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2 MODERNIZAÇÃO E INTERVENÇÃO DO ESTADO NO COTIDIANO DA POPULAÇÃO

2.4 OS JURISTAS E A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

A instauração da República foi bem recebida pela maioria dos juristas que, de acordo com Alvarez (2003), viam na instituição do novo regime uma possibilidade de reforma das instituições jurídico-penais a partir dos ideais da escola penal da Europa, em especial a italiana. Porém, o Código Penal de 1890, informa-nos esse autor, ficou muito aquém das expectativas ao ser alicerçado nos ideais da escola clássica.

O desenvolvimento do direito penal moderno, no Brasil, passou por um processo de “racionalização”; no entanto, clássicos14 e positivistas15 têm concepções muito diferentes quanto à natureza do crime e do criminoso, quanto à sociedade e à lei. Esse desenvolvimento do Direito Penal moderno se dá em meio a rupturas e continuidades. Continuidade no que diz respeito à definição dos comportamentos desviantes e prejudiciais à ordem social, à definição de um Poder Público com a função de aplicar a lei e à ênfase no indivíduo. A ruptura estaria na crescente patologização do crime. Surge, no Direito Penal, uma crescente formalização dos códigos e aparecem os profissionais especializados indispensáveis nos julgamentos.

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Adeptos da Escola Clássica de Direito Penal, tendo como principal característica a defesa do livre- arbítrio como opção para as ações humanas.

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Defendiam a eliminação da chamada “metafísica do livre-arbítrio”. Para os positivistas, seguidores de Cesare Lombroso, o homem era produto do meio genético e social e havia uma “natureza criminosa” no indivíduo e que caberia à ciência descobrir as causas que o levaria à pratica criminal.

No Brasil, ‘clássicos’ e positivistas parecem ter chegado a uma combinação aparentemente paradoxal, ou seja, na história do direito criminal brasileiro as concepções ‘clássica’ e positivista sobre criminalidade e criminosos parecem revezar e combinar-se na resolução e no julgamento dos processos criminais e até mesmo nos códigos penais (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p.145).

Mesmo assim, Alvarez (2003) afirma que a promulgação do Código em questão foi feita sob inúmeras críticas de juristas e médicos envolvidos com questões penais. Essas críticas e propostas de reformulação atravessarão toda a Primeira República.

Segundo Rachel Soihet (1997, p. 363), “[...] O código penal, o complexo judiciário e a ação policial eram os recursos utilizados pelo sistema vigente a fim de disciplinar, controlar e estabelecer normas para as mulheres dos segmentos populares [...]”, melhor dizendo, não só para as mulheres, mas também para os homens. A ação dos juristas estava voltada para o sentido de assegurar o cumprimento das regras legais a que as pessoas deveriam se submeter, mas também para a aceitação de algumas regras sociais a serem reforçadas, regras entre as quais se destacam, por exemplo, aquelas voltadas para normatizar a sexualidade e a família.

Nesse sentido, gostaríamos de fazer uma pequena observação sobre o saber jurídico no Brasil, antes do advento da República. Corrêa (1981) esclarece que, durante o período colonial, o Brasil estava sujeito às normas das chamadas Ordenações Filipinas, que consistiam num conjunto de leis em vigor para Portugal e suas colônias.

Tanto em termos de formação dos quadros de estrutura burocrática, quanto no exercício do poder de repressão e penal, o saber jurídico no Brasil era totalmente subordinado à Metrópole portuguesa. Alvarez informa que, mesmo com a criação de universidades nacionais que estudavam o Direito, durante a primeira metade do século XIX, a influência da cultura jurídica portuguesa ainda era forte. O autor observa que a principal característica dos juristas brasileiros era o autodidatismo. “Novas idéias artísticas, sociais e políticas eram discutidas pelos estudantes de direito, notadamente a partir da segunda metade do século XIX, mas esta discussão ocorria fora das salas de aula longe dos mestres [...]” (2003, p. 25).

A instituição do Código Penal de 1890 foi marcada pelo debate entre aqueles que defendiam a teoria clássica, do livre-arbítrio, no Direito Penal, e os que aderiram às concepções positivistas do Direito Penal. Para Caleiro (2002), é desse debate que foram incorporados os pressupostos positivistas no Código Penal de 1941.

Os principais representantes da Escola Positivista italiana eram Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo. Ao criticarem a chamada “metafísica do livre- arbítrio”, princípio da Escola Clássica, reivindicavam o saber científico como único postulado para “[...] descobrir as causas que conduziam um indivíduo ao crime” (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 135).

Alvarez (2003), apesar de suas teorias não serem aceitas atualmente, e terem sido refutadas afirma que a obra de Cesare Lombroso teve grande influência nos debates jurídicos no Brasil. Sua importância, defende o autor, reside no fato de ele ter trazido para o campo da criminologia procedimentos científicos de pesquisa e deslocar o objeto de conhecimento da criminologia do estudo do crime para o estudo do criminoso.

Entretanto, de acordo com Caleiro (2002), em “O homem criminoso” (1876), Lombroso irá apresentar os estigmas da criminalidade: degeneração física e deformidades serão os principais indicativos de reconhecimento do criminoso nato. Para Alvarez (2003), Lombroso construiu uma teoria evolucionista, na qual os criminosos eram possuidores de tipos atávicos, ou seja, sua constituição física e mental reproduzia características primitivas do homem.

A doutrina criminal positivista, com suas abordagens científicas, terá uma forte adesão de grande parte dos juristas brasileiros, destacando-se, de acordo com Alvarez (2003): Clóvis Beviláqua, Viveiros de Castro, Aurelino Leal, Evaristo de Moraes entre outros.

Herschmann e Pereira (1994) constataram que a convivência das concepções clássicas e positivistas, no Direito Penal brasileiro, pressupõe a existência de indivíduos recuperáveis por meio de punições e de outros meios que necessitavam

de tratamentos médicos e educacionais especiais e, ainda, de alguns que eram considerados irrecuperáveis e deveriam ser segregados. Provavelmente contribuiu para fatores de hierarquização, estigmatização e diferenciação sociocultural, ao definirem que indivíduos deveriam ser castigáveis, tratáveis ou irrecuperáveis.

A difusão das ideias de Lombroso, na concepção de Caleiro, pode ser constatada em falas de delegados envolvidos com processos-crimes. “Estes profissionais da justiça tentavam encontrar no físico dos indiciados os estigmas sociais e biológicos que predispunham o indivíduo ao crime [...]” (2002, p. 49).

2.5 OS PROCESSOS CRIMINAIS PASSIONAIS: A CONSTRUÇÃO DOS