• Nenhum resultado encontrado

4 O JORNALISMO POPULAR

4.3 Os jornais vs os leitores

“AS ÚLTIMAS 24 HORAS DOS JOVENS QUE MORRERAM” (O Globo, domingo, 03 de fevereiro de 2013)

É lugar comum estabelecer para o jornalismo popular a estratégia de apelo aos sentimentos do leitor. Não se trata de uma singularidade exclusiva desse segmento (que notadamente pratica com maior frequência e intensidade), pois jornais tidos como ”sérios” ou de referência podem, com efeito, adotar também esse tipo de procedimento. A manchete acima parece evidenciar um desses casos em que a opção pela chamada de capa, a despeito de se inserir, no momento de sua produção, em uma temática em efervescente discussão e interesse do leitorado em geral, não traz informações novas sobre o desdobramento do episódio em questão e intensifica, a nosso ver, o caráter dramático intrínseco ao episódio. Vemos, dessa forma, projetada na notícia, a comoção coletiva, ao encontro da qual o jornal projeta a temática dominical de capa. A exemplo do que é corriqueiro em relação aos jornais populares, na mesma medida, poderíamos dizer que isto não ocorreria sem razão, mesmo em se tratando de um jornal tido como de “referência”, conforme acentua Amaral (2006, p. 51)

É evidente que as empresas jornalísticas produzem jornais para o mercado. Aliás, qualquer jornal é feito para um determinado mercado, seja ele popular ou de elite; alternativo, de oposição ou sindical; vise ao lucro ou não.

Também, segundo Motta (2006, p. 10)

A notícia é um relato sobre coisas que ocorrem no mundo, mas não é qualquer relato. Ela tem uma especificidade, opera com a exceção e a inversão: a continuidade dos fatos não seduz a notícia, ela só se interessa pela ruptura ou transgressão da normalidade. Se não há exceção, não há notícia. Por isso mesmo, o jornalismo flerta com o absurdo, com o inverossímil e o aberrante, especialmente o jornalismo popular. Mas não apenas o jornalismo popular, o jornalismo de referência costuma também ser atraído pelo inusitado, pelo estranho, pelo misterioso.

Com efeito, todos os jornais (incluindo os de referência) estão subordinados a uma tensão produzida na própria esfera de comunicação, no interior da qual estão implicados interesses advindos de diversas direções, quer dos jornalistas, dos empresários, dos anunciantes, das fontes ou dos leitores.

Partindo do pressuposto de que “todos são feitos para o mercado”, Amaral (2006, p. 51) discute as principais diferenças entre os jornais conhecidos como de “referência” e aqueles conhecidos como “populares”. Além disso, trata das diversas necessidades de cada público-alvo e da influência dessas necessidades na constituição do jornal. Assim, classificar um jornal como popular, não envolve somente uma explicação com base na economia, mas inclui uma percepção cultural relevante para a compreensão adequada do fenômeno sob foco.

É importante evidenciar a necessidade de adequação do jornal ao seu público (leitores, anunciantes) porque decorre daí o privilégio de um ou outro comportamento por parte do jornal. Como diz Amaral (2006, p. 52), alguns jornais se voltam para um público com hábito regular de leitura, interessado em “ler o que ocorre no mundo”, já outros se dirigem às camadas mais amplas da população, oferecem informações mais ligadas ao cotidiano popular, à prestação de serviços e ao entretenimento. Eles focalizam o “mundo do leitor”. Segundo a autora (idem, ibidem, grifos seus),

O jornalismo praticado no segmento popular da grande imprensa subverte essa lógica de priorizar o “interesse público”. Baseia-se no entretenimento e não na informação, mistura gêneros, utiliza fontes populares e muitas vezes trata a informação de um ponto de vista tão particular e individual que, mesmo dizendo respeito a grande parte da sociedade, sua relevância se evapora. Muitas vezes, o interesse do público suplanta o interesse público não em função da temática da notícia, mas pela forma como ela é editada, com base na individuação do problema, o que dá a sensação de não realização do jornalismo.

Desta forma, como se tem enfatizado, os jornais populares seguem a tendência de destacar notícias que interferem no cotidiano dos leitores, que possuam uma característica dramática ou até mesmo humorística, as soft news88. Vejam-se, como exemplos, alguns títulos de notícias do jornal Meia Hora:

Escondeu cobras dentro da cueca (Meia Hora, 27/08/2011)

Borracha fraca é condenado por deixar esposa na seca (Meia Hora, 04/09/2011)

Hebe fica careca (Meia Hora, 27/09/2011)

‘Anjo’ aparece na praça (Meia Hora, 01/10/2011)

Boneca cai no choro e salva família de incêndio (Meia Hora, 28/10/2011)

Lula pressentiu que tinha câncer (Meia Hora, 03/11/2011)

Bicheiro cagava dinheiro (Meia Hora, 21/12/2011)

Em sua distinção, no que tange aos jornais de referência e aos populares, Amaral (2006) sublinha alguns pontos essenciais na caracterização de cada um.

O jornalismo de referência, segundo ela (idem, ibidem, p. 55), pode ser

caracterizado por uma prática calcada na racionalidade, especialmente de corte liberal, segundo a qual o jornal é o órgão de informação e de expressão que representa a classe política, por decorrência aquilo que tem interesse para o cidadão. O jornal, então, teria o compromisso com a verdade, com a credibilidade e com a objetividade, que lhe seriam pressupostas e comporiam o conjunto de princípios basilares da sua ética.

88 Motta (2006, p. 51), adotando uma terminologia norte-americana, divide as notícias, conforme as experiências cognitivas, em um continuum de dois grupos: as hard news e as soft news. As hard news são relatos jornalísticos de linguagem mais descritiva nos quais se adota um discurso que busca produzir pela verossimilhança o efeito de real. Já as soft news são relatos mais metafóricos e narrativos. Estas são notícias leves sobre temas humanos, tragédias pessoais ou coletivas. Cf. na nota anterior o conceito de fait divers.

Nesse jornalismo, as fontes são exercidas por pessoas ou instituições que possuem prestígio social capaz de gerar a credibilidade necessária para constituir argumentos de autoridade. Como diz Amaral (op. cit.), “quem não exerce poder na sociedade, não ocupa cargo ou não tem representatividade econômica não tem voz na notícia, a menos que suas ações produzam efeitos negativos”.

O jornalismo popular, por sua vez, visto que intenta adequar informação à

temática e linguagem mais populares, confere privilégio a determinados temas que se distanciam da natureza “ideal” do jornalismo, que na indicação genérica de Bahia (2009, p. 19) significa “apurar, reunir, selecionar e difundir notícias, ideias, acontecimentos e informações gerais com veracidade, exatidão, clareza, rapidez, de modo a conjugar pensamento e ação.” Acerca disso, Amaral (2006, p. 57, grifos seus) assim se posiciona:

Se toda notícia deve ser de interesse humano, nem toda a história de interesse humano deveria ser elevada ao status de notícia. Essa tênue linha que separa o que é de interesse público e o que não é flutua de acordo com o mercado no qual determinados jornais se inserem.

No caso dos jornais populares, a construção da credibilidade adquire outros contornos, calcando-se sobretudo na relação com o mundo do leitor. Desta forma, tais jornais ao falarem do universo do seu público não levam em conta se a informação se enquadra no âmbito do privado ou do entretenimento.

Amaral (idem, ibidem) explica ainda que, nesse caso, os assuntos públicos são muitas vezes ignorados, o mundo é contemplado por um prisma pessoal e os fatos são singularizados ao extremo. O enfoque nos temas maiores recai num ângulo subjetivo e pessoal. Por exemplo, o tema da contravenção no Grande Rio, que engloba um conjunto de crimes, foi apresentado sob a forma do título “Bicheiro cagava dinheiro”, por associação ao detalhe de o dinheiro recuperado na residência do envolvido ser encontrado escondido em um fundo falso de um sanitário e na rede de esgoto. A linguagem, neste caso, é também um item de composição do quadro de sustentação da credibilidade do jornal.

Nesse aspecto, Dias (2008), na emblemática obra O discurso da violência: as

apresenta minuciosa pesquisa acerca da linguagem no jornalismo popular, especialmente a que qualifica como “discurso da violência”. Segundo ela (p. 92), por meio da linguagem obscena e injuriosa, o jornal pode representar a afetividade que supostamente atribui ao leitor.

Os temas considerados mais comuns no noticiário do NP [Notícias Populares] explicam a incidência do grande número de vocábulos e expressões obscenas e injuriosas. De fato, notícias sobre o crime e a marginalidade, sobre sexo, sobre violência e desigualdade social conduzem facilmente à revolta e a uma linguagem exacerbada do ponto de vista afetivo. Embora vulgar e mais apropriada à linguagem popular oral, a linguagem obscena, às vezes, se presta bem a esse estilo e expressa reações que o leitor possivelmente teria na língua falada ante os fatos. (p. 92)

Então, veja-se que os parâmetros nos quais se pauta o jornalismo de referência se diferem nos jornais de matriz popular. Não só a linguagem os caracteriza, mas também os conteúdos mais chamativos, potencialmente desencadeadores de emoção, adquirem privilégio. Nesse sentido,

A imprensa popular cria um modo próprio de lidar com os conceitos de verdade, realidade e credibilidade. Se a função do jornal é “fazer saber” e “fazer crer”, na imprensa popular o “fazer sentir” passa também a ser uma das atribuições do jornal, mas não somente no sentido de produzir sensações a qualquer custo, mas com a intenção de seduzir o leitor com base na noção de pertencimento social (AMARAL, 2006, p. 59, grifos seus)

Nesse caso, não que a conexão com o mundo do leitor não ocorra nos jornais de referência, pois há uma expectativa sobre a imprensa (tanto por parte dos leitores, como dos códigos que regem a ética jornalística, bem como dos formadores de opinião) como uma instância de produção de informação daquilo que é de interesse público. Já no segmento popular, trabalha-se com uma projeção e incorporação de um perfil cultural construído historicamente sobre os interesses ditos mais vinculados ao real do leitorado das classes às quais se destinam, o que é determinante na seleção e abordagem dos fatos a serem publicados.