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Os ofícios do antropólogo consultor: da demanda e da ação

Nos primeiros tempos da antropologia, alguns de seus clássicos foram produzidos encomendados pelo colonizador, principalmente et-nografias feitas no continente africano. Tais fatos deixaram resquícios negativos na concepção de vários antropólogos para com os seus pares prestadores de serviços ao Estado, como se tal trabalho recolonizasse a própria antropologia.

Enquanto consultora, ouvi de colegas sobre a impossibilidade de manter os empreendimentos da disciplina junto ao Estado, bem como sobre um suposto processo de burocratização da escrita antropológica e, ainda, sobre a necessidade de se manter em posição de confronto eterno com o Estado na atuação como consultor. São concepções que equiparam capoeiras e antropólogos e, para ambos, a atuação do consultor está im-pregnada da faceta de opressor/colonizador em razão de suas memórias pregressas. Embora existam conflitos no trabalho com o Iphan, em outros setores a interlocução com o Estado precisa ser mais combativa.

Para a Capoeira não relativizar o Estado, ela estreita as redes, im-pede a ampla participação dos grupos, compromete a diversidade nas ações de salvaguarda, restringindo-as aos grupos, mestres e capoeiristas dispostos a dialogar. Para a antropologia não relativizar o Estado, ela estreita nosso campo de atuação, as grades curriculares pouco preparando

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para o manejo das ferramentas do Estado a favor da antropologia e dos povos ou grupos que pesquisamos.

Fialho, Valle e Moreira Santos destacam em artigos, na coletânea da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) Laudos Antropológicos em Perspectiva (2015), organizada por João Pacheco de Oliveira, Fabio Mura e Alexandra Barbosa Silva, a emergência das discussões sobre perícias e laudos na formação do antropólogo. A formação para consultor e inventariante (Tamaso, 2002) também emerge, por suas especificidades e ampliações de demandas em relação ao Iphan, com o início das polí-ticas para o patrimônio imaterial em 2002. Cardoso de Oliveira (2004) pontua, há décadas, que os grupos pesquisados pelos antropólogos não precisam mais de porta-vozes em face do Estado, pois falam por si sós.

Então, para o antropólogo na condição de consultor, saber o idioma do Estado é tão útil quanto falar a língua do nativo. Diante das controvérsias da antropologia, Roberto Cardoso de Oliveira adota a expressão antro-pologia da ação, de Sol Tax (1952), em oposição à antroantro-pologia aplicada:

Porém, quando evoco a antropologia da ação como diferen-te da antropologia aplicada – cuja história sempre esdiferen-teve associada ao colonialismo –, não é para fustigar a vocação intervencionista da disciplina, mas apenas para sublinhar o caráter de sua atuação na prática social (entendida também como práxis), ou ainda, se quiser, o seu agir no mundo moral (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 21).

Para agir no mundo e a antropologia atuar como prática social é pre-ciso extrapolar os limites da academia. Para agir é prepre-ciso apreender as perspectivas e os anseios daqueles que pesquisamos e incorporar a lógica do Estado para acessar, inclusive, seus melindres. Oliveira adota a noção do agir comunicativo habermasiano, sugerindo práticas de mediação nas quais o antropólogo não é a voz do “outro” e sim a integração da comunicação, a partir das propostas dos grupos nas perspectivas das interfaces do Estado.

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O antropólogo consultor é um mediador, com agência dentro do Estado por se dispor a compreender as lógicas do Estado, que são difíceis de serem relativizadas por seus pares e pelos povos e grupos historica-mente oprimidos. Ele é alguém disposto a acessar a estrutura do Estado com os instrumentos de bordo da antropologia e o repertório da Capoeira, compreendendo todos os trâmites como processos de mediação. Ele é um mediador, assim como o são a antropologia e a cultura, na concepção de Roy Wagner (2010).

A prática solicita a ação na mediação, com objetivos de natureza eficaz, como os capoeiristas esperam que seja feita a salvaguarda. Certa vez, um mestre precisou de auxílio médico durante um evento e foi levado ao médico com o carro do Iphan. Outro mestre que presenciou a cena exclamou: “Isto é salvaguarda! Foi a primeira vez que eu vi a salvaguarda acontecer”. Este convite à ação dos capoeiristas é chamado por Rita Segato de antropologia por demanda, definido como:

Este proyceto alternativo se revala a parte de uma disponibi-lidade de antropólogo para ser interpelado por comunidades y pueblos que le colocan su “demanda” y permiten, de esa forma, que su “ciência” abstenga um lugar y uma razón en el caminho del presente (2013, p. 11).

Durante o período da consultoria, as demandas feitas a mim trans-formaram-se a partir da aproximação, da criação de laços afetivos e das observações de minhas disponibilidades (realização de grupos de estudos, interlocução junto a prefeituras20) e habilidades específicas. Nesse processo, devo destacar a humanização da atividade segundo a percepção de que o consultor não era alguém revestido de poderes, de condições acadêmicas ou de representação institucional, o que muitas vezes foi traduzido pelos

20 No período da segunda consultoria, fruto de uma mediação junto à Fundação Cultural de Curitiba e diversos grupos da cidade, foi demandada a criação do Setorial de Capoeira no Conselho Municipal de Política Cultural, com realização de Conferência Setorial de Capoeira.

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capoeiras com a palavra humildade. Surgiram também demandas técnicas:

como também sou fotógrafa, esta foi uma das funções constantemente solicitadas a mim, assim como escrita de projetos e auxílio em tarefas mais burocráticas. Aliás, em razão do pequeno corpo técnico da superin-tendência do Iphan/PR, internamente também me ocupei, com muito gosto, de afazeres relacionados à minha formação anterior de jornalista, fotógrafa e documentarista, ou seja, em certa medida, a instituição e os capoeiristas demandaram ações práticas, as quais estava habilitada a faze por ter uma formação híbrida (e equipamentos). Na condição de aprendiz, devo destacar a evolução de meus registros fotográficos. Na medida em que passei a compreender as lógicas e as dinâmicas do jogo, me tornei capaz de antecipar os golpes e de registrá-los de forma mais precisa e também de saber o que não fotografar.

Umas das demandas mais constantes a mim solicitadas era para que eu treinasse Capoeira. Como consultora e pesquisadora, escolher um grupo para treinar no período de trabalho gerou controvérsias, pois o pertencimento e a filiação dificultam a circulação. O distanciamento se fez necessário para realizar a etnografia multissituada à qual me propus.

Não realizar a Capoeira em meu corpo não foi frustrante em virtude do meu interesse em ouvir, pelo respeito aos mestres e os conhecimentos históricos sobre Capoeira, o que me tornou para alguns mais capoeira do que muito capoeira, ou seja, as ferramentas e os instrumentos da antropologia me fizeram capoeira (para alguns).

Importante é não tomar tais atitudes elogiosas apenas por seus aspectos positivos, pois elas também tiveram suas controvérsias e me distanciaram dos mais jovens e menos graduados (não de todos), que consideravam uma quebra de hierarquias esta alusão a um perten-cimento à Capoeira. Na mesma medida, testar meus conheperten-cimentos tornou-se um procedimento.

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Em entrevista a TVABA, a antropóloga Claudia Fonseca21 fala so-bre o descontrole da experiência, o sentimento de desamparo de estar em campo, de sentir-se intrusa, fora de lugar e, por vezes, de sentir-se mais como vendedora de Avon do que Indiana Jones, as chamadas consultoras que circulam pelas casas para vender produtos de beleza. A consultoria na salvaguarda da Capoeira tem todos estes desconfortos, por entrar temporariamente numa rede controversa, maquiada pela aura institu-cional para oferecer um produto que nem todos querem, ou sabem qual a sua finalidade, condição de fato muito distante do conquistador.

Dentre as especificidades do trabalho do consultor estão: atuar junto ao Estado sem a ele pertencer, não poder responder por ele e, ainda, ter que zelar por sua imagem. Um terceiro elemento é como Santos classifica a atuação do antropólogo perito junto ao Ministério Público Federal e os povos e as comunidades tradicionais:

Assumir a voz da instituição seria arrogar-me de um poder fictício; assumir o papel do porta-voz dos indígenas ou de outros grupos que recorriam ao MPF potencializaria o efeito do discurso científico como “discurso da verdade”; tornar desnecessária a fala – ou a participação – daquele sobre quem se fala (2015, p. 338).

No caso da salvaguarda da Capoeira, ser o terceiro elemento significa utilizar-se da caixa de ferramentas (Segato, 2013) e dos instrumentos de bordo (Oliveira, 2004) da antropologia para a promoção de uma mediação capaz de transformar-se em políticas de ação.

A salvaguarda da Capoeira no Paraná é formada incialmente pelo Iphan e por capoeiristas eleitos para o Comitê Gestor (em razão de deter-minações do Comitê no Paraná, outras instituições ligadas aos governos federal, estadual e municipal não têm cadeira, assim como outros possíveis

21 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L46-mYw4wRE. Acesso em 29/06/2016.

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mediadores), o consultor sendo o terceiro elemento (não permanente em virtude dos contratos). E há ainda um quarto elemento: a controvérsia!

Responsável por transformar todas essas relações, inclusive o ofício do consultor, a controvérsia atua por causa da diversidade da Capoeira, da difusão e da profusão no Paraná. Entendida como um quarto elemento por ser acionada no sentido latouriano, sempre presente, não há como desconsiderá-la. No processo de salvaguarda está incorporada não só naqueles que estão às margens do processo. Ao invés de tratar a contro-vérsia como elemento, poderia simplesmente dizer que a salvaguarda da Capoeira se realiza sob a égide do conflito. No entanto, a controvérsia não se apresenta apenas como conflito ou no conflito.

Na Capoeira, a controvérsia é o elemento fundante: nas narrativas sobre as origens da Capoeira (africana, afro-brasileira, brasileira, indí-gena, afro-indígena-brasileira); na dicotomia entre Capoeira Angola e Regional; nas linhagens e nos fundamentos. Por isto é um elemento estruturante na diferenciação dos grupos. Diante da onipresença das controvérsias, o ofício do consultor é evidenciá-las como inerentes à diversidade da Capoeira, como forma de contemplar a sua diversidade e multidimensionalidade nas ações.

Para ilustrar a agência da controvérsia, a crítica mais comum ao primeiro Comitê Gestor é o melhor exemplo: os capoeiristas não partici-pantes diziam que o Comitê não tinha membros da Capoeira Angola, no entanto, dos sete membros, que permaneceram atuantes até o final, todos se identificavam como desta vertente. Controvérsia indissolúvel. Aliás, um dos ofícios do consultor é categorizar as cumbucas onde o Iphan não mete a mão. Depois de ouvir tal expressão, passei a usá-la para salientar como o Iphan não poderia atuar.

O consultor também faz a mediação com os capoeiristas não inseri-dos no processo de salvaguarda, ocasionalmente opositores do próprio Comitê. A Gestão 2012-2015 do Comitê Gestor da Salvaguarda da Ca-poeira no Paraná centrou suas demandas em apoios do Iphan a eventos,

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inicialmente para eventos dos próprios membros. Quando surgiram demandas externas de grupos e mestres não membros, a controvérsia se personificou. E como as demandas e as críticas chegavam ao Iphan e a mim, muitas vezes tive que ser a voz desses capoeiristas não presentes.

Ou a voz da controvérsia.

Considerações finais

Como as políticas de patrimônio para a Capoeira são recentes, o processo de salvaguarda caracteriza-se como um aprendizado para to-dos os envolvito-dos. O Iphan e os Capoeiristas são os principais agentes, consultor e controvérsias são o terceiro e quarto elementos.

A patrimonialização é entendida pelos capoeiristas como uma polí-tica de retratação e redenção do Estado, em virtude da escravidão e da criminalização no século XIX. Da salvaguarda é esperada a ação, prin-cipalmente para os antigos mestres, que cumpriram o papel do Estado ao salvaguardar a Capoeira no século XX.

O consultor é o mediador apto a utilizar a caixa de ferramentas e os instrumentos de bordo da antropologia nas esferas do Estado e da Capoeira.

Com tais aparatos, os capoeiristas esperam que o consultor possa mediar a ação produtora dos sentidos esperados da salvaguarda

Nem só de controvérsias se fez o trabalho como consultora. Ao longo das consultorias construí relações de proximidade e afetos entre os grupos em que circulei. Apreendi que a Capoeira espera do consultor a mesma performance de um bom capoeira: saber ouvir, observar e desta forma apreender, respeitar os mestres, conhecer a trajetória da Capoeira, lutar pela Capoeira, saber fazer da resistência arte e gingar na vida. Na lógica da Capoeira, não ser passivo diante da controvérsia é virtude, e o jogo é considerado bonito quando o golpe entra, mas não entra.

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Referências

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Patricia Silva Osorio

A base para a construção da reflexão desenvolvida neste texto está distanciada de uma atuação mais direta, como antropóloga, nas ações que culminaram na transformação do modo de tornar patrimônio a viola de cocho. Abordaremos os processos de patrimonialização da viola de cocho tendo em vista um desvio, ou melhor, uma espécie de intermediário: os festivais de cultura popular. Traremos alguns apontamentos baseados em pesquisas etnográficas sobre os Festivais de Cururu e Siriri, reali-zados em Cuiabá.

Nosso objetivo é estabelecer uma relação entre a patrimonialização do modo de fazer a viola de cocho e as dinâmicas festivas que emergem dos grandes festivais de cultura popular. Intensificando fluxos entre os grupos e as esferas públicas administrativas e midiáticas, remodelando sociabilidades festivas e expressando pertencimentos, o festival pode ser entendido como uma ação patrimonial.

O cururu e o siriri são duas manifestações populares difundidas em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A viola de cocho é um dos

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principais instrumentos musicais utilizados nas performances. Siriri é uma dança executada por pares (um homem e uma mulher) ao som da viola de cocho, do ganzá e do mocho. O cururu é executado por homens que tocam e improvisam versos ao som da viola de cocho e do ganzá. Os dois folguedos acontecem nos circuitos das festas realizadas em homenagem a santos católicos, também chamadas festas de quintal, ocorridas durante todo o ano na Baixada Cuiabana e registradas por alguns viajantes, como Max Schmidt, no início do século XX. No século XXI, os cenários de exibição ampliam-se. O Festival de Cururu e Siriri é o caso exemplar de uma expansão que significa o deslocamento das festas dos quintais para os palcos. Ela propicia uma série de alterações nas formas e nos conteúdos performáticos referentes à coreografia, à cenografia e à indumentária, trazendo transformações importantes nas sociabilidades festivas.1

A discussão sobre os processos de patrimonialização tendo como mote os festivais surge porque patrimônio é uma noção constantemente evocada durante a preparação e a realização do evento. A reflexão tam-bém se impõe porque o foco do festival é a exibição de um patrimônio:

a viola de cocho e todo o seu complexo musical, coreográfico e poético, ou seja, o cururu e o siriri.

Algumas paisagens são importantes de serem sublinhadas no pro-cesso de patrimonialização do modo de fazer a viola de cocho. Em 1988 aconteceu no Rio de Janeiro, no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), uma exposição sobre a viola de cocho, o siriri e o cururu.

A exposição foi construída com base na pesquisa feita pela antropóloga Elizabeth Travassos e pelo músico Roberto Correa em alguns municípios do estado de Mato Grosso. Em 2002 um projeto coordenado pela antro-póloga Letícia Vianna, financiado pela Petrobras, estendeu a pesquisa para o estado de Mato Grosso do Sul. Em 2003, no âmbito do “Projeto

1 Para uma reflexão sobre mudanças nas sociabilidades festivas com foco nas dinâ-micas dos grupos de siriri em novos espaços simbólicos, ver Osorio (2012, 2015).

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Celebrações e Saberes da Cultura”, a pesquisa foi ampliada para outros municípios de Mato Grosso, utilizando então a metodologia do “Inventário Nacional de Referências Culturais”. Todas essas pesquisas foram subsídios importantes na formulação do dossiê de instrução que possibilitou a ins-crição do Modo de Fazer a Viola de Cocho no Livro de Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), conferindo-lhe o título de Patrimônio Cultural do Brasil em 14 de janeiro de 2005. Assim, o CNFCP figura como o proponente do registro do modo de fazer a viola de cocho nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Destaca-se que no dossiê produzido a importância do registro e da salvaguarda da viola de cocho está atrelada às possíveis ameaças: idade avançada de seus executores e, particularmente em Mato Grosso, o fato de a viola ter se tornado um objeto de disputa judicial sobre o registro da marca “Viola de cocho” no Instituto Nacional de Propriedade Intelec-tual (INPI) em benefício de um indivíduo (Osorio, 2017, p. 498-499). O embate é também abordado pela antropóloga Letícia Vianna (2005) em um artigo sobre o caso do registro da viola de cocho como patrimônio imaterial, publicado na Revista Sociedade e Cultura. Recentemente, outra antropóloga, Heloisa Ariano (2017), tratou dos conflitos que envolvem a patrimonialização, inserindo-os em um debate sobre nação e região no qual a rivalidade entre paus rodados e cuiabanos de chapa e cruz modela as disputas por bens materiais e simbólicos.

Sinalizamos elementos importantes no processo que culminou na transformação do modo de fazer viola de cocho em patrimônio imaterial brasileiro. Chamamos a atenção para a atuação dos antropólogos, mais especificamente, de duas antropólogas envolvidas no processo de patri-monialização: Elizabeth Travassos e Letícia Vianna. A patrimonialização da viola de cocho é apenas um dos vários exemplos do envolvimento da antropologia brasileira na formulação e na implementação de políticas públicas. No caso das políticas públicas voltadas para os patrimônios, essa atuação se dá desde a invenção de conceitos, a formulação de

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dologias até a aplicação destes conceitos e métodos na realidade social.

Antropólogos e antropólogas participam ativamente da elaboração de metodologias, inventários e planos de salvaguarda. Tal apontamento não é nenhuma novidade e não se esgota nas políticas patrimoniais.2

Mas o que gostaríamos de enfatizar é o fato de alguns conceitos teóricos guardarem em si uma ação política e cívica/cidadã. Patrimônio é um desses conceitos. Ao falarmos de patrimônios no Brasil, abre-se espaço também para falarmos do envolvimento de vários antropólogos e antropólogas com as políticas de patrimonialização. A noção de pa-trimônio ocupa um lugar significativo nas discussões antropológicas contemporâneas e expõe o protagonismo da Antropologia brasileira em sua atuação na esfera pública, especialmente nas políticas voltadas para os patrimônios imateriais.

O segundo ponto para o qual atentamos é como a transformação da viola em patrimônio constitui-se em um processo político de

O segundo ponto para o qual atentamos é como a transformação da viola em patrimônio constitui-se em um processo político de