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Os mestres e os trajetos percorridos na escola primária e secundária

No documento DOUTORADO EM HISTÓRIA SÃO PAULO 2009 (páginas 35-41)

“Nós podemos voltar bem lá atrás justamente porque eu vivi aquela época

1.1 Lembranças e reminiscências interpretadas

1.1.2 Os mestres e os trajetos percorridos na escola primária e secundária

(...) no dia que eu fiz sete anos meu pai me levou pra escola pela primeira vez. Eu levantei de madrugada e eu fui pular lá fora de alegria porque eu ia pra escola45

A tentativa de descrever a Educação Física desenvolvida na escola durante os Governos Vargas a partir dos relatos de memória de professores requer considerá-los envoltos pela singularidade decorrente de trajetórias distintas, repleta de particularidades que fazem com que cada lembrança seja única.

Na expectativa de dar forma e consistência a esse aspecto singular dos relatos, é importante que se conheça a trajetória de cada um daqueles que compartilharam suas recordações. As respectivas histórias de vida serão aqui apresentadas no espectro da escola abordando o caminho trilhado pelos entrevistados durante o ensino primário e secundário, este último segmentado em duas fases: a ginasial e a colegial46.

O esboço desta trajetória é fundamental para situar as experiências no “mundo- vida” de cada um desses professores e professoras, cujas escolhas pessoais ou familiares, somadas a circunstâncias sociais e políticas, traçaram rumos distintos para cada um, caracterizando a peculiaridade de cada relato.

45 Trecho da entrevista de Loyde Del Nero Daiuto realizada pela autora em 26 de setembro de 2007.

46 Destaca-se que as alterações que a Reforma Capanema estabeleceu nos cursos do ensino secundário,

mantiveram a duração de sete anos determinada pela Reforma Campos. Porém em substituição a anterior divisão em curso fundamental de 5 anos e elementar de 2 anos, o ensino secundário passou a ser estruturado em um ciclo de quatro anos referenciado como curso ginasial e um segundo ciclo compreendendo dois cursos paralelos: o clássico e o científico, tendo cada um a duração de três anos. A regulamentação previu ainda denominações específicas de “Ginásio” para os estabelecimentos de ensino secundário destinados a ministrar exclusivamente o primeiro ciclo de “Colégio” para aqueles que ministravam um ou ambos os cursos do segundo ciclo. Decreto-Lei nº 4.244 de 9 de abril de 1942. In: NÓBREGA. Wandick Londres, op. cit. A título de esclarecimento, explicita-se que os termos são utilizados neste trabalho em referência aos respectivos níveis de ensino, especialmente por serem assim expressos pelos entrevistados.

As recordações são perpassadas pelo conjunto de significações atribuídas pelos sujeitos ao se lançarem no trabalho de retrospecção, o que implica na compreensão de que um mesmo acontecimento, ainda que vivenciado em uma mesma temporalidade por duas pessoas, não será rememorado igualmente por elas, pois, como será lembrado, ou mesmo se será lembrado está intrinsecamente relacionado com a representatividade no presente de determinado acontecimento.

Assim, os lapsos e esquecimentos inerentes ao ato de rememorar, longe de invalidarem os relatos de memória como documentos históricos, os enriquecem na medida em que apontam para novas perspectivas de análise.

Os entrevistados tiveram suas experiências no processo de escolarização primária e/ou secundária, toda ou em parte na década de 1940, as quais estiveram sujeitas à política educacional do ministro Capanema. Neste contexto, destaca-se o valor atribuído às falas das professoras neste estudo, posto que a Reforma Capanema, promulgada pela Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942, prescreveu às mulheres um processo de escolarização diferenciado, o que, por si só, denota um arcabouço de experiências escolares bastante diverso das dos homens.

Interessante notar que, quando solicitados a falar a respeito de suas experiências na escola, todos os entrevistados, sem exceção, o fizeram com brilho nos olhos e com o sorriso aberto, refletindo a alegria de rememorar as histórias de infância.

Essa atitude foi observada pela primeira vez, quando tive a oportunidade de conversar com o Sr. Edson Souto Ramos, que iniciou seus estudos no ensino primário, no ano de 1943, no Grupo Escolar Dom Henrique Mourão, localizado em Lins, cidade do interior do estado de São Paulo onde morava na ocasião. Quando ainda residia em Lins, o Sr. Edson frequentou os quatro anos do curso ginasial no Ginásio Estadual da cidade e o colegial em outra instituição, que ele narra da seguinte maneira:

(...) após terminar o primeiro colegial eu fiz a transferência para o curso de formação profissional de professor primário. No segundo ano do curso normal fui convocado para servir o exército. Assim sendo fui obrigado a pedir minha transferência do colégio estadual para o Instituto Americano de Lins, uma escola particular, no curso noturno, para não perder aquele ano. Como eu jogava basquetebol na seleção da cidade, o diretor do referido Instituto me convidou para estudar de graça, e assim, não perder o ano. Assim eu terminei o curso normal e fiz minha inscrição para o vestibular de Educação Física em São Paulo.

O Sr. Edson finalizou o colegial em Lins em 1954 e, no ano seguinte, iniciou seus estudos na Escola Superior de Educação Física de São Paulo.

Diferentemente do Sr. Edson, o Sr. Walter Giro Giordano teve todo seu processo de escolarização realizado na cidade de São Paulo onde, em 1941, começou a frequentar a escola primária no Colégio Salesiano Dom Bosco, concluindo-o em 1944. Em 1946, deu prosseguimento aos estudos em nível secundário na Escola Estadual São Paulo e, posteriormente, também na Escola Superior de Educação Física de São Paulo, onde estudou de 1953 a 1955.

Colega de turma do Sr. Walter, o Sr. Hudson Ventura Teixeira realizou seus estudos no ensino primário na cidade de Tietê, no Grupo Escolar Luiz Antunes, no qual ingressou em 1942. Em 1946, inicia o curso ginasial do ensino secundário no Colégio Estadual e Escola Normal Plínio Rodrigues Morais, a mesma escola em que realizou o colegial, finalizando-o em 1952. Assim como o Sr. Edson, ele também frequentou o curso normal, que foi realizado concomitantemente com o curso superior, como ele mesmo recorda:

O meu curso do ensino médio foi completado com o curso de professor normalista. Essa complementação foi feita junto com o curso de Licenciatura em Educação Física. Eu cheguei a fazer os dois cursos e trabalhar à tarde (...) Depois de formado, eu voltei e concluí o curso normalista.

A trajetória da Srª. Loyde Del Nero Daiuto traz à tona o significado simbólico da escola na infância e do que representa para a criança este espaço de subjetividades. A Srª. Loyde conta com entusiasmo e emoção o início de seu percurso escolar:

No primário eu entrei em trinta e três, no dia do meu aniversário. Só podia entrar com sete anos, então no dia que eu fiz sete anos meu pai me levou pra escola pela primeira vez. Eu levantei de madrugada e eu fui pular lá fora de alegria porque eu ia pra escola.

A Srª. Loyde nasceu na cidade de São Paulo, onde concluiu sua formação escolar regular até o ginásio e a posterior formação universitária. Finalizou o ensino primário em 1936, no Grupo Escolar da Consolação; no ano seguinte, cursava o primeiro ano ginasial em um colégio da rede privada de ensino. Ao contar essa passagem de sua vida escolar, notou-se, mais uma vez em sua fala, a relevância que a entrevistada atribuía à escola e o quanto significava para ela a continuidade dos estudos:

(...) quando acabou o primário eu entrei... meu pai me pôs no Mackenzie pra fazer o ginásio, graças a Deus! Era uma escola ótima, a melhor de São Paulo, mas era paga. Meu pai ganhou a meia bolsa e eu pude fazer o ginásio todinho lá

(...) No dia que recebi o diploma do ginásio no dia quinze de dezembro de quarenta e dois, meu pai falou assim quando nós chegamos em casa depois da festa: “Amanhã você vai trabalhar”. Aquilo foi um choque horrível pra mim, porque eu não queria trabalhar, eu queria continuar a estudar, mas não podia porque meu pai não tinha condições. Então eu falei: “Não vou amanhã, vou depois de amanhã. Hoje eu estou de ressaca (risos). Não, amanhã eu não vou”.

Contrariamente ao sentimento que demonstrava ter pelos estudos, o trabalho aparecia para ela como um empecilho, de que diante da necessidade, não pôde se desvencilhar. Assim, dois dias depois de sua formatura no ginásio, estava empregada em uma fábrica de tinta, período que lembra com certa amargura:

Trabalhava o dia inteiro, não podia conversar, não podia nem sair um pouquinho da sala porque o patrão era muito exigente, era muito sofredor e eu tive alergia pelo cheiro da tinta. Então, quando foi novembro mais ou menos, eu tive que sair da fábrica porque eu já estava inchada. Aí eu fiquei procurando outro emprego que fosse mais suave, mas o meu sonho de estudar não saía da minha cabeça. Eu queria fazer pelo menos o Normal na Praça que era de graça, não consegui.

A Srª. Maria Cleide Patrizi, cuja trajetória escolar ocorreu na cidade de São Carlos, cursou o ensino primário na Escola Modelo Dr. Álvaro Guião, no período de 1948 a 1951. O ensino ginasial ela cursou no Colégio São Carlos, instituição de ensino confessional católico e que, na época, era estritamente feminino, com regime de internato e externato, como ela conta:

(...) fui embora pro colégio das freiras, que tinha só meninas (...) As meninas que moravam na região da Araraquarense, Analândia, Brotas, Itirapina, onde não tinha escola de... ginásio (...) então elas vinham pra São Carlos estudar no colégio das freiras porque moça casadora estudava em colégio de freira, famílias que queriam que as meninas tivessem uma educação mais requintada estudavam em colégio católico, né?

A tentativa de escapar do enquadramento social da mulher no estereótipo descrito pela expressão “casadora”, que a entrevistada utiliza e que aponta como o pensamento dominante no período, fica evidente diante da recusa em seguir a carreira de normalista, opção que indica ser a de todas as suas amigas ao final do ensino ginasial. Ela conta seu interesse por continuar os estudos em nível superior e de sua decisão, quando concluiu o curso ginasial, de ingressar no Instituto de Educação Dr. Álvaro Guião da rede pública estadual, para cursar o ensino colegial

(...)eu terminei o ginásio e eu queria fazer línguas que na época era fino. Menina moça de família, menina que se julgava assim inteligente, que gostava das coisas

queria fazer línguas e aonde? Em São Paulo no Sedes Sapientiae (...) eu fui pro Instituto fazer o clássico que era o curso que dava acesso ao vestibular pra Letras e Direito, ou seja, hoje seria Humanas.

O Sr. Fernando de Oliveira Rocha teve seu percurso escolar todo realizado em Araraquara, cujo início foi marcado por um episódio que o fez perder o primeiro ano primário, o qual ele narra da seguinte forma:

Eu iniciei meu primário, que chamava-se curso primário em 1933! Eu tinha sete anos Eu iniciei numa escola (...) chamava-se União Operária. (...) E tinha uma professora assim de bastante idade, chamava-se Dona Joaquina (...) Como era portuguesa, então, meu pai não poderia deixar de prestigiar. “Não, tu vais pra lá!” E eu fui pra lá. Mas eu fiquei um ano e esta professora adoeceu, porque tinha muita idade. Então, em 34, eu tornei a voltar pro primeiro ano (...)

Após esse episódio, ele retomou o ensino primário em 1934, no Primeiro Grupo Escolar de Araraquara, concluindo-o em 1938. Como a primeira tentativa de ingresso ao ensino secundário não foi bem sucedida, ele voltou a ficar um ano sem estudar, iniciando o ensino ginasial apenas em 1940. Concluiu o ensino secundário na cidade de Araraquara e em 1948 ingressa na Escola Superior de Educação Física de São Carlos.

O quadro 1, reproduzido na página seguinte, apresenta um esboço geral dos dados colhidos com os entrevistados:

QUADRO 1 – ENTREVISTADOS - Por ordem de data da entrevista. Dados atualizados com base no mês de março de 2009.

Nome Data Nasc Idade Data

Entrevista

Ensino Primário

Ensino Secundário Ensino Superior

Atuação Escola*

Edson Souto

Ramos 20/03/1935 74 07/10/2005 1943 a 1946 1947 a 1951 (ginasial) 1952 a 1954 (colegial) 1955 a 1957 1960 a 1991 (E) 1960 a 1970 (P) 1960 a 1995 (M) Walter Giro Giordano 21/08/1932 76 26/10/2005 1941 a 1944 1946 a 1949 (ginasial) 1950 a 1952 (colegial) 1953 a 1955 1958 a 1988 (E) 1967 a 1995 (M) Hudson Ventura

Teixeira 08/09/1935 73 26/10/2005 1942 a 1945 1946 a 1949 (ginasial) 1950 a 1952 (colegial) 1953 a 1955 1956 a 1998 (P) 1958 a 1969(S) Maria Cleide

Patrizi 30/10/1940 68 29/03/2007 1948 a 1951 1952 a 1956 (ginasial) 1957 a 1961 (colegial) 1962 a 1964 1970 a 1994 (P) 1965 a 1990 (E) 1970 a 1978 (P) 1971 a 1972 (P) Loyde Del Nero

Daiuto 08/04/1926 82 26/09/2007 1933 a 1936 1937 a 1942 (ginásio) 1943 a 1945 1945 a 1984 (E) Fernando de

Oliveira Rocha 30/01/1926 83 20/08/2008 1934 a 1938 1940 a 1947 Transição reformas 1948 a 1950 1951 a 1983 (E) *Rede Pública Estadual (E), Rede Pública Municipal (M), Rede Privada (P) e Rede SENAI (S).

OBSERVAÇÕES:

Ministro da Educação e Saúde Francisco Campos (Gestão 1931 a 1934) - Reforma Campos: vigente de 1931 a 1942 Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema (Gestão 1934 a 1945) - Reforma Capanema: vigorou de 1942 a 1961

Ensino Secundário:

Reforma Campos – Dividido em Fundamental de 5 anos e Complementar de 2 anos

Reforma Capanema – Um ciclo que compreende um só curso - o Ginasial de 4 anos - e outro ciclo de 3 anos, composto por dois cursos paralelos: curso clássico e o curso científico. Os estabelecimentos de ensino que ministravam o primeiro ciclo recebiam a denominação de Ginásio e os do segundo Colégio.

1.2 O projeto educacional do Ministério Campos e a Educação Física Escolar: a busca

No documento DOUTORADO EM HISTÓRIA SÃO PAULO 2009 (páginas 35-41)