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Os juristas “Iulius Paulus” e “Domitius Ulpianus”

3. N ATUREZA JURÍDICA DA ACTIO POPULARIS : PROBLEMAS INTERPRETATIVOS

3.1. Análise do título 47.23 De popularibus actionibus

3.1.2. Os juristas “Iulius Paulus” e “Domitius Ulpianus”

Após a atuação de Papiniano (193-235 d.C.) os juristas pouco produzem de forma inovadora, dedicam-se, principalmente, a organizar e a comentar as obras de seus predecessores com o fito de se utilizar mais comodamente o material existente. Essa tendência que se observa a partir do II século tem como principais representantes Paulo e Ulpiano116.

a) Iulius Paulo foi discípulo de Cervidius Scaevola; não sabemos muito das suas origens, embora, segundo A. GUARINO, dada a qualidade do seu estilo, podemos imaginar que fosse romano ou pelo menos itálico. Foi adsessor de Papiniano, juntamente com Ulpiano, nos anos em que aquele foi praefectus praetorio; mais tarde, tornou-se magister

memoriae e membro do consilium imperial de Setímio Severo e Caracala; durante o reino

de Alexandre Severo (222-235) assume o cargo de praefectus praetorio, tendo como colega Ulpiano.

As obras de Paulo foram inúmeras (cerca de 90 escritos são a ele atribuídos), a maioria intitulada de “comentários” a obras de juristas anteriores: os VIII libri ad Plautium, os XVI Libri ad Sabinum, os IV libri ad Neratium (crestomatia de passos de Nerácio Prisco), os libri octo pluresve epitomarum Alfeni, os Pithanon Labeonis a Paulo

epitomatorum libri, as Notae ao Digesto de Juliano e às quaestiones do seu mestre Cévola,

às quaestiones e aos responsa de Papiniano117. Podemos encontrar nesses escritos um grande esforço de releitura e de sistematização da jurisprudência precedente, tratada por

115

F. SCHULTZ, Storia della Giurisprudenza Romana, trad. ital. de Guglielmo Nocera, Firenze, Sansoni, 1968, pp. 261-267. Ver também para um aprofundamento V. ARANGIO-RUIZ, Storia cit. (nota109), pp. 155- 166.

116

P. KRÜGER, Geschichte der Quellen und Litteratur des römischen Rechts, 1888, trad. fr. de J. Brissaud, Histoire des Sources du Droit Romain [T. Mommsen-J. Marquardt-P. Krūger, Manuel des Antiquités Romaines, XVI], Paris, Thorin, 1894, p. 271.

117 A. G

UARINO,L`esegesi delle fonti del diritto romano, Napoli, Jovene, 1982, pp. 231-232; ver também M. TALAMANCA, Lineamenti di storia del diritto romano, Milano, Giuffrè, 1989, pp. 450-451.

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Paulo, como por Ulpiano, sem nenhuma consciência histórica, já que ambos os mestres severianos não estabelecem distâncias de tempo entre si e os próprios interlocutores ideais; nem levam em consideração as mudanças das estruturas políticas ou das ideologias às quais se referem os materiais jurisprudenciais que estão comentando e reproduzindo118. Paulo escreveu também obras didáticas: os libri III manualium; os libri III institutionum; os libri VI regularum e os libri V sententiarum, ordenados segundo o sistema dos Digesta que para A.GUARINO são apócrifos119.

P. KRÜGER lista entre as obras de Paulo os cinco livros das sententiae ad filium, obra resumida e dedicada aos práticos e aos alunos de direito. O nosso conhecimento dessa obra provém da reprodução feita na Lex Romana Wisigothorum em que a obra de Paulo é denominada Sententiae receptae120.

Encontramos outros trechos da mesma obra em glosas marginais nos manuscritos concernentes a Lex Romana Wisigothorum, bem como na Mosaicarum et Romanarum

legum collatio, no Digesto etc. A obra é formada por um conjunto de máximas, ordenadas

em títulos de modo a constituir, mais do que uma obra didática, um prontuário prático121. F. SCHULTZ,seguindo a opinião majoritária, coloca em dúvida a autoria de Paulo dos libri V sententiarum ad filium e considera que essa obra, foi composta com escritos

principalmente, ou exclusivamente, de Paulo por um jurista pós-clássico. Tal fato, porém, não é de grande importância visto que, se Paulo escreveu uma obra do gênero, essa foi radicalmente revista no período pós-clássico e a obra revista substituiu completamente o original que não sobreviveu; o texto que possuímos apresenta claros sinais de uma origem pós-clássica, não bizantina ou visigótica122.

As obras menores de Paulo se ligam a sua atividade pública e têm como objeto a normativa imperial, os problemas da administração do principado, as formas processuais das cognitiones extra ordinem e as impugnações de sentenças ou as pronúncias dos magistrados reputadas injustas.

De todas as obras de Paulo a que mais interessa para o nosso tema são os libri ad

edictum em cujos fragmentos a actio popularis é comentada.

118 M. T

ALAMANCA, Lineamenti cit. (nota117), p. 451.

119

A. GUARINO,L`esegesi cit. (nota117), p. 233.

120

P. KRÜGER, Histoire des Sources cit. (nota116), p. 282 nt. 4.

121 V. A

RANGIO-RUIZ, Storia cit. (nota109), p. 300.

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Os libri ad Edictum de Paulo eram constituídos por 80 livros, dos quais os dois últimos continham o comentário ao edito edilício. Além dos numerosos fragmentos contidos no Digesto possuímos treze extratos provenientes dos Fragmenta Vaticana e um fragmento de um código de pergaminho egípcio do período entre o IV e o VI século (conhecido como o Fragmento de Oxford); provavelmente podemos incluir como sendo do comentário ao edito de Paulo os fragmentos conhecidos como de formula Fabiana (que se encontram em Viena) e aqueles indicados como Berolinense de bonorum possessione (hoje no Berliner Museum). Na opinião de F. SCHULTZ nos textos fora do Digesto é evidente o trabalho de um ou mais compiladores pós-clássicos; nos fragmentos do Digesto o original foi significativamente abreviado, mormente, no que concerne às citações da literatura123.

Além dos 80 livros ad Edictum, os compiladores de Justiniano possuíam um comentário ao edito mais breve, em 23 livros, que trazia o nome de Paulo.124 O seu título é incerto já que o Index Florentinus e as inscrições dos fragmentos divergem. A obra não era um simples comentário edital, mas uma breve obra nos moldes do esquema dos Digesta, sendo os primeiros 22 livros relativos ao edito; esta parece ser um epítome pós-clássico do comentário mais amplo125.

b) Domitius Ulpianus foi oriundo de Tiro, na Fenícia. Ele próprio nos informa que foi membro do conselho de um pretor (Ulp. 11 ad ed., D. 4.2.9.3). Com Paulo, foi adsessor do praefectus praetorio Papiniano. Parece que no começo do ano 222 d. C. Elagábalo o exilou, contudo, no curso do mesmo ano Alexandre Severo o faz regressar a Roma e o nomeia magister libellorum, convocando-o para fazer parte do seu consilium; em 31 de março de 222, torna-se praefectus annonae e, em 1° de dezembro, praefectus praetorio. Informa P. KRÜGER que Alexandre Severo o considerava quase como um tutor, tendo-o protegido, muitas vezes, contra a ira dos pretorianos, causada pelas restrições feitas por Ulpiano ao poder destes. No ano de 228, porém, Ulpiano é assassinado pelos pretorianos126.

A obra de Ulpiano provavelmente foi elaborada na época do imperador Caracala (212-217), pois durante o reino de Alexandre Severo as importantes funções públicas assumidas impossibilitaram o jurista de continuar os seus trabalhos científicos. Assim

123

F. SCHULTZ, Storia della Giurisprudenza cit. (nota115), pp. 346-351.

124

O. LENEL, Paligenesia Iuris Civilis. Volumen Alterum, I, Lipsiae, 1889, p. 955.

125 F. S

CHULTZ, Storia della Giurisprudenza cit. (nota115), p. 349.

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como Paulo, Ulpiano produz uma obra que pudesse abraçar o conjunto do direito e pudesse ser um instrumento útil aos práticos.

No entender de A. GUARINO, o jurista fenício teve menos valor que o seu contemporâneo Paulo, mesmo porque, devido à sua trajetória, dedicou menos tempo aos estudos, sendo mais superficial na medida em que simplesmente reproduziu literalmente o material consultado, fato esse, porém, que o tornou muito bem aceito pelos compiladores do Digesto de Justiniano127. P.KRÜGER, embora admitindo que Ulpiano não se preocupou em coordenar o consistente material reunido, muitas vezes, contentando-se em colocá-los um ao lado do outro sem amalgamá-los em um todo harmônico, considera-o um jurista penetrante, um espírito independente128.

O comentário ao Edictum Perpetuum de Ulpiano era em 83 livros129, o mais extenso que possuímos e o ponto de partida da obra foi certamente o monumental comentário de Pompônio; foi largamente utilizado em época pós-clássica como resulta das nossas fontes em que trechos dessa obra foram utilizados: os Fragmenta Vaticana e a Collatio

Mosaicarum et Romanarum legum; os Escólios do Sinai citam a obra de Ulpiano e

conforme depreende-se de um código em papiro do IV século o texto era lido no Egito (Pap. Ryl., III, 474). Os compiladores do Digesto o utilizaram como comentário principal não somente porque foi o último grande comentário ao Edito, mas também pelos seus méritos intrínsecos130.

O plano seguido pelo jurista de Tiro segue a tradição clássica. Primeiramente, Ulpiano comenta o edito do pretor e, posteriormente, aquele dos aediles. Ulpiano evita, na medida do possível, tratar do ius civile em sentido estrito, concentrando a sua atenção no

ius honorarium. O propósito parece ser claro: um esforço de codificação do direito

honorário, objetivo este que não tinha sido atingido pela codificação de Adriano. Aquilo que Pompônio tinha tentado, Ulpiano executaria sem se afastar da tradição clássica, i.e, não em virtude de um senatusconsultum ou de uma constituição imperial, mas de sua própria iniciativa, na qualidade de jurista com autoridade suficiente para fazê-lo131.

127A. G

UARINO,L`esegesi cit. (notaErro! Indicador não definido.), p. 235.

128

P. KRÜGER, Histoire des Sources cit. (nota116), pp. 297-298.

129

O. LENEL, Pal. cit. (nota124), II. p. 421.

130 F. S

CHULTZ, Storia della Giurisprudenza cit. (nota115), pp.351 ss.

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Não há dúvida que Ulpiano possui um profundo conhecimento da literatura do II século, bem como das obras mais importantes do I século, dominando todas as complexas problemáticas concernentes à interpretação edital; a atividade do jurista severiano não se confunde com aquela, bem mais superficial, dos compiladores ou epitomadores, seu escopo foi a codificação, seu propósito era avaliar os materiais existentes, fixar as opiniões mais aceitas, enfim, compor com a sua autoridade as controvérsias interpretativas. O seu comentário põe-se no mesmo plano do ius civile de Quinto Múcio, sendo Múcio um início e Ulpiano um fim132.

As fontes literárias do comentário de Ulpiano são as obras de Pompônio e de Pédio

ad edictum e os digesta de Juliano, de Celso e de Marcelo, assim como as quaestiones e os responsa de Papiniano133.

A segunda grande obra de Ulpiano são os cinquenta e um livros ad Massurium

Sabinum, trata-se do tratado mais amplo que temos sobre o ius civile conforme o plano de

Sabino. Possuímos dessa obra numerosos e extensos fragmentos no Digesto, mas também consideráveis fragmentos nos Fragmenta Vaticana.

Esta obra estaria inacabada. Segundo F. SCHULTZ, os 51 livros, possuídos pelos compiladores de Justiniano, não cobriam o inteiro sistema de Sabino, faltando todo o direito das coisas; alerta, ainda, o romanista alemão que o Ad Sabinum de Ulpiano foi revisto em época pós-clássica, já que os fragmentos contidos nos Fragmenta Vaticana apresentam frases que de forma alguma podem ser autênticas. Com efeito, não somente quanto à forma essas não são clássicas, mas apresentam uma incerteza, uma ignorância, um conhecimento superficial do direito, que, se é típico da escola jurídica pós-clássica, é inconcebível para um jurista que era assessor de Papiniano e mais tarde praefectus

praetorio134.

Entre as obras de caráter didático, temos os Regularum livri VII e o Regularum liber

singularis (ou Tituli ex corpore Ulpiani). O manuscrito dos Tituli ex corpore Ulpiani foi

publicado, pela primeira vez, pelo romanista francês Dutillet no século XVI, em seguida, tal manuscrito se perdeu, tendo sido reencontrado por F. K. von SAVIGNY na Biblioteca Vaticana no começo do século XIX. Trata-se de um manuscrito do século X que pertenceu

132 F. S

CHULTZ, Storia della Giurisprudenza cit. (nota115), pp. 354-356.

133 P. K

RÜGER, Histoire des Sources cit. (nota116), p. 288.

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à rainha Cristina da Suécia (Codex Vaticana Reginae n. 1.128), contendo a Lex Romana

Wisigothorum e um apêndice contendo uma obra elementar de direito romano. No entender

de V.ARANGIO-RUIZ a obra seria um epítome do IV século135.

Para F. SCHULTZ o autor do liber singularis não foi certamente Ulpiano, mas um desconhecido jurista do final do III século ou do começo do IV século. Sua fonte principal foi Gaio, segundo o texto das Institutas que nós temos. Não se sabe se o epítome tirou da circulação o Liber singularis inteiro, nem se os três fragmentos da Collatio e os dois do Digesto, indicados como extraídos do próprio Liber singularis Ulpiani, derivem da obra integral ou apenas do epítome136.

No que concerne aos Regularum livri VII, o Digesto reporta vinte fragmentos e as

Institutas de Justiniano utilizam pelo menos dois trechos137.

Ulpiano, como Paulo, escreveu monografias dedicadas aos officia dos magistrados imperiais, recolhiam normas esparsas e definiam os deveres das várias figuras que constituíam a complexa burocracia do tardo principado. M. TALAMANCA observa que tais obras, por um lado, correspondiam a uma exigência de certeza no exercício do poder, por outro lado, essas estabeleciam um estatuto profissional, um conjunto de regras de comportamento a serem seguidas pelos dirigentes das instituições imperiais138.

No campo da casuística Ulpiano deixou as seguintes obras: os libri II responsorum; os libri X disputationum. Salienta, porém, A.GUARINO que os libri VI opiniorum não são de autoria de Ulpiano139.