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Os mediadores da reforma agrária: CPT, MST e FETRAECE

1 A REFORMA AGRÁRIA E O JOGO POLÍTICO

1.4 Os mediadores da reforma agrária: CPT, MST e FETRAECE

Relatar os principais argumentos desses agentes, colhidos de entrevistas, e citar autores que analisam a ação desses mediadores é explicitar a visão norteadora que alavancou o processo da reforma agrária. Para o nosso estudo, a sua importância se revela na medida em que eles possibilitam aos camponeses sem-terra transformarem-se em sujeitos de sua história, das rupturas em suas trajetórias ou até mesmo de continuidades.

Para Touraine (2006, 119),

(...) o sujeito se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que nos impedem de sermos nós mesmos, que procuram reduzir- nos ao estado de componente de seu sistema e de seu controle sobre a atividade, as intenções e as interações de todos. Estas lutas contra o que nos rouba o sentido de nossa existência são sempre lutas desiguais contra o poder, contra uma ordem. Não há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva e esperança.

Não se pode compreender a realidade objetiva, pela contemplação, mas sim mediante uma determinada atividade. Para Kosik (1976, 22), a estrutura só é apreendida na medida em que o homem se comporta antes de tudo como ser prático. Consideramos

a liberdade buscada como expressão dessa prática, pois trata-se de um ser ativo, mesmo que lhe faltem, por um lado, uma maior conhecimento da estrutura social e, por outro, os meios para consequências objetivas. Comportar-se dessa forma, porém, torna-se relevante pelas perspectivas de gerar, a partir do problema social vivido, um conflito que, segundo Touraine (2006, 130),se faz necessário para que ocorra a ação coletiva. Um dos mediadores da reforma agrária, a CPT,30 que inicialmente se chamou Comissão de Terras, foi concretizada no ano de 1975, no Encontro da Pastoral da Amazônia, em Goiânia-GO, promovido pela CNBB e pela Comissão de Justiça e Paz, Seção Brasileira, e teve como coordenador o Bispo do Acre e Purus Dom Moacir Grech. Ligada à Igreja Católica, ela, a princípio, estava preocupada com o regime político, de repressão social e, nesse sentido, conforme Dom Poletto (2004, 2), ela “foi um dos organismos criados para defender as pessoas da crueldade da ditadura e abrir caminhos no sentido da derrota dessa ditadura que fazia o jogo dos interesses capitalistas nacionais e transnacionais”. Com efeito, as expulsões dos posseiros na Amazônia e a degradação da vida no latifúndio são demandas assumidas que justificaram sua criação:

(...) os verdadeiros pais e mães da CPT são os peões, os posseiros, os índios, os migrantes, as mulheres e homens que lutam pela sua liberdade e dignidade numa terra livre da dominação da propriedade capitalista. Os de ontem e os de hoje, pois a CPT só tem sentido evangélico se continuar a ser evangelizada, a ser transformada, a ser recriada para realizar sua missão em cada tempo e em cada lugar por meio de serviços concretos diferentes, a depender das situações e necessidades percebidas nos clamores do povo. (DOM PALETTO, 2004; 4)

Por sua vez, Martins (2000, 146) assinala que o seu surgimento, impulsionado pelo “evangelho de justiça” em favor das vítimas mais desabrigadas e mais desamparadas do regime fundiário, ocorre num complexo terreno de incertezas, tanto teóricas como práticas. Já o MST nasce no interior da CPT, estimulado por demandas políticas e ideológicas estranhas ao trabalho pastoral.

Situa-se, então, como problemática para esses dois mediadores “a função do conhecimento erudito na tradução do fundamentalismo popular e particularista em concepções universalistas do momento histórico e da realidade social que o define. (MARTINS, 2000; 27)”. Ainda segundo este mesmo autor,

(...) a concepção fundamentalista muito difundida, mais na CPT do que no MST, de que essa consciência já contém um projeto histórico abrangente, resulta numa tese política simplificadora e pobre da conflitividade na História e da função histórica dos conflitos sociais. Em primeiro lugar, porque todas as lutas sociais, sem distinção, são reduzidas ao código de conflitividade próprio da cultura popular. Os conflitos são sempre pessoas, com rosto e nome, diversamente do que é próprio do conflito político. (MARTINS, 2000; 27).

A esse respeito, a coordenadora da CPT no Ceará nos deu o seguinte depoimento:

(...) não dá para generalizar, alguns grupos têm objetivos e sabe porque estão lutando, pode não saber explicitar, mas é um projeto difuso, até mesmo por conta da questão conjuntural, há uma divisão entre eles (os camponeses), uns estão satisfeitos com o governo outros não, esta diversidade complica porque os movimentos não vêm ou não têm essa unidade, em alguns momentos se unem, noutros se dividem. (ENTREVISTADA em 10/06/2008, na sede da CPT).

O outro mediador, MST, representado pela dirigente estadual, nos falou que

(...) ele (o sem-terra) tem um sonho, ele tem o desejo, só que do sonho pro desejo, pra consciência, a consciência de que ele é explorado, a consciência de que ele não tem aquele pedaço de terra. Ele não sabe qual é a razão dela, que ele não tem um pedaço de terra por que os latifundiários foram ocupando, foram expulsando os seus pais do campo, então né, foram é, botando cerca, botando o pessoal na estrada. Ele não tem essa consciência, ele tem o desejo e nesse desejo de conquistar o pedaço de terra, essa vontade né, de poder criar sua vaquinha, de poder criar suas ovelhas, ele tem isso dentro dele. Ele tem isso, ele vai despertando a partir do momento que a gente começa trabalhar o processo da consciência camponesa. (ENTREVISTADA em 24/03/2008, em sua residência no projeto de assentamento Leni Paz II, estudante de Direito).

O pensamento do terceiro mediador, a FETRAECE, conforme um dos seus diretores é que

(...) os sem-terra eram dependentes, eles eram orientados para não pensar, não podiam, se tivessem esse projeto já teria sido resolvido a reforma agrária. O grande sonho é o acesso a terra, o grande desafio dos mediadores é encontrar um projeto que eles compreendam, por isso é que a reforma agrária é só distribuição de terra, precisa de política de formação, capacitação. (entrevistado em 26/05/2008, na sede da FETRAECE).

Entende Martins (2000, 139) que os partidos de esquerda (Partido Comunista Brasileiro e o Partido Comunista do Brasil) que propuseram a luta pela reforma agrária e nela se envolveram de modos diferentes, desde os anos 1950, não se orientaram pela motivação dos trabalhadores:

(...) desde de os anos cinqüenta, os diferentes mediadores das lutas dos pobres do campo, na esquerda e na direita (....), lutas dos que estavam de fato sendo alcançados por mecanismos de expulsão da terra, fizeram desse problemas social fundamento de uma luta pela terra. Mas, não fizeram dele necessariamente fundamento de uma luta pelo direito de acesso livre, democrático e regulamentado à terra de trabalho e, portanto, a uma modalidade de emprego inserida numa visão familística e qualitativa do mundo e da vida. (MARTINS, 2000; 139).

Acrescentando ao que foi citado, mais por motivações ideológica e humanitária, os mediadores introduzem nas lutas pela reforma agrária o seu próprio movimento e o impotente hibridismo de classe. (MARTINS 2000; 19). Nessa direção, fica comprometida a maneira própria de agir do camponês, sua utopia de ordem tradicional, isto no sentido de querer preservar os valores familiares, da terra, do trabalho e comunitários, as reais motivações que o capitalismo visa a destruir, mas, simultaneamente, expressam um desejo de poder se beneficiar da sociedade capitalista. (MARTINS 2000; 141).

Nesses termos, dirigente nacional do MST, João Pedro Stédile, deu a seguinte declaração:

(...) minhas motivações ideológicas são de resgatar o que significa o socialismo.

Pessoalmente, em termos de valores, sou um socialista cristão. Foi na Igreja que

aprendi os valores humanitários da fraternidade, igualdade, e uno a isso o socialismo, que é o resgate da igualdade e da justiça social, também na economia e no acesso aos bens. Sonhamos em construir uma nova sociedade no Brasil que consiga resolver os problemas de todos. Onde todo mundo tenha trabalho, não apenas alguns, onde todo mundo tenha casa,

onde todo mundo tenha acesso à educação e não só ao 3° ano primário, como agora, mas tenha acesso inclusive à universidade, onde todo mundo possa ter futuro para seus filhos, onde possa ter direito de participar na vida pública e não apenas nesse arremedo de democracia formal, onde o cidadão só é manipulado a votar em determinadas épocas. (STÉDILE, 1997; 87).

Em um artigo de sua autoria, esse dirigente deixa clara sua posição sobre o tipo de reforma agrária:

(...) necessariamente ela (a reforma agrária) vai ter que organizar a propriedade coletiva dos meios de produção, porque a agricultura já está organizada de uma maneira capitalista. Hoje não adianta mais ter só terra. É preciso ter a propriedade dos tratores, dos armazéns, dos trens que conduzem a produção. Não adianta mais o cara pegar só um pedacinho de terra e dizer: “ta feita a reforma agrária”. Necessariamente com esse desenvolvimento que o capitalismo teve no campo, uma reforma agrária tem abranger a propriedade coletiva de todos os meios de produção que afetam a agricultura. E por isso, ela adquire um caráter anticapitalista. Não é só a propriedade da terra que está em questão, mas está em questão a

propriedade de vários meios de produção. (STÉDILE, 1994; 318).

Esse não é o pensamento de Martins (2000; 140), que chama atenção para o fato de que é equivocado pensar

(...) que a reforma agrária num país capitalista é o vestíbulo da revolução socialista, como acontece entre nós, especialmente no MST e CPT, deve ter em conta as reformas agrárias feitas no meio século em diferentes países capitalistas: elas se tornaram de fato o instrumento de prevenção das transformações políticas radicais e o meio de incorporação ao capitalismo de populações marginalizadas ou em via de extinção enquanto categoria social.

Nesse terreno movediço onde essas organizações se movimentam, é produzido o que Marins denominou de desencontro, pois foi desencadeada uma luta pela reforma agrária descontextualizada e basicamente divorciada da práxis camponesa, da luta pela terra. Foram vítimas do economicismo e, assim, não conseguiram compreender que o problema não era agrícola e sim político, representado pelo regime de propriedade que restaura continuamente as bases econômicas e de classe do conservadorismo político e do autoritarismo. (MARTINS, 1989; 93). Assim, a luta

pela terra, a verdadeira motivação dos camponeses, não é dessa forma compreendida pela pastoral e política dos agentes mediadores.

Quanto ao papel do mediador, comungo com a tese posta por D’Incao e Roi (1995, 30), assinalando que

(...) a primeira tarefa de um assessor, preocupado com a transformação desses novos produtores em sujeitos de sua própria realização, era a de propriciar-lhes as condições para o aprendizado do exercício da liberdade a que eles aspiravam, partindo do respeito ao seu desejo de autonomia pessoal e resistindo à tentação de querer uni-los em torno de uma causa definida fora deles mesmos.

A liberdade que eles trazem consigo foi construída sob determinadas condições de constrangimento, de não ter onde morar e/ou dispor livremente da terra. Por tal motivo, a morada e a terra livre é que têm significado, sendo possível dizer: esse é seu “projeto” concreto de vida. Trazem também um saber, desenvolvido na relação com a natureza e enraizado no seu imaginário como verdade “absoluta”. Assim, a questão não é encontrar um projeto que eles compreendam, como expressa o representante da FETRAECE, mas sim observar aquilo que faz sentido para o camponês, ao seu saber.

A propósito, no Ceará a luta pela terra teve como principais mediadores, além dos já citados: os sindicatos de trabalhadores rurais apoiados pela Contag, a Igeja Católica (por meio das Comunidades Eclesiais de Base-CEB’s e do Centro de Promoção e defesa dos Direitos Humanos).