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Os motivos da (e)imigração

3. PROPOSTA DE ESTUDO DA LITERATURA NAS AULAS

3.2 O ESTUDO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NA OBRA A COCANHA

3.2.1 Os motivos da (e)imigração

O romance A Cocanha narra a saída de um grupo de imigrantes europeus de seu país de origem, por volta de 1883, e sua lenta adaptação ao meio físico e sociológico da região da Serra, no Rio Grande do Sul. Ao contrário do que se percebeu nos manuais didáticos analisados, a obra problematiza a crise econômico-social que abalava a Itália, bem como a propaganda utilizada para atrair os colonos a lançarem-se para outro continente. Os enviados de governos percorriam o Norte da Itália, especialmente as vilas de Verona, aliciando, através de descrições fantásticas, camponeses pobres para emigrarem à nova terra. A idéia do paraíso terrestre, associada à América, tomou grandes proporções e o assunto era comum entre os agricultores em suas conversas, na missa aos domingos, nas repartições públicas. Pozenato (2000, p. 11) descreve a atmosfera que tomava conta da população de Roncà, já na primeira página do romance:

Na frente, um homem traz nos ombros uma menina com guirlandas nos cabelos. Dois passos atrás, o rosto arroxeado pelo vento frio, um jovem imberbe ergue bem alto o galhardete, feito em pano de lençol. Nele se lê, em grandes letras tortas: Viva la Mérica! A banda de música, em uniforme festivo, enche os ares com a estridência das trompas e clarinetes. As batidas do bumbo ecoam nas paredes das casas e marcam o passo de quase duzentos camponeses, vindos de todas as estradas da redondeza, em suas melhores roupas. Mulheres e crianças trazem flores nas mãos, e os homens acenam com os chapéus. A população inteira da vila está nas janelas ou na beira da rua, calçada com pedras luzidias. Domenico, o alfaiate, corre ao longo do cortejo, agita os braços e grita sem parar:

-Viva la Mérica!

-Viva! Viva! – respondem homens, mulheres e crianças. -Viva il paese della cuccagna!

-Viva!

Sabe-se que, na segunda metade do século XIX, muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos países europeus, inclusive a Itália. A Revolução Industrial alterou o processo de produção e impôs um avanço tecnológico capaz de substituir a manufatura artesanal. Além disso, uma forte crise econômica, que gerou escassez de empregos e de terras disponíveis, desanimou uma população que crescia rapidamente. Fome, miséria, desproporção entre oferta e procura de mão-de-obra foram alguns dos fatores que motivaram a emigração

italiana. Segundo De Boni e Costa (1982, p. 49), cerca de quarenta milhões de pessoas sentiram a necessidade de abandonar o país de origem e experimentar uma vida nova na América.

Em A Cocanha, Pozenato (2000, p. 19) problematiza a falta de perspectivas em se viver na Itália:

E Cósimo continuara martelando, noite adentro: “Aqui não se tem futuro. A jornada de trabalho do homem é mais longa do que aquela criada por Deus. Ele chega aos quarenta não sentindo mais onde está o fio da espinha, e não tem nada para deixar para os filhos. Nem dinheiro, nem respeito. Morrer na América não vai ser pior do que morrer aqui, eu digo. Tanto faz deixar a pele lá ou aqui. Será o que tem de ser. Se ao menos a gente for todos juntos, um pode ajudar o outro. Vai ser mais difícil morrer”.

Os interessados vendiam seus pertences, como animais e instrumentos de trabalho, para comprar a passagem até Gênova e, de lá, embarcavam num navio para a desconhecida e cobiçada América. No romance, percebe-se que a partida era triste e provocava em cada um o sentimento de que não voltariam mais à pátria e aos seus.

Para a Itália, a imigração italiana representou um certo alívio, pois possibilitou ao governo uma reestruturação da estabilidade social. O envio de imigrantes para a América do Sul garantia a sobrevivência para quem ficava. Com o advento do capitalismo, a pequena indústria artesanal que complementava a renda familiar foi praticamente destruída. Os impostos foram elevados, o que forçava muitos camponeses a venderem suas pequenas propriedades. As cidades não conseguiam absorver todas as pessoas que saíam do meio rural e para lá rumavam em busca de emprego. Pozenato (2000, p. 34-35) ficcionaliza muito bem esse momento dramático, bem como a imagem que os italianos tinham de quem aventurava-se a ir para o Brasil:

Espertos fomos nós que ficamos. Sobrou mais pão, mais tetos, mais trabalhos. Porque esta é a lei do capitalismo, o capitalismo não funciona com miseráveis plantando e colhendo só para viver. [...] Daqui a trinta anos ninguém vai mais falar de vocês. Vocês estarão esquecidos. O que está acontecendo é uma vergonha muito grande para a Itália guardar na memória. Não vai ficar nem nos livros de história. Vocês são expulsos e serão esquecidos. [...] Se um dia um de vocês voltar, para rever com amor os lugares queridos, vai ter fechadas as portas e as janelas no rosto. Estarão todos ainda com medo de que vocês voltaram para reclamar direitos e heranças. Não esperem piedade da Itália. Não esperem piedade dos italianos. Vão e dêem as costas para sempre. A volta de vocês jamais será bem-vinda. No instante em que pisarem no navio, o mundo de vocês será outro. Esqueçam a Itália, não chorem nunca por ela, porque a Itália já se esqueceu de vocês.

Muitos beneficiavam-se da situação: hospedarias, agenciadores, vendedores de terras, autoridades governamentais. Além de explorar um contingente de famintos, apoderavam-se do último sonho dos italianos: a esperança da construção de uma vida melhor. Na obra de Pozenato (2000, p. 33-34), o discurso de uma personagem é exemplar nesse sentido:

A Itália sangra pelo porto de Gênova. [...] As veias da Itália estão cortadas. É uma sangria que ninguém está preocupado em estancar... E no sangue que se esvai, no corpo doente e à beira da morte, operam os vermes esfomeados. Vermes sôfregos para não perder o negócio do século: a venda de carne humana dos compatriotas, das bocas que gritam e consomem nossa pouca polenta, para os confins do mundo. Ganha a marinha mercantil, que recupera nesse mercado vil a imponência dos velhos tempos. Ganham os funcionários públicos, vendendo papéis de embarque. Ganham os milhares de agentes e de intermediários, metidos como bactérias de paese em paese, de taberna em taberna. Ganham as hospedarias dos portos, arrancando de vocês os últimos florins. Ganham os grandes contratantes e as pequenas sanguessugas. Ninguém tem pena de vocês.

A instauração do capitalismo, num país de economia tipicamente agrícola, não proporcionou condições de sobrevivência à população oriunda do meio rural. Não houve garantia à população do saneamento de problemas básicos, como a redução de taxas e impostos, a diminuição do custo de vida, o aumento dos proventos e a escassez de empregos. Assim, a emigração representou, para muitos, uma possibilidade de melhoria das condições econômicas fora da Europa, bem como o início da reconstrução de uma nova vida.

Comumente, a historiografia tradicional apresenta uma versão catastrófica sobre a condição sócio-cultural do imigrante italiano. Em momento algum, é dada importância aos seres humanos que, em desacordo com sua vontade, tiveram que abandonar suas famílias, suas raízes e buscar uma vida nova, em um país desconhecido. Observemos uma delas, retirada de um manual didático. Figueira (2005, p. 279) explica:

No Rio Grande do Sul, o governo pretendia criar núcleos de povoamento destinados a ocupar algumas regiões desabitadas, próximas às fronteiras com os países do Prata. Por isso, criou as zonas de colonização, onde os imigrantes – num primeiro momento, alemães e, depois, italianos, - receberam lotes de terras para trabalhar na condição de pequenos proprietários. Esses trabalhadores livres e autônomos eram chamados de colonos.

Contrariamente ao livro didático, Pozenato humaniza o imigrante e se posiciona criticamente diante dos motivos da emigração. O autor confere traços de personalidade às personagens, transformando-as quase que em pessoas reais: seus sonhos da busca da Cocanha, o desconhecimento sobre o Brasil, as dificuldades imprevistas encontradas durante a viagem, os sentimentos diante das instabilidades na nova terra, as decisões tomadas em razão dos obstáculos, os medos, os amores.

Sob essa ótica, a narrativa de Pozenato ultrapassa a historiografia por abordar e explorar um outro veio da imigração italiana, tendo como fundamento, principalmente, a vida real e compreendendo o homem na sua totalidade.