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1 INTRODUÇÃO: OS PERCURSOS DA PESQUISA

1.3 OS OPM NO CONTEXTO DA TEORIA: PRIMEIROS APONTAMENTOS

Vista essa questão de algumas nuances do movimento feminista, neste ponto, consideramos relevante antecipar, mesmo que de forma resumida, algumas questões teóricas de modo que se explicite o entendimento a que o corpus tem nos levado sobre a relação entre os saberes patriarcais e feministas materializados no discurso das publicações dos Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres (OMP) sobre violência contra a mulher.

Dito isso, partimos do entendimento de que uma dada formação social é composta por várias formações ideológicas (FIs), as quais, segundo Courtine (2014), seriam um conjunto complexo de atitudes, posturas ou representações capazes de intervirem em uma formação social. Nesse sentido, uma FI seria composta por uma ou várias Formações Discursivas (FDs). A FD, no entendimento da Análise do Discurso (AD) reivindicada por Michel Pêcheux, é considerada heterogênea, porosa e intervalar, o que pressupõe dizer que os saberes próprios de uma FD transitam pelos saberes de outras FD’s, em uma relação de contradição, em um movimento de ir e vir, de sempre “estar entre”. Isso se reflete até mesmo no interior de uma FD dada, a qual seria composta por várias posições-sujeito, em que cada uma se relacionaria de algum modo com os saberes da formação discursiva a que está filiada: uma ratificando integralmente esses saberes, outra os questionando, outra chegando a confrontar esses mesmos saberes etc. Isso aponta, na teoria que tomamos por base, o que Indursky (2005b) chama de “desdobramentos da forma-sujeito”.

A partir dessa concepção, nosso corpus tem apontado para a ideia de que, na nossa formação social, predominam os saberes de uma formação discursiva de viés patriarcal, que se mantém dominante nas relações discursivas, orientando o que pode e deve ser dito pelos sujeitos inscritos nela. Nesse sentido, os dados nos lançam ao entendimento de que haveria uma grande FD patriarcal, que comportaria várias posições-sujeito que se diferenciariam entre si na maneira de se relacionar com os saberes patriarcais. Nesse contexto, faz-se necessário descrever duas posições-sujeito especialmente: uma que nos parece configurar-se como a dominante e outra

que estaria em uma região mais fronteiriça a partir de onde se questionam os saberes da primeira, muito embora não chegue a romper totalmente com ela.

A posição-sujeito dominante de uma formação discursiva patriarcal seria constituída por saberes que trabalham para discursivizar a mulher a fim de que ela seja inferiorizada nas relações sociais em detrimento do homem, restringindo-a, preferencialmente, aos espaços privados (onde as atividades que lhe são atribuídas são menos valorizadas), submetendo-a a um crivo sexista de como deve se portar, sentir-se ou submeter-se. Dessa forma, em situações de violência, por exemplo, os saberes patriarcais tratam de produzir efeitos de naturalização para essa violência ou até de responsabilizar a mulher pelos atos de violência dos homens. É nesse viés discursivo que se produzem e reproduzem saberes como “Isso é coisa de mulherzinha”, “Lugar de mulher é em casa”, “Apanha porque gosta” ou tomar como um elogio a mulher ser “recatada e do lar”. Esses dizeres acabam por reproduzir valores que têm por objetivo perpetuar a atuação do patriarcado, o que nos parece consistente tratar desses dizeres como dominantes em uma FD patriarcal.

Por outro lado, os dados apontam para a existência de outra posição-sujeito não- dominante na FD patriarcal. Ela seria uma posição-sujeito de fronteira, ou seja, ela, embora apresente, em primeiro plano, alguns saberes próprios de outra FD, no caso uma FD feminista, ela ainda não chega a romper totalmente com os saberes patriarcais, ou seja, ela sofre atravessamentos ideológicos de uma FD feminista, daí o fato de combater a violência contra a mulher e incentivar a denúncia contra os agressores.No entanto, com esses atravessamentos, não chega a haver uma total desidentificação com os saberes patriarcais, pois estes saberes ainda aparecem em um segundo plano, de modo um tanto subliminar, porém, ainda presentes. É nesse sentido que se produzem dizeres sobre a violência contra a mulher do tipo: “Se você se calar, a violência vai continuar”, “Denuncie!”, “Dia Nacional de combate ao câncer” (em referência ao dia nacional de combate à violência contra a mulher). Ou seja, esses dizeres, embora apresentem pautas feministas de combate à violência doméstica, por exemplo, acabam, de modo menos explícito, deixando a responsabilidade pelo fim da violência nas mãos da mulher ou produzem efeitos de naturalização dessa violência.

É nesse ambiente de contradição entre os saberes patriarcais e feministas que se encontra nossa pesquisa. Nesse sentido, as leituras do corpus têm apontado que as publicações dos Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres (OPM) sobre violência contra a mulher no Facebook podem estar filiados não a uma FD feminista, pois, embora cheguem a reproduzir alguns de seus saberes, não parecem chegar a romper totalmente com os saberes patriarcais, o que sugere, por conseguinte, uma filiação à FD patriarcal, posto que conserva a

matriz de responsabilização da mulher pela violência ou tem produzido efeitos que sugerem sua naturalização.

Em resumo, nosso corpus parece estar filiado a uma FD patriarcal, que apresenta pelo menos duas posições-sujeito diferentes: uma posição-sujeito dominante e outra posição-sujeito fronteiriça ou periférica, na qual parecem se inscrever as publicações dos OPM sobre violência contra a mulher.

Sobre aquestão da contradição e desdobramentos da forma-sujeito em várias posições- sujeito, Indursky (2005b, p. 194) diz:

este desdobramento conduz a pensar na fragmentação da forma-sujeito em várias posições-sujeito desiguais entre si. É aí que reside a contradição, instaurada pela entrada de saberes diferentes e muitas vezes divergentes, no interior da FD. Ou seja: tais saberes não se originam todos no interior da mesma FD, nem fazem parte de um subsistema no interior do sistema. Tais saberes são provenientes do exterior e, num determinado momento histórico, passam a poder ser ditos no âmbito da FD.

É nessa compreensão de uma formação discursiva fragmentada que se inscreve nossa pesquisa. A partir disso, podemos inferir que há uma luta constante entre a formação discursiva patriarcal e a feminista, uma atravessando a outra através do interdiscurso, de forma que o próprio feminismo vem sendo ressignificado ao longo da história e, não raro, percebe-se sendo atravessado ideologicamente pelo discurso do patriarcado, que tem sido dominante nessa relação. Este e sua máquina trabalham incansavelmente para burlar e se sobrepor ao discurso feminista.

É nesse contexto de confronto entre formações discursivas que nascem os Organismos Governamentais de Políticas Para as Mulheres (OPM). Para fomentar uma ação em nível nacional de combate à violência contra a mulher, o governo federal, no mandato do presidente Lula, em 2007, criou, através de portaria, o Fórum Nacional de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres, que foi uma ação da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM)5 a fim de fortalecer e ampliar as políticas públicas para a mulher no Brasil. A

partir desse fórum, todo estado ou município passou a ter a possibilidade de criar um OPM, recebendo, inclusive, ajuda financeira do governo federal para desenvolver ações e políticas voltadas para a mulher nas áreas de educação, saúde, diversidade e poder, bem como estruturação física do OPM.

5 A Secretaria de Políticas Públicas Para as Mulheres (SPM) foi extinta com a entrada do presidente Jair Bolsonaro

Segundo o site da agora extinta Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2015, época do último levantamento feito pela SPM, eram 719 organismos dessa natureza em todo o Brasil, incluídos aí 25 estaduais, cuja exceção eram os estados de Roraima e Paraná.

A criação desses OPM visava promover a igualdade de direitos entre os gêneros e combater a violência contra a mulher, o que representava um avanço grande para o país ter, em cada estado ou município, uma secretaria ou órgão especialmente voltado a políticas para a mulher. No entanto, o país ainda tem muito a mudar quanto às relações de gênero. Para se ter uma ideia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2015, a cada 11 minutos, ocorre um estupro no Brasil; ainda, segundo o Relógios da Violência do Instituto Maria da Penha, a cada 7,2 segundos, uma mulher é vítima de violência física no país.

Esses reduzidos dados já mostram a necessidade de promoção de políticas públicas para a mulher em todos os entes da federação e seus respectivos municípios. Nesse sentido, a criação dos OPM vem ajudar no combate à violência contra a mulher, sobretudo no incentivo à população para que denuncie os agressores às autoridades. Entretanto, apesar de as denúncias de violência contra a mulher terem aumentado após o engajamento dos estados no desenvolvimento de órgãos e secretarias de promoção de políticas para as mulheres, ainda é desproporcional o número de agressões sofridas pelas mulheres em relação às denúncias que as delegacias especializadas e o Ligue 180 recebem.

Nosso olhar sobre os OPM nos levou a perceber que, embora estes tenham uma importância crucial para o combate à violência contra a mulher, o discurso produzido a partir desse lugar institucional que os OPM representam é ainda um discurso que se mostra como regulado pelo patriarcado, conforme apontam as leituras possíveis das publicações feitas pelo órgão no Facebook em suas campanhas de prevenção à violência contra a mulher, que serão objeto de análise nesta tese.

Dito isso, lançaremos mão, nesta pesquisa, portanto, dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso sugerida e reivindicada por Michel Pêcheux a fim de analisar a possível filiação desses OPM a uma ideologia patriarcal, observando os efeitos de sentido produzidos pelas publicações sobre violência contra a mulher no Facebook dos Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres (OPM) dos estados do Nordeste quanto ao que é ser mulher, bem como verificar com quem tais publicidades estão falando e quais sujeitos estão sendo interpelados nesse processo. Iremos, ainda, analisar quais são os pré-construídos que sustentam esses discursos e, por fim, observaremos a (des)identificação dos usuários da rede social com o discurso sobre a mulher presente nessas publicidades. Para resgatar esses dados sobre os usuários, iremos também analisar os comentários sobre as publicações feitas

pelos OPM. Como marco temporal, escolhemos constituir o corpus a partir de dezembro de 2014, quando aconteceu a publicação do Guia para a Criação e Implementação de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres – OPM, até dezembro de 2017 (quando finda o governo responsável pela implementação destes organismos).

Com o corpus constituído, faremos sua descrição no período acima citado, apontando os critérios utilizados para tal constituição e situando o nosso objeto de estudo. Em seguida, traçaremos observações teóricas sobre a Análise do Discurso pecheutiana, teoria que nos dará suporte neste trabalho. Quanto à metodologia, decidimos não fazer um capítulo específico, mas expor os aspectos metodológicos no decorrer da descrição do nosso corpus. Em seguida, faremos a análise propriamente dita a fim de analisar o corpus e percebermos para ondeeste nos leva, do ponto de vista teórico, e, por fim, faremos nossas considerações finais e encaminhamentos da pesquisa.