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OS LIMITES DO DEVER DE VERDADE NO JORNALISMO

A atividade jornalística está perfilada da ideia de que a verdade é o instrumento pelo qual o jornalista e a empresa da informação deverão se imbuir e reproduzi-la em suas páginas, na programação radiofônica ou televisiva, ou até mesmo persegui-la no ambiente digital. Tal razão se espraia na consciência coletiva em virtude da necessidade de construção da notícia o mais próximo do real. Os códigos deontológicos do jornalismo fazem emergir toda uma gama de aspectos éticos e morais, a fim de que se lancem as bases dessa busca pela verdade, objetividade e imparcialidade na práxis da atividade jornalística.

À medida que o jornalista adota a autoridade policial como sendo a sua principal e única fonte de informação, ficando a ela restrita, pactua um limite estéril de proteção jurídica, pois enquanto essa autoridade policial conserva-se no estrito cumprimento do dever de ofício, o jornalista e a empresa jornalística não alcançam tamanho benefício frente ao material publicado no periódico impresso. Sendo assim, a publicação da matéria gera a vinculação de responsabilidade a quem produziu, publicou e distribuiu.

Essa verdade tão cobrada do jornalista e perseguida na sua atividade profissional não se aloja distante das representações que ele imprime nos seus textos. A questão ética do profissional se mistura com essas representações ao passo que ele garante espaço noticioso no jornal para o qual desempenha as suas funções de repórter. Destacando o campo das representações no jornalismo, Costa90 infere:

A questão ética que perpassa o problema da representação precisa ser entendida, porque o comunicador vai sempre representar alguma coisa, e nunca a partir tão- somente de si próprio. Em nenhuma circunstância o comunicador vai realizar uma pura representação, ou uma representação pura. Essa representação sempre será mediada por outra representação, aquela realizada por outro (a fonte da informação) ou por vários outros (outras fontes, testemunhas...). Mesmo quando, em jornalismo, alguém estiver dando um depoimento pessoal sobre algo do qual é testemunha ocular. Cada representação carrega consigo uma imagem do mundo, uma ideia ou não-ideia do mundo, uma intelecção qualquer – seja educacional, cultural, _____________

90 COSTA, Caio Túlio. Ética, jornalismo e nova mídia: uma moral provisória. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.

ideológica, ignorante, crítica ou acrítica, mas sempre erigida a partir do outro, de outras representações.

Com essas ponderações temos em vista o limite do dever da verdade na construção do texto jornalístico. Nele, ao expor o viés unitário da declaração policial acerca do fato ocorrido, tem o jornalista não as fases reais do evento, senão um pequeno fragmento dessa verdade – que não autoriza resumi-la como uma integralidade noticiosa de caráter inquestionável.

O texto jornalístico deve obedecer aos critérios técnicos, respeitando o contraditório e as questões éticas no processo de edição da notícia. Antes mesmo de atender aos padrões éticos e técnicos, deve o profissional do jornalismo atentar para o aspecto legal, respeitando-o antes de qualquer outra obrigação, tornando-se consciencioso do seu papel social e dos efeitos danosos que o erro da informação poderá causar na vivência em sociedade. Seguindo esse mesmo raciocínio, Chaparro91 assim observa: “Com a sociedade institucionalizada, o jornalismo e o jornalista interagem num cenário de obrigações e direitos, regulado pelas leis e pelos costumes”.

Corre um sério risco de produzir o erro a decisão do jornalista que se alimenta apenas da informação da autoridade policial como se restasse demonstrada uma verdade absoluta no relato dos fatos e ocorrências na área da segurança pública. Contudo, a experiência tem deixado patente que a opção de fonte única do profissional da notícia e de quem a veicula coloca-os na condição de responsáveis pela má qualidade daquilo que está sendo disponibilizado para o público leitor. Por seu turno, a responsabilidade penal do profissional da mídia aponta com segurança os danos do bem juridicamente protegido – forçando a análise do limite da verdade ao tratar determinados assuntos no ambiente midiático.

Na avaliação de Daniel Cornu92, a liberdade é um valor fundamental à informação, contudo deve cercar-se de valores capazes de garantir a sua boa qualidade e credibilidade necessárias.

[...] Para que seja considerada boa, a imprensa deve corresponder as exigências da verdade: informações exatas, verificadas, apresentadas de modo equânime, opiniões expostas com honestidade livres de preconceitos, relatos jornalísticos verídicos e ciosos de sua autenticidade. O fator da verdade é decisivo. Ele é frequentemente posto, como na Declaração de Munique, como a primeira das obrigações morais de

um jornalista: “Respeitar a verdade, quaisquer que sejam as consequências para si mesmo, e isso em razão do direito do público de conhecer a verdade” (Deveres, 1).

Se informar significa tratar uma informação para depois divulgá-la, a informação _____________

91

CHAPARRO, Manuel Carlos. Pragmática do jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. 3ª. ed. São Paulo: Summus, 2007. p. 145.

deve ser exata e seu tratamento adequado. Caso contrário, a informação deixa de ser aquilo que é.

Em seu aspecto político, a empresa jornalística mantém liames muito fortes com os fundamentos e concepções liberais, quando se aproxima do pensamento de John Locke e do modelo de contrato social por ele idealizado. Conhecido como o pai do individualismo liberal, Locke defende direitos à vida, à liberdade e à propriedade, principalmente o de propriedade, como sendo o cerne do Estado civil93.

Daniel Cornu94 aponta o seguinte critério para analisar a responsabilidade social dos meios de comunicação de massa: “A ética da informação não se resume na ética dos jornalistas. Ela desdobra-se em uma ética dos meios de comunicação, cuja responsabilidade como organizações ultrapassa a soma das responsabilidades individuais dos jornalistas”. Nesse aspecto, pontua uma abrangência na órbita dessa responsabilidade por entender os efeitos devastadores de uma construção noticiosa eivada de vícios e problemática em seus erros coletivos.

O tema penal que propõe alcançar os resultados danosos provocados pela notícia viciada na sua elaboração/produção, devido às informações malsucedidas a partir de um único ponto pesquisado, estabelecendo uma só fonte como parâmetro balizador de eventos que envolvem muitos outros atores sociais, bem como cerceando a participação de outros atores sociais envolvidos, a exemplo do(s) indiciado(s). Essa relação espalmada nos dois ambientes da notícia, jornalista e empresa, provoca ranhuras na imagem e honra das pessoas, quando desprovidas do cuidado social que estabelece uma cumplicidade silenciosa e tendente a provocar o crime de calúnia.

No exercício democrático de difusão da informação através da mídia, deve-se considerar a importância de estabelecer o princípio do contraditório, resguardando o espaço necessário para que sejam garantidas as vozes contrárias às versões oficiais. Esse dever de imparcialidade é elemento essencial da atividade midiática, sem deixar de ainda considerar que na democracia outros instrumentos jurídicos serão considerados na relação interpessoal e/ou interinstitucional, a exemplo do direito de resposta. É dever da mídia perseguir a verdade e ao utilizá-la obedecer às normas constitucionais vigentes. Ao tratar das questões da verdade, esta não se confunde com a base principiológica da verdade real estabelecida no Direito Processual Penal, pois que ambas as situações (uma profissional e outra jurídica) não se _____________

93 WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da política. 13ª. ed. v. 1. São Paulo: Ática, 2004. p. 86. 94 CORNU, Daniel. Ética na informação. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru, SP: Edusc, 1998. p. 111.

confundem quando da análise contextualizada dessas distintas áreas. A verdade da mídia nem sempre será tratada como uma verdade processual, sendo esta motivadora de uma sentença que será proferida pelo magistrado, enquanto a verdade que deve a mídia perseguir tem caráter eminentemente informativo.

Ao trabalhar o aspecto da verdade como conceito conexo à liberdade, Häberle95 fixa entendimento da sua possibilidade, e ainda afasta a condição de sua inoperância, quando assim preleciona:

A pluralidade das verdades, o desencontro da verdade, o erro humano e o conhecimento de que toda busca da verdade termina quase sempre «atolada» no processo de busca, tudo isso não nos pode induzir a considerar o conceito de verdade como juridicamente irrelevante, «platônico» ou, até mesmo, a rejeitá-lo como uma «fórmula vazia». Como demonstrado, o conceito de verdade, como um

valor cultural para o Estado constitucional, sobretudo após as experiências com o

modelo totalitário oposto, é indispensável.

Eis que a garantia constitucional à informação exige sua aproximação da verdade, pois a produção e difusão dessas informações, bem como suas técnicas profissionais midiáticas, também estão forçadas a atender a essas exigências espalmadas constitucionalmente. As ideias apresentadas por Häberle em muito se identificam com o debate constitucional dessa mídia, que segue diariamente exercendo sua atividade como pressuposto basilar das garantias firmadas no ordenamento jurídico brasileiro. Sem essa atividade midiática, ora outorgada pelo Estado, ora desenvolvida individualmente, não haveria de consagrar concretamente esse direito conferido constitucional e democraticamente. É indispensável que exista algo mais além da tecnologia que garanta a propagação das notícias. Precisa-se de confiabilidade e do uso da verdade na produção do conteúdo informativo e noticioso.

6.2 A POSSIBILIDADE DA CALÚNIA NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO