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Os maracatus em sua forma “primitiva” no Carnaval do Recife

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Outra questão que gerou uma grande polêmica no Carnaval do Recife foi o quantitativo da verba destinadas aos “maracatus na sua forma primitiva”. Segundo o decreto lei n° 1.351/56 os maracatus receberiam 15% das verbas destinadas às agremiações carnavalescas, ficando os clubes com 35% e os blocos com 20%. Naquela época existiam dois tipos de Clubes: os de alegorias e os pedestres; o primeiro surgiu na segunda metade do século XIX, quando os grandes centros urbanos viviam o apogeu dos bailes, ao mesmo tempo em que surgiam grupos de mascarados, formados pela mesma elite, que frequentavam os bailes e que começaram a tomar conta das ruas.

170 BATUQUE da escola de samba Gigante do Samba. Folha da Manhã, Recife, 20 de jan. 1956. p.8.

171 SILVA, Augusto Neves da. Quem gosta de samba, bom pernambucano não é? (1955-1970). Recife,

dissertação de mestrado em história, UFPE, 2011, p.104.

172172ANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas : estratégias para entrar e sair da modernidade. 4.ed. São

81 O surgimento desses grupos, posteriormente, fomenta o aparecimento dos clubes pedestres, que eram formados em grande parte pela classe trabalhadora da cidade do Recife. A rua passou a ser disputada por grupos antagônicos: de um lado os grupos de mascarados que andavam pelas ruas com seus luxuosos carros alegóricos, formados pela alta sociedade recifense; do outro estavam os clubes pedestres formados pela classe trabalhadora.

Já os Blocos Carnavalescos Mistos surgiram no Recife a partir dos anos vinte do século XX, com características distintas de outros tipos de agremiações que compunham o Carnaval do Recife. Diferente dos clubes, eram compostos fundamentalmente por pessoas de uma mesma classe social; os blocos surgiram a partir das reuniões festivas promovidas pelas famílias residentes dos bairros de São José e da Boa Vista. Desse modo, podemos compreender por que os Clubes recebiam 35% do total da verba destinada às agremiações. Eles eram formados, na sua grande maioria, pela elite recifense 173.

Já os maracatus eram formados por negros, moradores da periferia e da Zona da Mata. A situação ainda era pior para os maracatus de baque solto, pois muitos dos folcloristas os consideravam maracatus “disfarçados” ou “híbridos”. Como a historiografia e antropologia nos mostra, existem dois tipos de maracatus em Pernambuco: maracatus de baque solto e os de baque virando174. Os maracatus de baque virado são considerados um dos símbolos da

resistência negra em Pernambuco. Esses grupos passaram por períodos difíceis, principalmente na década 1960, após a morte de Dona Santa, uma afamada rainha do maracatu Elefante, no período. Folcloristas como Katarina Real e Guerra Peixe afirmaram o fim dessa herança. Durante muitos anos foram hostilizados e impedidos de dançar livremente pelas ruas do Recife175.

Já os maracatus de baque solto, há várias décadas vinham sofrendo “perseguições” pela Federação Carnavalesca Pernambucana, a fim de forçá-los a mudarem de ritmo e também colocar “rei” e “rainha” como nos cortejos dos maracatus nação176. Segundo a

173 NOVA, Júlio Vila. Panorama de Folião: o Carnaval de Pernambuco na voz dos Blocos Líricos. Recife:

Fundação de cultura cidade do Recife, 2007.

174FREIRE. Janaina Cordeiro. A mudança cultural em um Folguedo popular: o caso dos maracatus. Recife,

monografia de conclusão de curso em ciências sociais, UFPE, 1994. GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Maracatus-nação, uma história entre a tradição e o espetáculo. In: GUILLEN, Isabel Cristina Martins. (Orgs)

Tradições & traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife: Universitária, 2008.

LIMA, Ivaldo Marciano de França. Entre Pernambuco e a África. História dos maracatus nação do Recife e a

espetacularização da cultura popular (1960-2000). Rio de Janeiro, Tese de doutorado em História, UFF, 2010.

175A instituição dos reis e rainhas negros sob a proteção das irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São

Benedito, cujos cortejos de coroação deram origem ao maracatu. No Recife, os cortejos dos reis negros se transformaram em maracatu no final do século XIX com a abolição da escravidão. Idem.

176 Baque significa o toque dos instrumentos. O compasso é retomado a cada ciclo, quaternário, numa constante

82 antropóloga Katarina Real, o folguedo também vinha sofrendo perseguição por parte da impressa, que considerava lastimável a apresentação o aparecimento desses grupos descaracterizados que todos os anos apareciam no Carnaval.

É simplesmente lastimável a apresentação destes maracatus descaracterizados que todos os anos aparecem no Carnaval. Melhor seria que esses conjuntos fossem classificados como tais, pois maracatu com orquestra, flautas e pífano, com uma praga de “tuchaus” carregando nas traseiras aquela lataria pode ser tudo menos “nação africana”.177

Segundo Katarina Real, nos anos de 1961 e 1965 existiam no Recife aproximadamente onze maracatus rurais dos quais apenas sete estavam filiados à Federação Carnavalesca Pernambucana. Os Filiados recebiam uma pequena subvenção que variava Cr$ 60.000 ou Cr$ 70.000. Segundo o Jornal Folha da Manhã,

A grande maioria dos maracatus pernambucanos está caminhando para a completa descaracterização, observando-se mesmo que novo ritmo está surgindo nos nossos festejos de rua, quer pela música, quer pela indumentária. Apenas três dessas agremiações vinham conservando a pureza das suas tradições: Maracatu – Elefante – Leão Coroado e o Estrela Brilhante. Acontece, porém que a dois anos Dona Santa vem tendo sua saúde abalada , sendo problemática a exibição da agremiação centenária no Carnaval deste ano. Por outro lado, a morte ceifou a vida de “Martinha”, ex-rainha do Maracatu Leão Coroado e de Cosmo, o insubstituível rei do Estrela Brilhante, por isso também estas duas tradicionais agremiações típicas do carnaval recifense não estará presentes aos festejos de momo que se aproxima.178

(sic)

Desse modo, podemos perceber que existia uma variação entre a subvenção paga aos maracatus de baque solto e os de baque virado. Os primeiros, na década de 1960, passaram pela intervenção da Federação Carnavalesca Pernambucana, sendo “recomendado” que mudassem o seu ritmo musical no sentido de se aproximar do modelo do maracatu nação. Em busca de uma maior subvenção e visibilidade, alguns maracatus de orquestra tornam-se maracatus nação.

Traremos como exemplo o caso do Maracatu Indiano: essa agremiação traz em sua trajetória pelo Carnaval do Recife uma característica que é de fundamental importância para compreender até que ponto esses grupos deveriam se adequar às exigências da Federação Carnavalesca. Isso nos permite analisar como um maracatu considerado “impuro” conseguiu tanto prestígio na época em que predominava a tradição. O maracatu Indiano foi um maracatu de orquestra, que transforma-se em nação por “pressão” da Federação Carnavalesca de

177Diário da Noite, Recife, 11 de jan. 1964 apud REAL, op. Cit, p.82.

83 Pernambucana, em 1957. O maracatu teve que trocar as suas duas bonecas de pano, por exigência da Federação Carnavalesca, passando a colocar bonecas de madeira; essa imposição, em termos religiosos, acarretava sérios problemas ao grupo. Segundo a antropóloga, Janaina Freire em uma entrevista realizada com os antigos integrantes do maracatu Indiano:

(...) o tratamento reservado à boneca no Indiano é bastante especial. Mesmo que não atenda rigorosamente ao que versa a tradição, ou seja, mesmo que tenha inovado ao levar bonecas de pano para o desfile, esse fenômeno é justificado ritualmente. Não se trata, portanto, de uma transformação “gratuita”.179

O Indiano foi fundado em 1949, no Alto do Deodato, Zona Norte do Recife. Nos primeiros cinco anos de sua existência foi um maracatu de orquestra. Depois se transforma em maracatu “nação”, até 1991, quando é interrompido. Um dos principais líderes do Indiano foi Zé Gomes. Um homem de grande habilidade para conseguir recursos financeiros para o seu maracatu. O historiador Ivaldo Lima caracteriza Zé Gomes como um homem muito dinâmico, que organizava festa para os integrantes do seu maracatu. E era essa “generosidade” que fez dele um homem popular dentro do seu grupo.

Na década de sessenta, enquanto os maracatus mais tradicionais como o Leão Coroado desfilava com poucos integrantes, o Indiano chegava a levar pelas ruas do Recife mais de 300 desfilantes. O maracatu ganhou vários campeonatos nos desfiles oficiais organizados pela Comissão Organizadora do Carnaval. Essas imposições sofridas pelos maracatus de baque solto representam a força da lei de 1955 sobre eles. As pressões sofridas não foram só externas; dentro da própria agremiação existia o desejo de ser reconhecido.

Os maracatuzeiros do baque-solto eram vistos como estranhas figuras de lanceiros e tuxaus, não sendo compreendidos pelos organizadores dos desfiles oficiais e pela imprensa. Nos jornais pesquisados, não encontramos fotos ou qualquer notícia que não falasse desses grupos de forma depreciativa. Eles eram proibidos de desfilar em lugares oficias. Por isso, foram obrigados, não na força lei, mas na marra, a ajustar-se ao modo de maracatus africanos, a fim de “merecer” auxílio e subvenção, que por sinal era de apenas 15%.

Não existia uma equidade na distribuição da verba destinada às agremiações. O que corrobora com a ideia de que o Carnaval não é um lugar democrático. É no desenrolar da festa que descobrimos quem é que manda. Os interresses politicos e sociais tormam-se latentes

179FREIRE. Janaina Cordeiro. A mudança cultural em um Folguedo popular: o caso dos maracatus. Recife,

84 enquanto Momo reina. Desse modo, por mais que o Carnaval seja um espaço central de resistência do folião e brincante contra as investidas vindas do alto, o Carnaval reflete as relações desiguais existentes na sociedade.

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