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2. Inquisição: da metrópole à colônia

2.3. Os métodos do Tribunal

Conforme o Manual dos Inquisidores, a abertura pública dos trabalhos da Inquisição deveria seguir um roteiro solene, que se iniciaria com um sermão geral no qual o inquisidor exortaria o povo, através de um discurso, a extirpar a heresia. Ao final do sermão, seria solicitado que se fizessem denúncias, ameaçando de excomunhão “em linguagem bem prosaica” os que negligenciassem a delação. Em seguida, após explicar minuciosamente e em linguagem fácil o sentido das ameaças feitas, o inquisidor deveria abrir o chamado “Tempo de Graça”, concedido em geral por 30 dias (podendo chegar a 40), durante o qual, aqueles que se apresentassem espontaneamente, teriam suas penas abrandadas.

Note-se que há recomendação expressa para que a linguagem utilizada nas ameaças seja prosaica, mas ainda assim, para garantir que tal efeito pudesse produzir como frutos a denúncia e a confissão, recomendava-se explicar bem o sentido de tais ameaças, simplificando-as ainda mais, de modo que todos as entendessem.

O Tempo de Graça, quando do estabelecimento da inquisição em Portugal, prometia o perdão aos réus que confessassem seus erros e os abjurassem. Entretanto, como os inquisidores acabaram por receber amplos poderes, podiam prender os cristãos-novos - principal alvo dos tribunais – logo depois de perdoados e os processarem de acordo com o tribunal de fé; também

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as autoridades civis poderiam impedir sua saída do reino, “convertendo-se assim numa graça ilusória a bula do perdão”. (Herculano, p. 323)

Eram três as formas de abertura dos processos: por acusação, por denúncia e por investigação, estes últimos os mais usuais, já que o primeiro previa a utilização da lei de Talião, o que acabaria por inibir as acusações. O processo por denúncia era feito em juramento sobre os quatro evangelhos e perante um escrivão e duas testemunhas que fossem religiosos ou fiéis confiáveis. Todo o relato e a interrogação ficavam lavrados em um auto de delação devidamente datado. O processo por investigação era decorrência da verificação de boatos de heresia que se julgasse mereciam ser verificados.

O Manual dava ainda pormenores de como proceder no decorrer do processo, instruindo sobre o exame das testemunhas e sobre como interrogar o acusado, reservando para isto um capítulo exclusivo. O inquisidor é instruído a agir com malícia, considerada sua maior arma, para obter a verdadeira confissão. Constam ainda desse capítulo “os dez truques dos hereges para responder sem confessar”, seguidos dos “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges”.

Há, como se pode notar, uma tentativa do Santo ofício em controlar os sentidos. A Igreja considerava que os hereges possuíam truques para fugir à confissão e os catalogou em um número de dez. Os dez truques e não os principais truques. O número é fechado, indicando uma pesquisa acabada. Acrescido das dez formas de neutralizar esses truques, pode-se perceber que o Manual é regido pela ilusão do controle das possibilidades do dizer, ilusão de completude que desconsiderava a falha, as brechas e as metáforas como possibilidade de produção de outros sentidos e outras formas de dizer e significar.

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Para que houvesse êxito nos interrogatórios o réu não deveria saber de que, nem por quem era acusado, tendo assim sua culpa agigantada pelo recurso formal; apenas ele ficava em evidência; era ele o único ator naquele palco opressor. Deveria ainda ser perguntado se já ouvira falar de determinado assunto (do qual era acusado sem sabê-lo) e, se a resposta fosse positiva, seria pressionado com perguntas.

O procedimento mais comum era o de se fazer as perguntas usando pronomes indefinidos. Acusado de algo, por alguém e sofrendo as pressões a que os tribunais sujeitavam os acusados, a pessoa era capaz de confessar tudo. Qualquer coisa. Da indefinição que levava à prisão e na qual era mantido durante o interrogatório, o acusado acabava por definir para si algum delito. Havia ainda as perguntas que, dada a sua natureza induziam a uma resposta afirmativa: "Fostes alguma vez, em vossa juventude, brincar com crianças? Elas faziam coisas desonestas? Ali se encontrava uma mais maliciosa que as outras?", "Tendes algumas vezes maus pensamentos e más representações?".

Munidos destas perguntas que evidentemente levariam a aquiescências - pois a memória do povo acerca do que seriam maus pensamentos e práticas desonestas era a memória daqueles que os classificavam como tal -, seria difícil alguém não confirmar que algum dia os tenha tido. Era fácil para os inquisidores enveredarem os acusados por um caminho cujo final era a confissão de heresias. Aos acusados, a defesa era interdita, pois a avalanche de perguntas lhes tirava a possibilidade de retratarem-se. Neste ponto é impossível não lembrarmos Barthes, quando diz que não se pode apagar o que já está dito. Para desmentir (desdizer) é preciso dizer mais, e é assim que o réu se emaranha na teia do interrogatório. Quanto mais diz, mais elementos os acusadores - mestres na retórica - têm para (re)significarem seus discursos.

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Convém lembrar que, como não havia Tribunais propriamente ditos no Brasil, importar-nos-ão os métodos utilizados pelo visitador ao receber na Mesa do Santo Ofício o confitente ou o denunciante. Naturalmente tais ritos seguiram o que prescrevia o Regimento de 1640.

A recomendação referente ao procedimento inicial (tit. I, Livro II, Regimento, apud Lapa, 1978) dizia que ao visitador cabia receber as pessoas que fossem confessar culpas que ferissem a fé católica: blasfêmias heréticas, proposições temerárias, malsoantes e escandalosas, como afirmar que a fornicação simples não é pecado, ou ser bígamo, supersticioso, fazer sortilégios, renegar em terra de mouros com receio de torturas. O procedimento consistia em anotar a confissão em livro próprio, tirando uma cópia através do Notário.

Nesses casos o Visitador tomaria a confissão no livro respectivo, tirando-se dela uma cópia pelo Notário. Far-se-ia a genealogia e o exame. Os que se apresentassem fariam abjuração de leve, sob penas espirituais e não públicas. Quando discordavam os votos do Visitador e do Ordinário, o processo seria enviado ao Conselho Geral, assim também se procedia com os religiosos, conforme a culpa confessada bem como com os confitentes de culpas que resultassem ‘vehemente suspeita na Fé’. Ao Conselho Geral se remetiam ainda inúmeros casos, como os de culpa de judaísmo. A comissão conferida ao Visitador Abranches parece ir além do Regimento, pois conforme a Bula da Inquisição e os Breves que lhe foram concedidos dão ao inquisidor o poder de processar, prender e sentenciar os julgados culpados, o que ele aliás fez em alguns casos, pelo menos mandando prender os réus. (Lapa, p. 65)

Obrigar a dizer era política recorrente dos Tribunais do Santo Ofício, prática que jogava com o medo e que criava uma teia de delações que permitia aos inquisidores imiscuírem-se nas vidas privadas, tentar regular e revelar pensamentos íntimos, provocar a desconfiança entre familiares, amigos, vizinhos.

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As condições de produção de uma sociedade colonizada por um país que funcionava como um dos pólos de disseminação dos ideais da Contra-Reforma cooperavam para o assujeitamento ideológico que impelia os fiéis a quererem livrar-se de culpas e a confessarem e delatarem, julgando assim redimirem-se dos pecados que condenariam suas almas.

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3 – GRÃO-PARÁ E MARANHÃO EM “TEMPO DE GRAÇA”: A