissão do estado pecaminoso do primeiro pai à sua descendência. Em seguida, até o último quartel do segundo século, a questão do pecado original permanece obscura nos textos dos padres apostólicos e dos apologistas cristãos.446

444 O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Trad: Álvaro Lorencini. Bauru: Edusc,

2003. Volume I, p.464. Durante séculos a tradição cristã viu a “queda do homem” sob o prisma da “transgressão de Adão e Eva”. Esta era interpretada como um “fato histórico”. Esse modo de compreensão não mais se sustenta contemporaneamente na teologia cristã, católica e protestante. Em primeiro lugar, a narrativa bíblica do Gênesis não pode ser tomada como um relato histórico, isso é evidente; em segundo, não tem a pretensão de ser uma “descrição científica” da origem do homem e do universo: cuida-se de um relato elaborado pelos judeus – segundo, naturalmente, a cosmologia da época e seus parâmetros mentais – no contexto do exílio da Babilônia (século VI a.C.). Sabe-se hoje que Adão e Eva não são nomes próprios: a palavra “Adão” deriva de Adam e

adamah, que significam “vir do solo”; trata-se, pois, de um nome para designar “ homem”, tal como a terminologia latina que derivou “humano” de húmus. “Eva” vem de Havvah, e significa “aquela que dá à vida”, ou seja, trata-se de uma caracterização da mulher, capaz de “dar à luz”. A “queda” é interpretada modernamente como orgulho humano de ser igual Deus, senhor de todas as coisas e autossuficiente.

445 Ibidem, p.465.

446 Ibidem, p.464-465. Delumeau cita o padre Rondet, Le Péché originel dans la tradition patristique et

théologique, t.III, 1969: A narrativa da queda, escreve o Padre Rondet, não é obsessivo (sic) [para eles]. O

dogma da Redenção não é baseado em primeiro lugar sobre o pecado de Adão como uma catástrofe primordial. [...] O pecado original só faz parte da fé cristã ainda de uma maneira bastante geral. É conhecida a narrativa do Gênesis: Adão e Eva pecaram, mas qual foi a natureza desse pecado, quais foram em detalhe suas

108 Em compensação, no fim do século II e durante o século III, Irineu, Tertuliano e Orígenes, cada um à sua maneira, interrogam-se sobre o pecado de Adão, que vai se tornar a preocupação essencial de Santo Agostinho. Provável criador da expressão “pecado original”, o Bispo de Hipona faz ao mesmo tempo uma sistematização e uma dramatização da doutrina a esse respeito. A formulação que ele propõe – contra Pelágio e seus adeptos – irá doravante exercer um papel decisivo na história – e na vida cotidiana – da cristandade latina, enquanto na tradição oriental o pecado aparecerá menos do que no Ocidente “como a categoria maior e fundadora da experiência da salvação”.447

A tese de Agostinho ganhará projeção no Ocidente latino, passando a nortear o entendimento dos homens ligados à Igreja pelos séculos seguintes. O ato transgressor de Adão e Eva teria manchado para sempre o gênero humano em razão da transmissibilidade da culpa do “primeiro pai”. Os sofrimentos inerentes à existência humana (morte, doenças, sofrimento, escravidão) deveriam ser imputados à mácula que desde então acompanha os homens. Pecador, o homem teria uma tendência irresistível ao mal. É bem verdade que a graça poderia colocá-lo numa outra situação diante de Deus, mas nem o poderoso sacramento do batismo poderia lavá-lo da culpa que carrega.

O Dictionnaire do abade Bergier, publicado no final da década de 1780, dá vários significados à palavra “pecado”. Dentre eles, a tradicional associação à concupiscência. Faz referência a Agostinho, o pai do conceito: “significa um vício, um defeito: a concupiscência é chamada pecado, porque é um efeito do pecado de Adão, um vício da natureza, que nos leva ao pecado; assim o explica Santo Agostinho.”448 Pecador é “aquele que é inclinado ao pecado, assim nós nascemos todos pecadores, ou somos levados ao pecado pela concupiscência que está na nossa origem.”449 A concupiscência, o desejo ou a tendência ao mal, seria um efeito do pecado de Adão e um vício irremediável da natureza humana. O pecado do primeiro homem explicava não somente o mal no mundo, mas era utilizado pelas ortodoxias do século XVIII numa perspectiva moralizante.

conseqüências, que lugar se deve dar ao pecado individual no estado miserável do gênero humano, quanto a isso, a Igreja ainda não se preocupou ex professo. Ibidem, p.465.

447 Ibidem. A Encyclopédie, no seu tomo 12 (publicado em dezembro de 1765), relativizava a ideia de “pecado

original”, mostrando a sua historicidade. Jaucourt, o autor Verbete péché originel (12, 226), lembra que a tradição variou muito sobre a questão; que Clemente de Alexandria não conheceu este pecado e que foi Orígenes, seu discípulo, que abandonará a opinião de seu mestre, sustentando que os homens nascem pecadores.

448 Dictionnaire de théologie dogmatique, liturgique, canonique et disciplinaire. [Texte imprimé, 1788] / par Bergier ;

Annotations et articles... par M. Pierrot. Paris: Ateliers catholiques au Petit-Montrouge, 1850-1851. v. 3, p. 1355- 1356. « signifie un vice, un défaut: la concupiscence est appelée péché, parce que c‟est un effet du péché d‟Adam, un vice de la nature, qui nous porte au péché ; ainsi l‟explique saint Augustin. » Disponível em :

http://gallica.bnf.fr.

449 Ibidem, p.1564. «celui qui est enclin au péché; ainsi nous naissons tous pécheurs, ou portes au péché par la

109 O Dictionnaire de Bergier também levanta a questão: poderia o próprio Deus ser considerado a causa do pecado? E responde afirmativamente, citando passagens bíblicas e aludindo ao entendimento da Igreja desde Agostinho:

é claro que Deus opera no coração dos homens para inclinar sua vontade seja ao bem, por sua misericórdia, seja ao mal, segundo o seu mérito. Quando Juliano diz que esta conduta de Deus é injusta, o santo doutor [Agostinho] fecha-lhe a boca com esta máxima: “não se pode duvidar que Deus não seja justo, mesmo que ele faça aquilo que nos parece injusto, e aquilo que um homem não poderia fazer sem injustiça.” (Op. imperf., 1. III, n.34 )450

A incoerência entre a justiça divina e a injustiça mundana era remetida a uma explicação de ordem sobrenatural: o entendimento humano não poderia compreender os desígnios e a vontade de Deus. O Dictionnaire diz ainda que fora Agostinho quem havia “determinado Lutero, Calvino, Mélanchton a sustentar que Deus é a causa dos pecados, bem como das boas obras [...].”451 A opinião orientara ainda Jansênio e o maniqueístas:

e Jansênio tem pretendido que o homem peca mesmo fazendo aquilo que ele não pode evitar. Os maniqueístas e os marcionitas abusavam dessas noções para desprezar os escritores do Antigo Testamento, e os incrédulos as utilizam ainda para tornar a religião ridícula e odiosa.452

As grandes referências teológicas de católicos e protestantes, luteranos e calvinistas, jesuítas e jansenistas, todas elas orientadas por Agostinho, estavam concordes quanto às implicações do pecado original. Mesmo a Reforma Protestante não libertou o homem das “amarras do pecado.” Lutero muito insistia sobre a condição pecaminosa do homem, e mesmo um Deus bom e misericordioso – ou as boas obras humanas – não seriam suficientes para alterá-la:

Às pessoas que receavam o inferno, Lutero declarou em resumo: parai de atormentar-vos! Deus não é um juiz severo, mas um pai compadecido. Seja o que for que fizerdes, sois e continuareis sendo pecadores a vida inteira. Porém, se crerdes no Redentor, vós estais já salvos. Tende confiança!453 A fé em Jesus, embora decisiva para a salvação individual, não poderia redimir o homem de sua culpa fundamental. O luteranismo e o calvinismo, de modo geral, foram nos

450 Dictionnaire de théologie dogmatique...op. cit., p.1357. « il est clair que Dieu opere sur le coeur des hommes

pour incliner leur volonté soi au bien, par sa miséricorde, soit au mal, suivant leur mérite. Lorsque Julien lui représente que cette conduite de Dieu est injuste, le saint docteur lui ferme la bouche par cette maxime : „ Il ne faut pas douter que Dieu ne soit juste, lors même qu‟il fait ce qui nous paraît injuste, et ce qu‟un homme ne pourrait faire sans injustice. »

451 Ibidem. « c‟est ce qui a determine Luther, Calvin, Mélanchton, à soutenir que Dieu est la cause des péchés

aussi bien que des bonnes oeuvres [...]. »

452 Ibidem, p.1357-1358. «et Jansénius, a prétrendre que l‟home pèche même en faisant ce qu‟il ne peut pas

éviter. Les manichéens et les marcionites abusaient de ces notions pour rendre méprisables les écrivains de l‟Ancien Testament, et les incrédules s‟en prévalent encore pour rendre la religion ridicule et odieuse. »

453 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Trad: João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989,

110 seus momentos iniciais doutrinas pessimistas quanto à natureza humana. O luteranismo insistiu muito na tese de que a salvação é dom gratuito e exclusivo de Deus. O homem não se salva pela força de suas boas obras, pois nesse caso estaria impondo a Deus sua vontade e sendo o juiz do próprio destino. Lutero aposta na inexistência do livre-arbítrio quanto ao tema da salvação.

Contra o pessimismo luterano fundamentalmente – e, mais tarde, calvinista – levantaram-se os humanistas, que postulavam por uma concepção otimista do homem. Erasmo, por exemplo, dizia que “o homem nasce para amar a sabedoria e as belas ações”; a natureza humana é “uma inclinação, uma propensão profundamente instintiva para o bem”.454 Os humanistas não negavam o pecado original, mas, em geral, não insistiam nele. Não iam para Deus pelo caminho do desespero, que foi o de Lutero. Atribuíam demasiado crédito ao homem para aceitar, quando chegasse a hora de optar, a doutrina protestante do servo-arbítrio. Além disso, mensageiros de uma doutrina de paz, eles desaprovavam muitas vezes a violência e o cisma.455

Além de Erasmo, Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino, Tomás Morus e Rabelais postularam uma visão positiva acerca da natureza humana. Pico de la Mirandola defendeu a dignidade do homem, e a Utopia, de Morus, propõe uma espécie de deísmo tolerante. A concepção de um homem pecador, irremediavelmente destinado ao mal, incomodava por demais os humanistas:

compreende-se por isso por que razão os mais notáveis representantes da filosofia da Renascença, John Fisher, Tomás Morus, Erasmo, Budé, Rabelais, Reuchlin, o próprio Lefèvre recusaram passar para o campo da Reforma. Melanchton e Zwinglio fazem mais figura de exceções.456

Delumeau cita alguns nomes que inicialmente participaram do movimento reformista, mas acabaram mudando de posição:

Franck, Servet, Castellion, Fausto Sozzini (Socin) se sentiram rapidamente insatisfeitos no interior das ortodoxias protestantes e evoluíram para posições cada vez mais dissidentes. Eles se tornaram os campeões do livre- arbítrio, do antidogmatismo e da tolerância. O Luteranismo e o Calvinismo foram – quanto ao fundo doutrinal – um anti-humanismo.457

O humanismo emerge com uma pretensão de purificação da linguagem bíblica. Os letrados renascentistas desenvolveram toda uma ciência filológica e inauguram, por assim dizer, o “método crítico nas ciências religiosas.”458 A paixão pelo grego e pelo hebraico

454 Apud DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma , op. cit., p.78. 455 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma , op. cit., p.80. 456 Ibidem.

457 Ibidem, p.80-81. 458 Ibidem, p.78-79.

111 produziram um afastamento da Vulgata latina atribuída a São Jerônimo, cujas imperfeições de tradução eram frequentemente denunciadas.459

A ciência filológica possibilitou uma nova leitura do texto bíblico e das mensagens ali encerradas. A religião cristã, como um todo, foi ressignificada ao longo da Renascença, e o Evangelho, melhor compreendido. Os humanistas postulavam uma nova religião, mais simples e evangélica:

Reencontrando a Escritura, limpando-a, à maneira de um quadro, das impurezas que a obscureciam, os humanistas aspiravam a uma religião simples, vivida, evangélica, cujos dogmas deveriam ser pouco numerosos e na qual deveria se procurar e achar a paz de espírito na imitação de Jesus. As cerimônias supersticiosas ou farisaicas teriam que dar lugar a um culto próximo daquele da Igreja primitiva.460

O desenvolvimento incipiente da ciência histórica, no contexto da Renascença, trouxe grandes contribuições a uma leitura mais qualificada do texto bíblico e a uma concepção de uma religião mais aliviada das formas devocionais coletivas e sacralizadoras da Idade Média. O cristianismo daí advindo se torna mais espiritualizado, intimista e cristocêntrico. Com o apoio da filologia e da história, os intérpretes do texto bíblico podiam compreender melhor a figura de Jesus e a historicidade e os significados de suas práticas. A religião daí advinda pretendeu ser mais uma imitação de Cristo do que propriamente uma devoção a relíquias e santos e aos seus supostos poderes miraculosos.

O humanismo prepara a Reforma, contribuindo para o regresso à Bíblia e para um culto interior; relativiza a importância da hierarquia, das ortodoxias, dos dogmas, das cerimônias, do culto aos santos. Mas sua concepção do homem melhor se coadunava com a do catolicismo (pelo menos, com o do século XX que repudiou o jansenismo) do que com o pessimismo luterano e calvinista.461

O processo de compreensão da essência da mensagem evangélica permitiu a humanistas como Erasmo falarem no cristianismo como religião essencialmente prática, dando assim maior relevo à caridade.462 O resultado do trabalho humanista foi a elaboração de uma espécie de “filosofia de Cristo”, essencialmente prática e antidogmática. Por intermédio de Castellion, Servet e dos Socianos, o humanismo renascentista viria a engendrar o deísmo do século das Luzes.463

459 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma , op. cit., p.79. 460 Ibidem, p.81.

461 Ibidem, p.82. 462 Ibidem, p.81. 463 Ibidem,, p.82.

112 É digno de nota que o deísmo inglês e francês dos séculos XVII e XVIII, avessos ao cristianismo institucional, são produtos do humanismo cristão da Renascença. A religião natural não é, inicialmente, um anticristianismo, mas uma um cristianismo ressignificado. O século XVIII e seus debates sobre religião natural são herdeiros diretos dessas tradições intelectuais que emergem no Ocidente na Renascença, com o humanismo e as Reformas religiosas do século XVI. 464

Rousseau e os ilustrados franceses do século XVIII têm consciência dos vínculos intelectuais que os unem aos humanistas do Renascimento.465 Setores das ortodoxias – católica e protestante – procurarão guardar e defender em meados dos Setecentos, com todas as forças, os legados de Trento e dos reformadores.466

A Igreja naturalmente não aprovava a tese da “bondade original”. Após citar a passagem do Émile em que Rousseau diz que os primeiros movimentos da natureza são sempre direitos e não há perversidade original no coração humano, o arcebispo de Paris faz o seguinte comentário:

Nessa linguagem, não se reconhece absolutamente a doutrina das santas Escrituras e da Igreja no que tange à revolução que ocorreu em nossa natureza; [...] há dentro de nós uma impressionante mistura de grandeza e mesquinharia, de paixão pela verdade e gosto do erro, de inclinação para a virtude e tendência para o vício [...] um contraste cuja origem a revelação nos desvenda na queda deplorável de nosso primeiro pai!467

Rousseau responde ao bispo Beaumont como um bom protestante, partindo do texto bíblico:

Para começar, essa doutrina do pecado original, sujeita a tão terríveis dificuldades, nem de longe, em minha opinião, está contida nas Escrituras de forma tão clara e tão rígida como o orador Agostinho e nossos teólogos pretenderam construí-la. E como conceber que Deus tenha criado tantas almas inocentes e puras expressamente para reuni-las a corpos culpados, para fazê-las contrair a corrupção moral, e para condená-las todas ao Inferno[...]?468

464 Contra o antidogmatismo humanista viriam a se levantar ambas as reformas do século XVI, a católica e a

protestante. Ibidem, p.82.

465 Rousseau possuía um exemplar latino de 1751 da Imitação de Cristo, de Thomas Kempis, um dos textos

fundadores da devotio moderna. COTTRET, B.; COTTRET, M. Rousseau en son temps., op. cit., p.642. É possível identificar em sua obra paralelos com o texto de Kempis, e obviamente eles não são casuais. Masson nos diz que nos momentos de dificuldade Rousseau o citava para ele mesmo, considerando o texto como uma espécie de suplemento do Evangelho. MASSON, P.-M. La religion..., op. cit., I, p.85.

466 De acordo com Jean Delumeau, as formulações do humanismo conduziam ao risco de espiritualizar demais a

religião. O que fazer, por exemplo, com as crenças fundamentais do cristianismo, os dogmas? E a liturgia? Erasmo acreditaria na divindade de Cristo e na presença real na Eucaristia? São questões que podem ser legitimamente levantadas e, segundo Delumeau, anunciavam já naquele momento aquela “crise de encarnação” que marcará o século XVIII. DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma, op. cit., p.82.

467“Carta pastoral...” In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a Beaumont..., op. cit., op. cit., p.221.

113

Voltaire expressa a mesma opinião no Dictionnaire, no verbete “pecado original”: Confessemos que Santo Agostinho foi o primeiro a conferir crédito a esta estranha ideia, digna da cabeça esquentada e romanesca de um africano, debochado e arrependido, maniqueu e cristão, indulgente e intolerante, que passou a vida a contradizer-se.469

Rousseau levanta outro argumento contra a ideia tradicional de pecado original: O senhor diz que somos pecadores por causa do pecado de nosso primeiro pai, mas por que nosso primeiro pai, ele próprio, teria sido pecador? Por que a mesma razão pela qual o senhor explicaria seu pecado não se aplicaria igualmente a seus descendentes sem pecado original, e por que seria necessário imputar a Deus uma injustiça [...]? O pecado original explica tudo exceto seu próprio princípio, e é esse princípio que é necessário explicar.470 Se Adão foi criado sem pecado, por que Deus teria nos criado com ele? Deus seria injusto? E se o primeiro pai, sem ter o pecado, pecou, não poderíamos explicar a nossa própria condição sem recorrer à noção de pecado original? Rousseau não nega “o pecado” no sentido de um mau uso da liberdade, mas põe em dificuldades a tese da transmissibilidade de um primeiro pecado.

Como a esmagadora maioria dos seus contemporâneos, Rousseau não rejeitava a veracidade da narrativa bíblica. Acreditava que muito daquilo que se encontra nas Escrituras havia de fato ocorrido, tal como ali se inscreve.471 Mesmo pressupondo a veracidade do texto bíblico em relação a Adão, ele dá um outro significado para a sua atitude. Para Jean-Jacques, Adão não pecou, mas resistiu a uma proibição arbitrária e inútil. E

resistir a uma proibição inútil e arbitrária é uma inclinação natural, mas que, longe de ser viciosa em si mesma, está de acordo com a ordem das coisas e com a boa constituição do homem, dado que ele seria incapaz de se conservar se não tivesse um amor muito forte por si mesmo e pela preservação de todos os seus direitos, tal como os recebeu da natureza.472

Adão agiu de conformidade com sua natureza, agiu como homem, para conservar-se e preservar os seus direitos. Os seus direitos de homem foram reivindicados diante da própria autoridade divina, e não se deve recriminá-lo por ter agido segundo as exigências e necessidades de sua espécie:

469 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. [1764]. Trad: Marilena Chauí. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p.

263. Coleção “Os Pensadores”.

470 « Carta a Christophe de Beaumont.» In : ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a Beaumont..., op. cit., p.51. 471 Masson chama a atenção para a crença de Jean-Jacques na veracidade do relato bíblico: « L‟histoire de

l‟humanité, telle que la Bible la raconte, y est tenue pour véridique ; ou, du moins, l‟auteur s‟efforce d‟interpréter conformément au récit de la Genèse les donnés certaines de la primitive histoire. » MASSON, P.-

M. La religion de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., v.1., p.216.

114 Acusá-lo de crime por isso seria acusar o fato de ele ser ele mesmo e não um outro, seria querer simultaneamente que ele fosse e não fosse. Assim, a ordem infringida por Adão parece-me menos uma verdadeira proibição que

No documento Rousseau e o Evangelho dos direitos do homem (páginas 107-117)