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2. Questões ortográficas, lexicais e gramaticais preliminares

2.4. Os numismatónimos como palavras importadas e

A facilidade de deslocação para outros países, mormente em função do processo de globalização a que assiste o mundo moderno, torna normal, como já foi referido, o contacto com moedas estrangeiras, cujos nomes naturalmente entram no vocabulário activo dos falantes. Isto é válido para países com algum movimento turístico, ainda que não o seja para outros, como a Mongólia, a Eritreia ou o Quirguizistão, por exemplo. Aí, são aspectos da globalização das relações internacionais que tornam os nomes das respectivas unidades monetárias “activos” no léxico da língua, ainda que eles não sejam conhecidos da vasta maioria dos falantes. Seja como for, há já algum tempo que se processa a importação, ou seja, a introdução no léxico do português, de numismatónimos (que são categorialmente nomes) oriundos de léxicos de diversos países.

Ao entrarem no vocabulário da língua, os numismatónimos inscrevem-se – pelo menos numa primeira fase – no conceito de neologismo, ou seja, «unidade lexical que é sentida como nova, num determinado momento e registo linguístico, pelo falante médio da língua, o que equivale a dizer que essa unidade não pertencia ao vocabulário activo desse falante no momento imediatamente anterior» (Antunes et al. 2004). No caso dos numismatónimos, como referi, há que salvaguardar a questão de muitos deles não pertencerem ao vocabulário do «falante médio da língua» (como acontece com as moedas dos países menos conhecidos), o que – veremos – coloca alguns problemas relativamente à escolha

da forma gráfica mais adequada para o seu registo na ortografia portuguesa. Trata-se de «palavras de origem estrangeira», sendo essa novidade do tipo formal, isto é, «a sua forma significante é nova: (…) o neologismo apresenta uma forma não atestada no estádio anterior do registo de língua» (Correia, 1998: 3). Por outro lado, estamos, neste caso, face ao subtipo de neologia denominativa, «resultante da necessidade de nomear novas realidades (objectos (…)), anteriormente inexistentes» (ibid.). Obviamente, neste caso, não se aplica literalmente a ideia de «objectos anteriormente inexistentes» (que só será válida para moedas novas), mas uma forma modalizada como «objectos anteriormente não referidos no universo da língua de importação».

De forma a aferir o que no caso português pode ser claramente excluído do conceito de «novidade linguística», consultei algumas fontes lexicográficas clássicas, relativamente antigas (até meados do século XX), nomeadamente: (i) o

Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de

Lisboa, de 1940, que, como já vimos, não contempla o termo numismatónimo, e que, das 53 moedas cujos nomes foram eleitos para este estudo (muitas das quais são moedas de países que nem sequer existiam à data), regista apenas dois – iene e ouquia ou oqueá (cf. observações abaixo); (ii) o Vocabulário

Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de

Lisboa, de 1947, que não dá entrada a qualquer dos nomes de moedas deste estudo; (iii) o Grande Dicionário de Cândido de Figueiredo (14.ª edição, 1949), dicionário de grande prestígio na época, que apresenta os seguintes verbetes, de algum modo relacionados com o nosso objecto de estudo:

Bate Quantia malaia, equivalente a 40:000 cruzados. Cf. F. Mendes Pinto, Pergrinação, c.XV. (Do conc. bat) (conc. = concani língua do território de Goa)

Dramo Moeda de Goa, anterior à dominação portuguesa.

Florim Moeda de prataoude oiro, em vários países. Unidade monetária do antigo império da Áustria-Hungria e nos Países Baixos. Em Timor, o mesmo querupia. (Cast.florín).

Iene Moeda japonesa que equivalia a um escudo português. (Do jap.ien). Larim Antiga moeda da Índia Port. Moeda de prata na Pérsia: «cem larins lhe deram os Turcos, que vale cada um quatro vinténs». Mestre Afonso, Itiner., 8. (Do persalari).

Ouquia Antiga moeda de oiro, asiática. Cf.Etiópia Or., I, 343 (Cp.oqueá). Oqueá Antiga moeda da Índia Port. e da Abissínia. Antigamente também se escreveuoquia. Cf. Castanhoso,Cristóvão da Gama.

As formas bate, dramo, florim, larim, ouquia / oqueá e rupia são aqui arroladas – por mera curiosidade – pela sua parecença com as dos numismatónimos actuais da Tailândia, Arménia, Hungria, Geórgia, Mauritânia e Maldivas, respectivamente. Sobre se estas formas estão verdadeiramente relacionadas, do ponto de vista etimológico, com os numismatónimos actuais dos países referidos (facto que poderia merecer alguma consideração no processo de aportuguesamento), ou se se trata de uma mera coincidência fónica, não estou neste momento em condições de me pronunciar. Tal estudo excede os propósitos deste trabalho. Dos nomes indicados, apenas iene se mantém como moeda actual de um país, o Japão.

Nos dicionários e vocabulários mais recentes, verifica-se uma preocupação maior com o registo de numismatónimos. Com efeito, muitos deles incluem a grande maioria dos numismatónimos que constam da lista de trabalho desta tese, o que, obviamente, se relaciona com as novas necessidades dos falantes, num tempo em que «o grande meio de difusão da norma é (...) a televisão» (Mateus e Cardeira, 2007: 23). Note-se que, ao serem registados nos dicionários, os numismatónimos perdem – segundo critérios adoptados por muitos autores – a sua qualidade de neologismos, passando a ser meros vocábulos (não neológicos) importados de outras línguas. Sobre a relação entre neologia e registo lexicográfico, importa ter presente que um dos «campos de aplicação mais imediatos do trabalho neológico [é] a lexicografia, pela necessidade de actualizar os dicionários de língua geral, dada a evolução permanente das línguas» (Cabré,apudCorreia et al., 2004: 2).

De entre os procedimentos de que os termos importados, de um modo geral, podem ser alvo, creio que se aplica aos numismatónimos essencialmente a «adaptação de tipo meramente ortográfico» (cf. Correia 1998)11, adaptação essa

que se tem vindo a processar nos dicionários actuais. Neles, os numismatónimos surgem frequentemente como estrangeirismos, um termo que aqui adopto no sentido de «unidades de origem notoriamente estrangeira (...), com adaptação apenas parcial à língua de chegada ou sem qualquer vestígio de adaptação» (Antuneset al., 2004: 5).

Cingindo-nos aos numismatónimos, verificamos que a sua integração nos dicionários se tem processado, a meu ver, de forma pouco criteriosa (ou, pelo menos, sem critérios claros e bem definidos), e por vezes com desrespeito por normas bem estabelecidas, o que se traduz, por exemplo, em:

11 Não estou a ver, em relação aos numismatónimos, a possibilidade de procedimentos «de tipo

lexical»; quanto aos de «tipo morfológico», apenas encontrei o termo «dolarização», referido em Antuneset al.(2004).

(i) registo de muitos numismatónimos sem referência à sua não conformidade com a nossa ortografia; no Dicionário da Língua Portuguesa

Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001, os casos são

numerosos: nomes comk,wouy(e. g. taka,won,yuan), nomes com hmedial (e.

g. baht, dirham), nomes com terminações consonânticas ou com dígrafos não

permitidos na ortografia portuguesa (lev, birr, forint, shekel), etc.; sobre as desvantagens deste tipo de registo, cito Móia (2008): «parece existir uma certa confusão – em obras publicadas entre nós – entre palavras adaptadas e palavras não adaptadas ao sistema gráfico do português. Acredito que para esta confusão contribuam as práticas, a meu ver pouco transparentes, de vários dicionários – como o da Academia das Ciências de 2001, infelizmente seguido já por outros – de listar expressões em grafia estrangeira sem qualquer indicação de que essa grafia não é portuguesa (e de que, portanto, seguindo práticas comuns, teriam de ser escritas em itálico ou entre aspas). Assim, surgem naquele dicionário, lado a lado com as palavras grafadas em português, e sem qualquer notação especial, formas como kitsch, kilt e kitchenette. Note-se que esta prática não é seguida – e bem! – em dicionários de referência como o Houaiss, que as grafa em itálico, ou o Aurélio, que as assinala com uma seta.» (pp. 2-3);

(ii) registo de formas graficamente híbridas, não conformes nem com a grafia da língua de origem nem com a grafia da língua de chegada, como acontece com a formação de certos plurais (referida na secção 2.3.1); mais uma vez, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001, encontramos formas com estas características, comorands,drams,takas,ngultrums, yuans, wons, kunas, etc.

Tendo em conta problemas deste tipo, o presente trabalho pretende chamar a atenção para a urgência de pôr em acção outro dos três campos de aplicação mais imediatos do trabalho neológico (referidos por Cabré): o da «planificação linguística, pela necessidade de estabelecer critérios que servem de guia para a criação de unidades lexicais novas. Neste campo, a neologia será uma matéria de intervenção para erradicar os estrangeirismos excessivamente traumáticos ou excessivos num sistema linguístico e no quadro de uma política de normalização» (Cabré, apud Antunes et al., 2004: 2). O terceiro campo considerado por Cabré – o da terminologia, relacionado com a «necessidade de criar unidades novas para designar e denominar os conceitos dos especialistas» (ibid.) – é obviamente também relevante, como já foi dito.

Importa ainda discutir muito brevemente a questão da pertinência do trabalho de adoptar às ortografias nacionais (no caso, a portuguesa) termos como os numismatónimos. Agindo um pouco como “advogado do diabo”, Manuel

González González (em Correia, Mineiro et al., 2005: 3) afirma que a uniformidade lexical translinguística «tería a vantaxe de facilitar a intercomprensión entre as linguas, polo menos nas chamadas linguas de especialidade». Poderá pensar-se que esta vantagem é evidente no caso dos numismatónimos, dada a sua qualidade de instrumentos de troca internacionais e dada a necessidade de os elementos de trabalho (e. g. tabelas cambiais) serem universal e facilmente compreensíveis (logo, preferencialmente em inglês, verdadeira língua franca internacional dos nossos dias). Num sentido diverso deste, porém, são as próprias entidades oficiais que produzem, por exemplo, as tabelas cambiais, que sentem a necessidade de realizar adaptações às línguas nacionais. Assim acontece, por exemplo, com a tabela de moedas ISO 4217, produzida pelo Portal da Finanças (que se poderia ter limitado a decalcar a tabela internacional), com o Boletim Estatístico do Banco de Portugal (com a particularidade de as suas tabelas serem bilingues), com o Código de Redação Interinstitucional, da União Europeia, Anexo A7, com a Tabela de Moedas do Banco Central do Brasil. O argumento que, no entanto, me parece definitivo para distinguir compreensão universal de adaptação às línguas nacionais consiste em que a citada norma ISO 4217 é um padrão internacional que define códigos de três letras para as moedas correntes, sendo estes códigos, e não os nomes das moedas, que facilitam a leitura e a tornam universal.

Feita esta distinção, resta-me concordar com González González, que às vantagens da uniformidade lexical translinguística logo contrapõe que tal uniformização «encerra un serio perigo: atentaría tamén a longo prazo contra a preservación da identidade das línguas» (op. cit.).

3. Designação de unidades monetárias (numismatónimos)

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