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OS MEUS OUTROS E EU

No documento Download/Open (páginas 35-39)

Falo aqui, com mulheres que se depararam, a partir da maternidade, com determinados embates e tensões que somente se apresentaram a partir do encontro delas com esse outro específico que é o filho. Para me fazer entender, esclareço a relevância com o qual compreendo a relação eu-outro como base teórica para o desenvolvimento desta pesquisa. Tal compreensão se faz importante pelo fato de eu tomar como perspectiva o dialogismo de Bakhtin, que se estabelece num processo de interlocução.

O outro é aquele que generosamente me emprestará sua visão sobre mim e sobre o mundo, permitindo que eu alcance os meios para a construção de sentidos. É como se eu não me bastasse a mim mesma, por ser incapaz de me enxergar por completo. Olho-me e só vejo partes, nunca o todo sob um acabamento. Tal acabamento não virá de mim, mas sim do outro, de um olhar exterior e diferenciado do meu. O outro, este sim, me verá por completo (AMORIM, 2006).

Partindo das ideias de Bakhtin, sobre a referida teoria do dialogismo que se estabelece na relação eu-outro, os sujeitos são considerados indissociáveis, já que aponta uma relação de coexistência entre eles.

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.), com sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo. (BAKHTIN, 2011. p 374)

O outro é o mais importante da relação, pois é somente através deste que se torna possível a constituição do eu. O dialogismo traz em si o diálogo como objetivo primeiro e, para que o mesmo seja estabelecido, faz-se necessário compreender que este é, primeiramente, um ato e é um ato bilateral, no mínimo. Entendemos o diálogo como ato no sentido mais objetivo do termo “ação”, pois, em Bakhtin, ambos os sujeitos envolvidos no diálogo estão em posição ativa. Há aí o ‘eu’ e o ‘tu’. O eu, mesmo quando acredita iniciar um diálogo, sempre o faz num movimento que pretende uma resposta ao tu, mesmo que não haja consciência desta pretensão. Enunciar em direção ao tu quer dizer tomar um posicionamento

ativo e responsivo diante dele. É nesta intenção que está focado o discurso do eu falante. Partindo deste pensamento, afirmamos que todo enunciado é direcionado a um ‘tu’.

O tu é esse outro que tem importância singular na constituição do eu, assim, é se inclinando totalmente a ele que o eu pensa, produz e enuncia em resposta ao outro, os discursos que são uma tentativa de compreender os sentidos de vida deste outro e, ainda, expressar os seus próprios sentidos. No limiar dessa relação entre o eu e o outro, delineia-se uma arena de enfrentamentos onde tensões são produzidas. Estabelece-se ali, naquela zona, confrontos que acabam por determinar os enunciados daquele que fala, o eu (BAKHTIN, 2016, p. 115).

Ao longo dos diálogos estabelecidos, segundo o dialogismo de Bakhtin, há a alternância dos lugares ocupados pelo eu e pelo outro. As posições de falante e ouvinte não são fixas, mas sim, determinadas pela noção de espaço-tempo, ou seja, o que determina o sujeito que fala e o sujeito que ouve é o aqui-agora. Daí reforçarmos a ideia de que ambos envolvidos num diálogo são, e sempre serão, ativos, visto que um diálogo pressupõe a expectativa de contraponto, de resposta, de continuidade. Podemos verificar que ao término de um discurso – o discurso do eu –, espera-se que aquele – que enquanto ouvinte se posicionava como o outro –, tome para si o lugar de fala, deslocando-se desta forma do lugar do outro para o lugar do eu, aquele que enuncia no espaço-tempo aqui e agora, em resposta ao seu interlocutor.

A ideia de espaço-tempo nos convoca a contextualizar os discursos apresentados por seus sujeitos, em seu tempo histórico e lugar social. Aliás, Bakhtin reforça que a língua é por natureza dialógica. Sendo dialógica, a língua permite a construção e a enunciação de discursos que são lançados aos outros e, assim, acabam sendo parte de um processo de trocas, que tece sentidos e ressignificações, caracterizando-os como uma construção social (BAKTHIN, 2016, p. 118). O que torna a língua – e sua transfiguração em fala, o enunciado –, em dialógica, logo, social, é o trânsito e a fusão de ideias que ocorre dentro deste processo. A troca produz o social.

A pesquisa proposta teve como objeto de discussão10 as maternidades e as vivências por elas atravessadas. Logo, mulheres que têm sua atuação no mundo atravessada pela experiência da maternidade, e isso inclui a mim (indivíduo) e minhas experiências também, se constituíram como sujeitas desta pesquisa, como interlocutoras que dialogaram comigo

10

Propus uma pesquisa que desejou discutir com mulheres, a maternidade, em lugar de analisá-la. Abri mão de uma ideia de análise, visto que entendo que tal processo busca duas situações que não posso almejar tendo como base o dialogismo de Bakthin, a exatidão e o estabelecimento de uma verdade. Assim sendo, discuti, mas não analisei no sentido de dar uma conclusão que pudesse por fim à discussão.

(pesquisadora) sobre o objeto maternidade. Deste modo, as reflexões aqui apresentadas, partiram dos discursos que encontrei sobre a condição da mulher e suas vivências a partir da maternidade, considerando única a experiência de cada uma dessas mulheres.

Para Bakhtin, a relação que se tem com as palavras do outro acerca de um determinado objeto de discussão é algo de extrema relevância e que vai determinar não somente o discurso do eu no processo dialógico, mas ainda seu posicionamento responsivo e responsável diante do mundo. Compreender tal relação é alcançar a possibilidade de compreender as respostas outras que se apresentarão nesta cadeia dialógica de enunciados.

Ao esclarecer anteriormente que esta pesquisa se deu tendo a maternidade como objeto e mulheres como interlocutoras que me ofereceram a possibilidade de dialogar sobre esse objeto, estou apontando que a opção feita por mim, foi por uma metodologia de pesquisa que se deu “com” o outro e não sobre este. Desta forma, Bakhtin afirma que em se tratando da pesquisa em ciências humanas, inevitavelmente o contato com o outro acontece e, este outro é de fato um ser dotado de capacidade expressiva e de fala. Assim, ocorre o encontro entre partes igualmente pensantes, ativas e expressivas, o que gera a constituição do pensamento dialógico que se forma na zona de confrontos entre o eu e o outro.

A indissociabilidade entre mim e o outro se configura quando compreendo que é este outro que me confere existência e não o contrário. A ideia que Bakhtin traz é de que eu nunca inicio um diálogo, pois este sempre será a tentativa de responder ao outro que me interroga. Daí entendermos que a palavra se dirige. Sempre. Não há discurso que não objetive responder a algo ou a alguém e, por esta razão, inevitavelmente, meus enunciados serão produzidos de maneira direcionada.

Ao olhar para tantas mulheres que, como eu, viveram e vivem o desembocar da maternidade em suas demais atuações sociais, vislumbro que esteja posicionada diante de um espelho que me possibilita uma percepção melhor sobre o que eu sou em meio às minhas próprias vivências. Por vezes, o que vejo, me causa espanto, pois são visões que eu sutilmente ignoro ter sobre mim mesma. Assim, os meus outros, me levam, em muitos casos, a um choque de realidade que insisto em fazer de conta não ver. Para o eu, seria confortável que continuasse a se imaginar pleno, inteiro e acabado e, se assim fosse, ele se acomodaria pretensiosamente nas verdades que teima em construir sobre si próprio.

Sem as minhas outras nesta pesquisa, talvez, me posicionasse de forma a optar pelo silêncio. Silêncio este que fora constituído, como dito antes, a partir do meu encarceramento em mim mesmo e que forjava a ideia inicial de que as dificuldades advindas com a maternidade, eram particulares e nada além disso.

Lá estava o meu eu, sentindo-se adequado em mim mesmo, até que, involuntariamente, me percebeu invadida, rompida, desestruturada e atravessada pelas outras que me cercavam e suas vivências. Elas chegaram e me obrigaram a embaralhar as peças do quebra-cabeça ao qual havia me dedicado tanto para montar. Vieram contra o meu eu, impulsionando a expansão de todas.

O que compreendi, então, foi que o meu eu estava incompleto. Elas me informaram sobre a necessidade de responder à vida e às questões que nos esmagavam a todas, de maneira ética e responsável. Após este processo de identificação alteritária, tomei para mim suas vivências, percebendo que estas não eram novidade desta geração de mulheres e, muito menos, algo que devesse ser mantido em sigilo a fim de evitar expor algo passível de denunciar ao mundo uma falsa ideia de incapacidade individual. Do contrário, era algo que há muito vociferava sob a esperança de que, urgentemente, houvesse ouvidos capazes de ouvir e compreender como algo que diz respeito a toda a sociedade e não somente a nós, que do interior da maternidade lutamos e resistimos em busca de espaços outros.

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