• Nenhum resultado encontrado

séculos XIX e XX: perfis e trânsitos Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014 p 370.

OS INCENTIVOS OFICIAIS

As amizades emergidas dos encontros entre artistas brasileiros e portugueses ou as boas relações estabelecidas, também a nível pessoal, com a imprensa não resultariam, entretanto, na concreta instalação de um canal comunicador entre os dois lados do Atlântico. Em 1914 a

Revista da Semana lamentava que as visitas periódicas dos artistas portugueses ao Brasil não

contribuiriam verdadeiramente “para criar uma internacionalização do talento artístico e estimular pelo convívio as relações de camaradagem que deviam existir entre os cultores das letras e das belas artes dos dois países irmãos”1193. Faltava, obviamente, um projeto oficial que

congregasse estes anseios e elevasse o intercâmbio cultural a níveis não alcançados pelas microscópicas relações interpessoais. Foi para tentar preencher essa lacuna que atuaram os governos de além e de aquém-mar na passagem para o século XX. Portugal e Brasil promoveriam ações intermitentes no sentido de fomentar a aproximação entre seus povos e suas culturas, através de apoios oficiais que constituiriam mais um instrumento estimulador para a travessia do Atlântico de indivíduos, obras, volumes, produtos, projetos e conhecimentos.

Neste sentido, em 1902 o jornalista brasileiro Silvio Romero pronunciaria no Gabinete Português de Leitura uma palestra intitulada “Da conveniência de reforçar o elemento português no Brasil”1194, conferência que integrava o ciclo de discussões promovido pela Sociedade de

Geografia de Lisboa sobre “O elemento português no Brasil”1195. Já no ano de 1909, a

Academia das Ciências de Lisboa, então regida por Coelho de Carvalho, lançou a ideia de constituir uma aliança formal entre Brasil e Portugal. O conceito seria amadurecido no ano seguinte pela mesma Sociedade de Geografia, através de concurso que iria “premiar o escritor que tivesse proposto o método mais eficaz para garantir uma união moral entre os portugueses no Brasil e a mãe-pátria”1196. No decorrer da competição, o seu presidente e mentor, Consiglieri

Pedroso, chegaria a formular um “Acordo Luso-Brasileiro”, que previa a realização periódica de eventos mútuos, a negociação de tratados comerciais, a unificação legislativa dos países, a aproximação cultural e a edição de revistas comuns aos dois continentes, dentre outros itens.1197

1193 UM GRANDE ARTISTA PORTUGUÊS NO RIO. Antonio Carneiro. Revista da Semana. Rio de Janeiro, 4 jul. 1914, p. 32.

1194 A Notícia. Rio de Janeiro, 26-27 maio 1902, 3ª col., p. 2.

1195 MULLER, Fernanda Suely. (Re)vendo as páginas, (re)visando os laços e (des)atando os nós: as relações literárias e culturais luso-brasileiras através dos periódicos portugueses (1899-1922). 2 v. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 270. 1196 VIEIRA, Nelson H. Brasil e Portugal: a imagem recíproca - o mito e a realidade na expressão literária. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991. p. 131.

1197 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Relações culturais luso-brasileiras: encontros e desencontros. Anais do

XII Encontro Regional de História. Usos do passado. Rio de Janeiro: ANPUH, 2006. Disponível em: <

http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Lucia%20Maria%20Paschoal%20Guimaraes. pdf>. Acesso em: 18 de abril de 2014.

Em 1912, o poeta português Alberto d’Oliveira aproveitaria a sua coluna “Pombos- correios”, no Jornal do Commercio carioca, para discutir os meios de incentivo ao luso- brasileirismo.1198 Devido à proclamação da República portuguesa, em “1913 e 1914, as

respectivas legações diplomáticas em Lisboa e no Rio de Janeiro foram elevadas à categoria de embaixada”1199. A Sociedade de Geografia de Lisboa voltaria à cena em 1913, quando tentou

enviar ao Brasil um grupo representativo da cultura pátria (composto por cientistas, literatos, jornalistas e comerciantes) e que objetivava estabelecer contatos mais direcionados a prepostos da mesma área atuantes na jovem e progressista nação sul-americana.1200 No ano de 1916,

Olavo Bilac discursaria em Lisboa, ao lado de Guerra Junqueiro, sobre a irmandade entre os dois lados do Atlântico.1201 Logo em 1917, buscando estreitar o contato com a ex-colônia, o

governo português enviaria uma missão de intelectuais ao Rio de Janeiro. Um ano depois, João de Barros externaria suas opiniões sobre a “Aproximação artística luso-brasileira” para a Sociedade de Belas Artes lisboeta.1202 Barros, que no princípio do século XX chegou a garantir

que “a influência da arte portuguesa no Brasil pode dizer-se nula”1203, lutou durante anos para

alterar o vigente cenário de mútua ignorância. Junto aos brasileiros João do Rio e Navarro da Costa, por meio da Atlântida, alcançaria importantes resultados no sentido de melhorar a comunicação entre o além e o aquém-mar:

“[...] obtiveram como uma de suas vitórias a equiparação dos direitos e garantias dos artistas brasileiros e lusitanos por parte da Direção Nacional de Belas Artes de Lisboa, em 1917. Posteriormente, a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro instaura medida semelhante no Brasil, sendo tal atitude muito divulgada e festejadas pelos diretores da revista que tiveram claramente grande relevância nesse processo.”1204

Nova mostra de empenho no sentido da maior aproximação bilateral seria a inauguração da cadeira de Estudos Brasileiros na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, importante passo firmado apenas em junho de 1923, malgrado o cargo de professor da disciplina estivesse

1198 VIEIRA, Nelson H. Brasil e Portugal: a imagem recíproca - o mito e a realidade na expressão literária. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991. p. 131.

1199 MENDES, José Sacchetta Ramos. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil (1822-1945). Porto: CEPESE/Fronteira do Caos, 2010. p. 190.

1200 UMA MISSÃO BRASILEIRA EM PORTUGAL. O Paiz. Rio de Janeiro, 13 jun. 1913, 3ª e 4ª col., p. 10. 1201 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Relações culturais luso-brasileiras: encontros e desencontros. Anais do

XII Encontro Regional de História. Usos do passado. Rio de Janeiro: ANPUH, 2006. Disponível em: <http://

www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Lucia%20Maria%20Paschoal%20Guimaraes.pdf>. Acesso em: 18 de abril de 2014.

1202 MULLER, Fernanda Suely. (Re)vendo as páginas, (re)visando os laços e (des)atando os nós: as relações literárias e culturais luso-brasileiras através dos periódicos portugueses (1899-1922). 2 v. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 70. 1203 CARVALHO, Maria do Socorro Fernandes de. Mesma carne, outro sangue: notas introdutórias sobre as relações culturais republicanas entre Portugal e Brasil. Letras de Hoje. Porto Alegre: PUC-RS, v. 47, n. 4, out./dez. 2012, p. 352.

vago desde 1916. Na ocasião, Oliveira Lima (posteriormente substituído por Manoel de Souza Pinto) seria encarregado do trabalho catedrático.1205 Por fim, os consideráveis recursos públicos

e privados mobilizados para estabelecer um fluido diálogo entre Brasil e Portugal culminariam, em 1924, no estabelecimento da chamada “Convenção Especial sobre Propriedade Literária e Artística”1206. Desejo antigo da intelectualidade atuante no além e aquém-mar, este acordo

bilateral ampliava o regime jurídico de proteção a obras escritas em língua portuguesa, determinava a remessa ao outro país de cada novo volume produzido e previa a diminuição das taxas nas permutas firmadas entre as Bibliotecas Nacionais do Rio de Janeiro e de Lisboa.1207

Tais projetos, apoiados pelas administrações nativas, na prática não se mostrariam tão frutíferos. Brasil e Portugal seguiam experimentando um abismo ideológico entre suas culturas tão afins, distância atenuada apenas pelo compartilhamento da língua e o movimento migratório intenso. Já a pintura, que exalava os aspectos vernáculos da maneira mais intimista e sentimental, repercutia adequadamente os anseios dos governos nacionalistas emergentes e satisfazia as saudosas comunidades de imigrantes: “enquanto a música, a literatura, o teatro e a própria arquitetura procuravam, por vezes, adaptar-se às correntes da moda e se desnacionalizavam para se aburguesarem, a pintura [...] conservou-se fiel ao sentimento pátrio”1208. Neste contexto, o Brasil republicano buscaria definir e impor a sua verdadeira

identidade, enquanto o frágil e conturbado Portugal tentava manter seus atributos unificados em torno da imagem de um povo singular e especial.

5. 1 O governo português

Portugal se mostrou sempre mais entusiasta no que se refere às propostas de aproximação econômica e diplomática com o Brasil, lançando sucessivos empreendimentos simpáticos ao país irmão durante sua Monarquia e os primeiros anos de República. Estes projetos buscavam apaziguar as diferenças emergidas entre as duas nações desde a independência e reunir fatores comuns àquelas realidades aparentemente tão distantes. O

1205 SARAIVA, Arnaldo. Modernismo brasileiro e modernismo português: subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Campinas: UNICAMP, 2004. p. 45.

1206 SANTOS, Paula Marques dos; AMORIM, Paulo. As relações Portugal-Brasil na primeira metade do século XX (1910-1945). In: SOUSA, Fernando; SANTOS, Paula; AMORIM, Paulo (coord.). As relações Portugal-

Brasil no século XX. Porto: CEPESE, 2010. p. 126.

1207 MENDES, José Sacchetta Ramos. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil (1822-1945). Porto: CEPESE/Fronteira do Caos, 2010. p. 193-194.

governo português, fragilizado com o desmanche do seu império e a crise financeira que assolava seus cofres na transição para o século XX, tentava resgatar um glorioso e perdido passado por meio de discursos ufanistas. Neste ínterim, apresentaria o Brasil como exemplo máximo do seu poder conquistador e celebraria o modelo de colonização ali aplicado, responsável por fazer surgir uma progressista nação independente, um dos mais sólidos e ricos países das Américas:

O patriotismo cultural permitia alargar significativamente as fronteiras do espaço simbólico onde concretizar a regeneração pátria. Permitia pensar Portugal já não apenas como um país atrasado, decadente e dependente, lutando contra a sua pequenez numa arena dominada por ambiciosas e modernas potências. Mas como um ‘Portugal Maior’. Tanto no espaço como no tempo. Maior porque possuidor de um vasto império colonial. Maior por ser nação sempiterna, ‘valente e imortal’ – como se cantava n’A Portugueza. O patriotismo cultural permitia que em 1908 se pudesse dizer sem má consciência patriótica que ‘é no Brasil que está hoje a alma de Portugal’. Frase que tinha implícita a distinção da colônia portuguesa do Brasil como modelo exemplar de patriotismo, mas também a ideia do Brasil como caução dessa representação engrandecida da nacionalidade.1209

Ansioso por concretizar os tratados e acordos comerciais propostos à desinteressada nação tropical, o Estado português buscaria fomentar investidas mais graúdas no mercado brasileiro para divulgar seus artigos industriais, seus produtos agrícolas e suas Belas Artes. Ainda em 1879, quando o Brasil seguia sob o regime monárquico, Portugal lançaria uma importante tentativa de aproximação com a economia tropical: a Exposição Portuguesa de Produtos Industriais e Manufaturados - Fraternização pelo Trabalho, organizada pela Companhia Fomentadora das Indústrias e Agricultura de Portugal e suas Colônias, buscava propagandear os artigos pátrios e vendê-los como itens de consumo indispensável aos brasileiros e imigrantes portugueses.1210 A extensa Revista1211 e o minucioso relatório1212

produzidos em virtude do evento relatavam que a seção de Belas Artes exibiria obras de Anunciação, Miguel Lupi, Alfredo Keil, Marques Guimarães, Manuel Maria e Columbano1213

1209 SILVA, Isabel Corrêa da. Espelho Fraterno: o Brasil e o republicanismo português na transição para o século XX. Lisboa: Divina Comédia, 2013. p. 412-413.

1210 NETO, Maria João. A exposição portuguesa no Rio de Janeiro em 1879: ecos de um diálogo entre arte e indústria. In: VALLE, Arthur; DAZZI, Camila; PORTELLA, Isabel (org.). Oitocentos: intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal. Tomo III. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2013. p. 357-370.

1211 Pode ser acessada em: <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=342130>.

1212 RELATÓRIO da Associação Comercial do Rio de Janeiro de 1880. Exposição Portuguesa 1879. Rio de Janeiro: ACRJ, 1881.

1213 Dois Amigos e O último copo: “era a primeira vez que expunha fora de Lisboa, sendo distinguido com uma Medalha de Prata pelo júri da exposição”. ELIAS, Margarida. Columbano no seu Tempo (1857-1929). Tese (Doutoramento). Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2011. p. 75.

Bordalo Pinheiro, além de José Malhoa (agraciado com uma menção honrosa por A Praia do

Alfeite).1214

5. 1. 1 Exposição de Arte Portuguesa

O choque provocado pela Proclamação da República brasileira em 1889 suscitaria algumas dificuldades diplomáticas entre os regimes de além e aquém-mar que seriam superadas ao longo da década de 1890. Com a virada do século, o governo português voltaria a atuar em busca do estreitamento de relações com a ex-colônia. Em 1902 organizaria, por meio da Sociedade Nacional de Belas Artes, representada na ocasião por Guilherme da Rosa, uma Exposição de Arte Portuguesa no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. O evento objetivava intensificar as trocas mercantis pelo Atlântico e firmar um contato perene entre as duas nações. Dentre seus interesses culturais, desejava tornar constantes as viagens de artistas portugueses ao Brasil, concomitantemente às exibições de brasileiros em Portugal, de forma que se tornassem “conhecidos e apreciados um no outro”1215. O plano era abrir “um mercado à

Arte portuguesa no Brasil e, simultaneamente, um mercado à Arte brasileira em Portugal”1216

através da promoção de ao menos dois salões anuais, em Lisboa e no Rio de Janeiro, com fins de desenvolver uma conexão que “aproxima os povos e apaga os atritos mercantis ou políticos”1217. Em sua coluna, Arthur Azevedo comemorou a possibilidade de instalar na Europa

uma mostra de arte brasileira nos mesmos moldes da que teria lugar agora no Brasil, pois “essas viagens transatlânticas serão um ótimo estímulo para os artistas de ambos os países”1218.

Ao desembarcar no porto carioca em maio de 1902, já acompanhado de alguns itens e uma longa relação de pintores aderentes ao evento1219, Guilherme da Rosa convidaria os artistas

brasileiros a participarem da exposição que ele vinha realizar, de modo que fosse consolidado,

1214 NETO, Maria João. A exposição portuguesa no Rio de Janeiro em 1879: ecos de um diálogo entre arte e indústria. In: VALLE, Arthur; DAZZI, Camila; PORTELLA, Isabel (org.). Oitocentos: intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal. Tomo III. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2013. p. 368-369.

1215 EXPOSIÇÃO DE ARTE PORTUGUESA. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 jul. 1902, 2ª col., p. 1. 1216 EXPOSIÇÃO DE ARTE PORTUGUESA. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 jul. 1902, 2ª col., p. 1. 1217 EXPOSIÇÃO DE ARTE PORTUGUESA. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 ago. 1902, 3ª col., p. 1. 1218 AZEVEDO, Arthur. A arte portuguesa. O Paiz. Rio de Janeiro, 25 jul. 1902, 1ª e 2ª col., p. 1.

1219 José Malhoa, Columbano, Maria Augusta Bordalo, Luciano Freire, José Veloso Salgado, Carlos Reis, J. Christino da Silva, Ernesto Condeixa, Teixeira Bastos, João Vaz, Jorge Pinto, Jorge Collaço, Joaquim Luiz Cardoso, Thomaz de Mello, Martins F. Xara, Joaquim Porfírio (único da seção de desenho), João Carlos Galhardo, Manuel Henriques Pinto, Ferreira da Costa, José Ribeiro Junior, David Estrella de Mello, Pedro Guedes, Adriano de Souza Lopes, Enrique Casanova, Roque Gameiro, Augusto de Souza e A. Ferreira Quaresma. VER: A ARTE PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 jun. 1902, 9ª col., p. 2.

Documentos relacionados