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Novos modos veiculam novos conceitos. O modo de conhecimento antropológico precisa escapar ao poder do pensamento. Mesmo quando a cultura do antropólogo (ou antropóloga) o posiciona no lugar do sujeito que vê, entende e explica um objeto, o Outro que ele encontra e tende a mesmificar sempre lhe escapa em algum dos seus versos. Os “humanos” da passagem, aqueles que pertencem a culturas que não são vesgas, falam nas entrelinhas da antropologia clássica, até que seus “conceitos” começam a adquirir relevância (conceitual, antropológica e filosófica) para os antropólogos “contemporâneos”, os leitores dos clássicos, aqueles que conseguem fazer da entrelinha, do ainda não dito, a figura. Novas figurações surgem neste processo: proliferação de possíveis...

Possível antropológico: a obviação (Wagner 1981). O Outro do Ocidente toma corpo, pois ao sentido é de novo permitido o suporte material (Duvignaud 1979: 91). Na estrutura da linguagem, o concreto do pensamento experimenta o “lugar” e o “lugar” experimenta a passagem, como se a cidade tivesse sido aberta à estepe, à “errância” da

palavra outrora amuralhada. Etnologia e lingüística: Lévi-Strauss se propõe “transcender a oposição entre sensível e inteligível” (Lévi-Strauss 2004:33).

Lugares e passagens são modos de conhecimento e modos do poder. O poder do conhecimento consiste, para nós, em refletir sobre o Outro18 como o mesmo – em senti-lo como sentido. Pensar o poder é um modo de mediar a dialética convencionalmente19, de definir contextos e estabelecer intervalos de significação, intervalos que permitem o sentido; intervalos duráveis, como um jogo de espelhos que pudesse conter a imagem. Assim, obtemos a primeira diferença: entre o olhar, ou sujeito, e a imagem congelada, ou objeto.

No outro pólo, o conhecimento do poder... Antes da ordem do sentir que da ordem do pensar. Sentir o poder é um modo testemunhar o mundo. Modo da obviação, da mediação dialética da convenção (Wagner 1981), da introdução de outro espelho, ou lugar, (de um possível efetuado) que permite ao sujeito se ver vendo o objeto. Lugar do rei, lugar do espelho, lugar onde o que é representado está “ausente”; ausência que não “cessa jamais de ser habitada” (Foucault 1999: 424). O que falta ao objeto e ao sujeito, ao par, o que se mascara, o que se esconde na modernidade da cidade e nas ruelas neurais do pensamento é a relação e, principalmente, seu modo de ação: a variação. Somos um tonal da duração, e por isso o nosso modo de simbolização convencional não “fornece” um “regime ideológico capaz de manejar a mudança” (Wagner 1981: xiii-xiv).

Outras culturas, outros “estilos de criatividade”, outros “modos de ação”, outros Tonais Coletivos, nos mostram a incontornabilidade da variação, mudança ou transformação constante de qualquer realidade no presente atualizada. Longe de querer ser o mesmo que nós, os outros (pelo menos enquanto antropologicamente traduzidos) nos convidam a liberar a diferença de seu caráter de limite externo e transcendente, em prol de sua possibilidade de também ser um limite imanente. O pensamento já não é só a instauração do intervalo; o pensamento é “imaginação relacional” (Viveiros de Castro 2001a: 05). Imaginação que varia junto com o mundo. A diferença está no mundo, e a objetividade também é relativa (Viveiros de Castro 2001a: 04). Longe de querer fazer do Outro o Mesmo, este pensamento nativo antropologizado (traduzido) por Viveiros de Castro internaliza a diferença de modo que a “auto-identidade envolve a ‘perspectiva do Outro’ como um momento constitutivo” (Viveiros de Castro 2001a:05). O óbvio é a relação e, portanto, a diferença que diferencia: “diferença intensiva” ou “relação

18 Esse outro que é “exterior e indispensável” (Foucault 1999: 451). 19

relacionante”, em contraposição ao mascaramento inerente a toda “oposição extensiva” ou “relação relacionada” (Viveiros de Castro 2001a: 10).

“Ato de diferenciação” (Wagner 1981: xiv), em lugar de ato de mesmificação. Os nativos da (ou para) a antropologia de Wagner não fazem cultura, fazem vida. A diferença é o inato, e a construção metafórica, a possibilidade de associar é atualizada como um ato de invenção (Wagner 1981: xiv), uma possível relação, outra possível diferença diferenciada – um acordo que permite o sentido. Mas apenas um acordo, um modo de ação. A ação do modo da obviação é o desmascaramento, o “evento que manifesta símbolo e referente simultaneamente” (Wagner 1981: 43). Evento, ou relação, que é convencionado, ou seja, limitado, para poder ser vida, para poder ser substância – associação. Fazer vida é atualizar a diferença, inventar fachadas, escudos, limites que nos mantenham vivos, que nos permitam sobreviver à relatividade, à relação, à alteridade, ao Outro transformador e transformacional. A vida não é o dado, assim como também não o é a motivação; e o mais provável é que não encontremos dados neste jogo da variação, que encontremos só uma constante redefinição de interiores e exteriores, como pede Latour (1999), de limites que substancializem as ações, os gestos, as relações . “[...] a substância é uma modalidade da relação, os termos são a relação em seu estado explicado, e a relação é a diferença ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve” (Viveiros de Castro 2001: 06).

Limites necessários, a vida é a atualização de uma diferença de potencial. Dinamismo da diferença, da variação. Dinamismo: “fluência permanente” de um “infinito sem limites” (Duvignaud 1979: 203). Entre a forma do termo, da diferença diferenciada, e a força dinâmica da relação, do diferencial da diferença, de sua ação transformadora, a etnologia se atualiza. Termos, substâncias e propriedades são resíduos das relações, “aquilo que surge e sobra quando estas se consumam e se consomem” (Viveiros de Castro 2001: 05). Consumar e consumir são modos de transformação.

A substância da forma e a força da relação se penetram e se fundem, se transformam. A continuidade e o descontínuo do tempo e do espaço se encontram por um momento. Momento em que no jogo do espelho se confundem os reflexos entre si, em que os espaços se interpenetram, e a indiscernibilidade expande-se no horizonte do saber; momento da obviação, do evento. Momento mágico da passagem entre o sujeito e o objeto... Momento “heterotópico”. Perdeu-se o “comum” do lugar e do nome, a “tábua de trabalho” (Foucault 1999: XIV). Morre o homem e, nas entre-linhas da etnologia, a palavra selvagem encontra sua linha de fuga. O sulco neutro do olhar (Foucault 1999: 05) é o lugar aonde o símbolo negativo vem brincar de esconde-esconde. A palavra selvagem passa

“pelo” sentido, carregada de não-senso. E o estruturalismo experimenta o que Deleuze (1982: 291) chama seus “fatores estruturais” (os tropos e seus “deslocamentos relativos”), até às últimas conseqüências. Metáfora das formas descontínuas e metonímia das forças contínuas (Viveiros de Castro 2002: 465). Os contrastes são cada vez mais sutis e os intervalos conceituais mais fáceis de percorrer com a imaginação. Eis o trabalho de “transdução” da antropologia.