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Os observadores passivos

Nas obras narrativas de Ilse Losa em estudo, a representação do Holocausto não envolve apenas personagens que desempenham o papel de vítimas e outras de perpetradores dos crimes cometidos contra as vítimas, mas inclui um terceiro grupo de indivíduos: os observadores passivos ou bystanders.

Os observadores passivos são as pessoas que têm conhecimento do que se está a passar, uma vez que vivem em sociedade e os acontecimentos têm lugar nos espaços públicos e privados, interferindo no normal funcionamento da vida quotidiana. Convive diariamente com cenas de violência, atos arbitrários e cruéis, contra uma população muitas vezes indefesa (senão mesmo inocente), desvanecendo-se a distinção entre os princípios do Bem e do Mal que orientam a vida humana. Mas, perante tais acontecimentos, de que são testemunhas, os observadores passivos preferem não agir, como se não vissem nada nem soubessem de nada, mantendo-se à margem dos acontecimentos, mesmo tendo consciência de que estão a ser cometidas injustiças, de que o Mal se está a sobrepôr aos princípios do Bem. Ainda que não concordem com as ideias do regime político vigente, que promove as arbitrariedades contra um setor da população indefesa, os observadores passivos, considerando que nada tinham a ganhar nem a perder, optam por não interferir, de forma a não serem salpicados por uma questão que não lhes dizia respeito. A sua inércia tem em vista o interesse pessoal  não ser envolvido num problema com o poder instituído e, deste modo, tornar-se também uma potencial vítima do sistema repressivo  e o comodismo de viver a sua vida quotidianamente, passando ao lado dos trágicos sucesso que se desenrolavam.

Entre os perpetradores e as vítimas encontrava-se o vasto grupo de observadores passivos correspondente à larga maioria da população. A indiferença com que assistiram aos acontecimentos revela-se a grande aliada dos nazis na prosecução dos seus objetivos, pois a maioria não se manifestou contra os acontecimentos e o poder instituído encontrou nessa atitude um aliado que, apesar de não colaborar diretamente, também não criava obstáculos.

Em O mundo em que vivi, a senhora Krempke, em conversa com a hóspede Rose, demonstra claramente uma atitude de observadora passiva face aos acontecimentos que a rodeavam diariamente ao afirmar que

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Não, o melhor é a gente calar-se, nunca se perde em ficar calado, senão ainda são capazes de nos meter em sarilhos. (…) Por isso, o melhor é a gente calar-se, compreendeu? (MV: 165)

O silêncio é a estratégia seguida pela senhora Krempke: calar-se para não revelar a opinião contrária à tendência vigente e, desse modo, evitar atrair sobre si a máquina repressiva do regime. Esta estratégia revela-se particularmente danosa para a estabilidade social e para a proteção das vidas humanas dos judeus por se tratar de alguém que já tinha manifestado, no espaço privado, antipatia aos nazis  «Eu cá embirro com aquela cambada de nazis, mas estamos nisto que se vê» (MV: 165)  e descrédito nas teses defendidas por Hitler  «Diz ele, o Hitler, que são os judeus os culpados de toda a nossa desgraça» (MV: 165). Inclusivamente, o conselho dado a Rose para que se protegesse, não revelando a sua identidade judaica, a indiferença por trabalhar para clientes judeus e a própria aceitação da uma hóspede judia, demonstram que é uma mulher à margem da onda geral que a Alemanha vivia.

A senhora Krempke, que discorda sem manifestar a discordância, tal como grande parte da sociedade alemã o fez, também é responsável pelos crimes cometidos, pois assistiu ao desenrolar dos acontecimentos sem nada ter feito para os evitar.

A sua atitude é a de resignação perante um movimento político e social generalizado, cuja força se perceciona como inalterável e imbatível, pelo que nada há a fazer. O modo como justifica a adesão do esposo à causa nazi revela a desculpabilização do indivíduo  «O meu homem não é nazi, sempre foi um bom social-democrata, lá isso foi, dedicado ao partido» (MV: 165) , apontando o dedo acusatório ao movimento geral, instalado no país, que influenciou a opinião do marido: «Mas de há um tempo para cá anda a cismar» (MV: 165).

No romance Sob céus estranhos, o narrador recorda «um grupo de mulheres que observei, certa tarde, sentadas na esplanada duma cervejaria perto da minha casa paterna» (SCE: 150) que «diziam que sim ou que não com a cabeça, de acordo com as afirmações do gorducho, como convinha a um público grato e que não se dava ao trabalho de reflectir no que ouvia» (SCE: 151).

Em Rio sem ponte, o cunhado de Johann, Minnehaus, «não se importa com os nazis, como de resto não se importa com nada que não seja a minha irmã ou vender leite

85 e manteiga» (RSP: 133), numa atitude de indiferença, que se torna grande aliada dos nazis. A atitude dele é diferente da de Johann que, inicialmente, demonstrava apenas discordância mas que não a efetivava em resistência. Indiferença ou completo desinteresse e discordância passiva não convertida em resistência resultam no mesmo: vitória dos nazis.

O narrador de Rio sem ponte também relata a forma como Jutta pensa que aqueles que lhe são próximas na Alemanha teriam reagido à ascensão de Hitler ao poder, patenteando as suas palavras resignação e conformismo:

Claro, o tio não devia estar satisfeito, nem Johann, nem Lammers. O Johann, desde que conhecera o tio Georg, ainda embirrava mais do que antes com os nazis. Mas decerto se conformariam, e dentro de pouco chegaria a vez de outro chanceler mais a gosto deles. (RSP: 132)

Esta também é a visão de um bystander: eles não gostariam da situação, mas teriam a necessidade de se conformar e aguardar por um futuro melhor. Neste caso, interessante é o facto de a personagem, residente no estrangeiro, projetar a sua opinião sobre aquela que deverá ser a atitude dos que estão na Alemanha e discordam de Hitler. O seu ponto de vista também está condicionada pelo facto de «nunca se tinha preocupado com as mudanças dos chanceleres» (RSP: 132), que «nada influiam na sua vida» (RSP:132).

Também em Rio sem ponte, é interessante a posição de Lea Finkelberg, uma judia descendente de polacos exilados em Londres, sobre a tomada de posse de Hitler como chanceler da Alemanha e a ameaça que pairava sobre os judeus alemães:

 Isto não tem nada a ver connosco. Bastam-nos as nossas próprias ralações. Em vez de as pessoas pensarem tanto no que se passa na Alemanha, deviam antes empenhar-se numa baixa dos preços aqui no país. (RSP: 131)

A reação desta personagem denota sobretudo egoísmo, sendo particularmente significativa por vir de uma judia, que, como a própria mãe lhe chamou a atenção, não está livre de lhe ocorrer o mesmo em Inglaterra: «Quem nos garante a nós que a desgraça não pega também aqui? Para fazer mal toda a gente está pronta num instante» (RSP: 131).

86 Tanto o ponto de vista de Lea Finkelberg, anteriormente expresso, como o do esposo, Sam, que confiava nos esforços protetores que o governo britânico envidaria para manter a segurança dos judeus alemães caso a política de Hitler os pusesse em perigo, revelam que os judeus de outras nacionalidades não alcançaram a gravidade da situação na Alemanha. Apenas a Mamma, mulher experiente que já vivera situações de perseguição e discriminação na sua Polónia natal, manifesta claramente preocupação pela situação.

A inclusão destas personagens de ascendência judaica no grupo dos observadores passivos e não no das vítimas deve-se ao facto de elas não terem sido atingidas pelas perseguições nazis, observando os acontecimentos de um ponto de vista externo e tendo a possibilidade de agir em defesa dos alvos da política hitleriana.

Mas o papel de bystanders não é apenas desempenhado por pessoas individualmente. Tanto em Rio sem ponte como em Sob céus estranhos, a posição adotada por governos e sociedades civis de países estrangeiros acerca dos acontecimentos na Alemanha também merece crítica.

Em Rio sem ponte, o boicote às casas comerciais judaicas na Alemanha em «protesto contra a agitação internacional judaica» (RSP: 140) teve reações internacionais de limitado alcance: «em Londres houvera um meeting de protesto, na Whitechapel Art Gallery, e (…) um tal Lord Snowden mandara um telegrama à Alemanha afirmando a sua repulsa por tais cruéis acontecimentos» (RSP: 141), provando que os indícios da grave situação não foram levados a sério nem se acreditou que a situação pudesse chegar a tal extremo.

No romance Sob céus estranhos, a postura do governo português é objeto de crítica, pelo facto de a política de concessão de autorizações de permanência em Portugal aos refugiados judeus dificultar a vida destes, agindo a Polícia Internacional com muito zelo e desconfiança em relação a eles.

Da conversa entre o rabino Reh e Good Old Man, pai de Josef Berger, sobressai igualmente a crítica aos países que restringiram enormemente a imigração, pelo que se tornava cada vez mais difícil sair da Alemanha, tendo deste modo as outras nações propiciado as condições para que os judeus viessem a morrer: «São poucos os países que ainda recebem de boa vontade gente nossa» (SCE: 36).

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