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CAPÍTULO 4 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E CONFRONTOS IDEOLÓGICOS

4.1 Os planos de educação no dia 23 de junho de 2015

No mês de junho de 2015, o discurso da “ideologia de gênero” foi constantemente mobilizado nas discussões no Plenário da Câmara (ver Apêndice 1), sendo um dos momentos de maior frequência de aparição deste termo nos pronunciamentos. Certamente, o principal motivo para esta grande mobilização foi a iminência da votação dos planos municipais e estaduais de educação, que deveriam ser aprovados ainda naquele ano, assim como previsto

pelo Plano Nacional de Educação. Como demonstrado no tópico 3.1 do capítulo anterior, naquele momento, houve uma grande mobilização de alguns setores da sociedade – sobretudo de grupos vinculados a denominações cristãs, em especial, ao catolicismo e às igrejas evangélicas – contra a implementação da “ideologia de gênero” nas escolas.

Assim, a partir dos primeiros meses de 2015, estes grupos protagonizaram protestos (virtuais e presenciais) e pressionaram a votação dos planos de educação nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas de todo o país, conformando uma agenda de debate público em torno da pertinência das discussões sobre diversidade sexual e de gênero nas políticas de educação. Logicamente, sendo um movimento protagonizado por grupos e lideranças conservadoras, a “balança política” tendeu para a exclusão desta temática do espaço público escolar, com a retirada de termos como “gênero” e “orientação sexual” de um grande número de planos estaduais e municipais de educação.

Desse modo, o discurso da “ideologia de gênero”, anteriormente pouco conhecido na arena política brasileira, se conformou enquanto um termo guarda-chuva, uma “aglutinante simbólico” [symbolic glue], no campo das políticas sexuais (Bracke & Paternotte, 2016; Cornejo-Valle & Pichardo, 2017; Grzebalska, Kováts & Pető, 2017; Kováts, 2017; Kováts & Põim, 2015), aglutinando uma série discursos e temas. Ou seja, como uma importante ferramenta político-discursiva de oposição a uma ampla rede de atores e demandas sociais vinculadas aos movimentos feministas e LGBT – nos termos deste discurso, de oposição à “revolução cultural”, à “sexualização das crianças” e à “destruição da família e dos valores cristãos”.

Em junho de 2015, a discussão sobre a “ideologia de gênero” nos planos de educação estava em seu ápice. Tratava-se de um momento em que muitos planos estavam sendo aprovados, angariando importantes vitórias para o campo conservador a partir da realização de protestos que exerceram pressão sobre as casas legislativas, ampliando a difusão social deste discurso. Por conseguinte, tais eventos tiveram um impacto significativo sobre as posições de alguns/mas deputados/as federais e sobre os pronunciamentos realizados na Câmara dos Deputados. Assim, tivemos a reprodução do discurso da “ideologia de gênero”, visando a sua amplificação social e a potencialização das polêmicas em torno da votação local dos planos de educação, tendo como resultado final a retirada de qualquer referência às temáticas de gênero e sexualidade dos planos.

Como descrito anteriormente, no dia 23 de junho de 2015, tivemos o aumento da frequência do uso desse termo em pronunciamentos realizados no Plenário da Câmara, manifestos na 164ª Sessão Deliberativa Extraordinária, ocorrida no período da tarde, das 13h55

às 17h55. No início da sessão, foi registrado o número de 112 parlamentares presentes. Assim, foram analisados seis pronunciamentos, efetuados pelos deputados Vitor Valim (PMDB/CE), Jair Bolsonaro (PP/RJ), Flavinho (PSB/SP), Professor Victório Galli (PSC/MT), Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Ságuas Moraes (PT/MT) – discursos respectivamente enumerados em I, II, III, IV, V e VI. Cabe destacar que tais pronunciamentos apresentaram um forte aspecto interacional, pois além de abordarem a mesma temática no mesmo ambiente, também estiveram interligados em uma lógica de ponto e contraponto, com referências mútuas, complementações e contra- argumentações.

Por outro lado, estes pronunciamentos compuseram uma pequena parte das discussões efetuadas nesta sessão legislativa, que abarcaram também outras temáticas, como informes regionais, debates econômicos, a questão da redução da maioridade penal (em discussão, naquele período) e um caso de intolerância religiosa perpetuado contra uma menina pertencente a uma religião de matriz africana. Concomitantemente, esta sessão legislativa (164ª Sessão Extraordinária) não deliberou sobre algum assunto específico, se conformando enquanto uma sessão de realização de informes, geralmente regionais, e afirmação de posicionamentos políticos.

Outro ponto importante foi o fortalecimento da bancada de oposição no Congresso Nacional ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e à Presidência de Dilma Rousseff após as eleições de 2014, com a amplificação e vinculação de temas polêmicos às políticas implementadas pelo Governo Federal, visando desgastá-lo perante a opinião pública. Lembrando que, desde fevereiro de 2015, a Presidência da Câmara dos Deputados estava sendo ocupada pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) – liderança política ultraconservadora pertencente ao “baixo clero”, integrando também a bancada evangélica pela Assembleia de Deus, sendo posteriormente um dos protagonistas do processo de impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Assim, naquele momento, lideranças religiosas, que antes compunham a base de sustentação do Governo Dilma (2011-2016), começaram a fazer uma forte oposição ao governo, se pautando principalmente em temas morais, como na denúncia à ameaça da “ideologia de gênero” nas escolas.

Na referida sessão legislativa, o debate sobre a “ideologia de gênero” nas políticas de educação foi iniciado pelo deputado Vitor Valim (PMDB/CE), integrante da Frente Parlamentar Católica, porém sem um vínculo orgânico com um ativismo religioso. Em seu pronunciamento, o deputado apresentou duras críticas ao PT e vinculou a implementação da “ideologia de gênero” a esse partido, sendo seu discurso marcantemente identificado com a bancada de

oposição da Câmara. Assim, selecionamos os seguintes trechos de seu pronunciamento, que explicitam suas posições e sua lógica argumentativa:

(I) (1) volto novamente a parabenizar a lucidez do ex-Presidente da República, em seus poucos momentos, que reconheceu que o PT está envelhecido e que o PT só pensa em cargos e empregos. A fala não é do Deputado Vitor Valim; é da maior referência dentro do PT: o ex- Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

(2) Mas eu quero falar de um assunto que já foi tratado muito na tribuna desta Casa, um assunto bastante polêmico (...) o Deputado Bolsonaro. S.Exa. trouxe algumas cartilhas que abordam educação sexual, temas como identidade de gênero. E vejam que muitos diziam que essas cartilhas não existiam, que era o Deputado Jair Bolsonaro que as estava trazendo à tribuna da Câmara para criar factoides.

(3) Pelo contrário, na legislatura passada, o combativo Deputado Bolsonaro já trazia a esta Casa, infelizmente, a ideologia de gênero, que o Partido dos Trabalhadores assumiu. Isto já foi negado pela Casa no PNE, mas eis que voltou agora numa cartilha de orientação aos professores. Qualquer um pode visualizar. Está no site do MEC. Não adianta mais virem com a desculpa esfarrapada de dizer que são os Deputados da oposição os que querem criar fatos trazendo cartilhas inverídicas.

(4) E a primeira parte desse documento justifica a importância da inclusão da orientação sexual como tema transversal nos currículos. Isso significa que crianças a partir dos 6 anos de idade vão ser abordadas com temas como aborto, orientação sexual, gravidez. Será que eu quero que o meu filho de 6 anos de idade seja abordado por esse tipo de tema, Sr. Presidente [da Câmara]? (5) Não podemos ficar calados! Essa aberração do Partido dos Trabalhadores já foi derrubada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Agora, querem introduzir isto nas escolas: ideologia de gênero76.

Neste sentido, podemos traçar uma linha argumentativa na qual o discurso se construiu. Inicialmente, o deputado apresentou uma caracterização do Partido dos Trabalhadores (PT), definindo-o como um partido “envelhecido” e que “só pensa em cargos” – algo que, nas suas palavras, não seria uma fala sua, mas do próprio ex-presidente Lula, a “maior referência” do PT (1), dando legitimidade e veracidade a essa representação. Logo em seguida, Valim apresentou o motivo de seu pronunciamento era, na verdade, a “ideologia de gênero”, fazendo referência ao deputado Jair Bolsonaro, que trouxe à Câmara Federal o debate sobre as “cartilhas

76 Trechos do pronunciamento realizado pelo dep. Vitor Valim (PMDB/CE) no Plenário da Câmara em 23/06/2015,

que abordam educação sexual”, dita por “muitos” como um “factoide” criado pelo referido deputado (2).

Na sequência, o deputado sustentou que estas cartilhas realmente existem e que estão disponíveis no site do Ministério da Educação (MEC), qualificando as acusações de produção de “factóides” pela oposição como “desculpas esfarrapadas” (3). Com a “confirmação” da existência de tais cartilhas, o deputado então definiu o seu conteúdo como a abordagem de temas polêmicos como “aborto, orientação sexual, gravidez” para crianças de 6 anos, algo que inclusive contraria a sua posição enquanto pai (4). Por fim, vinculou a “ideologia de gênero” ao Partido dos Trabalhadores, qualificando-a enquanto uma “aberração”, momento em que demonstrou indignação e incitou uma reação tanto contra as cartilhas de educação sexual que promovem a “ideologia de gênero”, quanto contra o PT enquanto partido e governo (5).

Assim, a partir de uma análise geral do pronunciamento, vemos que esta linha argumentativa se direciona a dois objetivos principais: (1º) a oposição ao Governo Federal e ao Partido dos Trabalhadores; e (2º) a remoção das questões que envolvem gênero e sexualidade das políticas de educação. É interessante notarmos também a disposição e qualificação dos atores mobilizados no discurso. Em um polo temos basicamente o PT (com a citação em específico do ex-presidente Lula) e o MEC, que querem introduzir a “ideologia de gênero” nas escolas; e no outro uma série de atores, como o enunciador deste discurso, Vitor Valim (1), a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, que derrubaram essa “aberração” (5), os “deputados de oposição” (3) e o “combativo” deputado Bolsonaro (3) – atores que se opõem a esta “ideologia”.

Concomitantemente, outros atores aparecem de forma oculta, sobretudo quando vinculados ao campo petista, como em “vejo que muitos diziam que essas cartilhas não existiam” (2) e em “não adianta mais virem com a desculpa esfarrapa” (3), dando a percepção de pouca relevância política. No caso “não podemos ficar calados” (5), no qual o discurso se direcionou a um processo de generalização, foi sugerida a existência de um consenso social sobre os malefícios da “ideologia de gênero” nas políticas de educação.

Dessa forma, o deputado construiu uma representação de polarização política e social, entre um “nós” generalizado que combate a “ideologia de gênero”, e um “outro” focado, o Partido dos Trabalhadores, que assumiu esta ideologia e busca implementá-la nas políticas de educação. Por outro lado, foi evocada a imagem da “criança” ameaçada por temas sexuais, e do papel dos pais na proteção de seus filhos (4), buscando provavelmente a produção de processos de identificação direcionados aos/às receptores/as deste discurso. O deputado também destacou que este discurso não pode ser acusado de inverídico (3) ou factóide (2), pois existem dados

que comprovam as suas afirmações (3). Em concomitância, seu discurso afirmou-se também em um amplo consenso parlamentar (5), enfatizando assim a sua veracidade e sua aceitabilidade no espaço político-legislativo.

Seguindo a ordem da inscrição de falas, após alguns pronunciamentos que trataram sobre outros assuntos, o deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) retomou o pronunciamento de Vitor Valim. Cabe destacar que o presidente da sessão naquele momento, o deputado Carlos Manato (SD/ES), concedeu a palavra à Bolsonaro já o qualificando enquanto um “combativo defensor da família”, reafirmando um léxico comum ao campo conservador. Portanto, selecionamos os seguintes trechos do pronunciamento do dep. Bolsonaro para a realização da análise:

(II) (1) eu quero falar numa linha um pouco mais agressiva do que a do companheiro Vitor Valim sobre

a ideologia de gênero.

(2) O PT quer transformar criancinhas de 5, 6, 7 anos de idade em homossexuais e escancarar as portas para a pedofilia!

(3) nós da Câmara dos Deputados, em Comissão Especial rejeitamos a ideologia de gênero. A mesma coisa o Senado fez: rejeitou a ideologia de gênero. Agora órgão vinculado ao MEC, a Conferência Nacional de Educação, passa a orientar as quase 6 mil prefeituras do Brasil a incluir no Plano Decenal de Educação Municipal a ideologia de gênero.

(4) está ensinando o filho do pobre que é aquele que vai para a escola pública, que é aquele que recebe bolsa família, que, apesar de ter um apêndice, não é menino nem menina, é uma qualquer coisa.

(5) Coloque essa porcaria para ele [neto de Dilma] e não para os filhos do povo! Respeita a criança! Respeite a família brasileira! Isso é atitude de canalha! Tem a cara do PT essa determinação do MEC (...).

(6) A responsabilidade é de Dilma Rousseff, uma mulher que não governa nada, uma terrorista (...). É uma mulher que não tem caráter, não tem moral. Ela não respeita a Lei da Anistia! Por isso digo isso. Cria a chamada Comissão Nacional da Verdade para esculachar as Forças Armadas. (7) As crianças são o que existe de mais sagrado no meio familiar. O homem e a mulher se

transformam quando têm filho. O homem não quer chegar em casa e ver seu filho brincando de boneca, por ter sido orientado na escola, que hoje Dilma Rousseff e o PT querem, através da canalhice, transformar em bordel homoafetivo. A criança não sabe o que é sexo ainda!

(8) esse lixo chamado Secretaria de Direitos Humanos, que só defende vagabundo e canalha, que tem a mesma política que o PT está adotando junto às crianças nas escolas de ensino fundamental. Deixem de ser canalhas! Deixem as crianças em paz!77

77 Trechos do pronunciamento realizado pelo dep. Jair Bolsonaro (PP/RJ) no Plenário da Câmara em 23/06/2015,

Como relatado na ata, após o fim do pronunciamento, tivemos uma salva de palmas realizada por parte dos/as parlamentares presentes na sessão legislativa, destacando a aceitabilidade de um discurso assumidamente agressivo (1), que reproduz diversas violências contra as pessoas LGBT, com um alto grau de ofensividade. Assim, foi perceptível que Bolsonaro efetuou uma ampliação dos componentes presentes no pronunciamento de Vitor Valim, fortalecendo o discurso de polarização política a partir da identificação mais precisa dos atores envolvidos e da utilização sistemática de elementos emotivos e de empreendimento morais – algo que se configurou enquanto o principal motor de sua lógica retórica e argumentativa.

Novamente, os atores foram dispostos de forma precisa e localizada. No entanto, a ênfase do discurso foi dada fundamentalmente para os atores que são responsáveis pela produção da ameaça – o PT (1, 7 e 8), a Dilma Rousseff (6 e 7), o MEC, a Confederação Nacional de Educação (3) e a Secretaria de Direitos Humanos (8) – e os atores que estão ameaçados, os “filhos do pobre” (4), os “filhos do povo”, a família brasileira (5) e as crianças (2, 5, 7 e 8). Assim, o fortalecimento discursivo da polarização não se deu pela disposição de dois polos de atores opostos e antagônicos; mas sim pela disposição de um polo de atores (mais forte) que produz a ameaça, e um outro polo de atores (mais fraco) que é ameaçado. Neste sentido, a atuação da oposição parlamentar, e de deputados como Bolsonaro e Valim, estaria direcionada à proteção das famílias e das crianças contra a ameaça que é representada pela “ideologia de gênero” e pelo governo do PT. Em termos retóricos, não seria de fato uma polarização entre dois polos políticos igualmente legítimos, mas sim uma atuação de determinados atores políticos em prol da defesa de grupos sociais mais fracos que se encontram ameaçados por atores que representam o mal.

Novamente, visualizamos processos de generalização em relação às representações de homem e mulher (7), filhos do povo, crianças e família brasileira, e “nós da Câmara dos Deputados” e “Senado” (3), que se convertem em processos de identificação (van Dijk, 1998), favorecendo a lógica argumentativa e a capacidade de mobilização afetiva deste discurso. Por outro lado, outras generalizações, convertidas em estereótipos por estarem relacionadas ao polo oposto, se fazem presentes no discurso, como o atrelamento das representações de “homossexuais”, “pedofilia” (2), “vagabundo e canalha” (8), “terrorista” (6), “PT”, “bordel homoafetivo” (7). Concomitantemente, o caso da estigmatização da homossexualidade é bastante marcante neste discurso, definida ao mesmo tempo enquanto uma ameaça (contagiante às crianças) e enquanto um efeito da “ideologia de gênero”.

Para além dos ataques ao PT, já presentes no pronunciamento de Vitor Valim, temos um direcionamento primordial deste discurso à desqualificação de Dilma Rousseff como Presidenta da República. Assim, enquanto que o PT foi representado como uma ameaça para as famílias e as crianças por implementar a “ideologia de gênero” nas políticas de educação, Dilma Rousseff foi qualificada como “uma mulher que não governa nada”, que “não tem caráter, não tem moral” (6), sendo a responsável direta pela implementação desta ideologia nos planos de educação. Por outro lado, o passado de Dilma como guerrilheira foi relembrado, de forma a qualificá-la como “uma terrorista”, levantando novamente um repertório de representações negativas. A partir desta representação, foi evocada a memória social do Regime Militar, direcionando-a à desqualificação da Comissão Nacional da Verdade, que teria desrespeitado a Lei da Anistia e as Forças Armadas (6). Neste sentido, o discurso da “ideologia de gênero” foi vinculado a outras questões mais amplas, que compõem uma determinada ideologia política, como quando foi feita a sua associação com a Secretaria de Direitos Humanos, órgão que só defenderia “vagabundo e canalha” (8).

A repetição constante do adjetivo “canalha” (5, 7 e 8) demonstrou um certo engajamento afetivo que perpassa o discurso como um todo, a partir da desqualificação dos adversários políticos por meio de um xingamento. Uma postura aparentemente incompatível com a atividade pública parlamentar, porém que torna contornos “positivos” por demonstrar espontaneidade, sinceridade e proximidade com a linguagem cotidiana e popular. Outro elemento relevante foi o uso constante de um discurso da ameaça iminente, mais especificamente, de “ameaça sexual às crianças” (Balieiro, 2018; Freire, 2018; Kováts, 2017), evocando sentimentos de medo e incerteza, como em “escancarar as portas para a pedofilia” (2), “não é menino, nem menina, é qualquer coisa” (4), “transformar [a escola] em bordel homoafetivo” (7) e “deixem as crianças em paz” (8). Como destacado na literatura acadêmica (Freeden, 1996; Jost et al., 2003; Pierucci, 1987), a percepção da ameaça, insegurança e desestruturação se conforma enquanto uma das principais características discursivas do conservadorismo como uma ideologia política.

Dessa forma, como no pronunciamento anterior, a ameaça da “ideologia de gênero” foi novamente vinculada ao PT enquanto partido e governo. Consideramos que esta lógica argumentativa não está vinculada apenas a uma disputa no campo das políticas sexuais promovida pelo campo conservador e por grupos de extrema-direita, mas também a uma disputa pela hegemonia da sociedade brasileira como um todo. Neste sentido, a intensificação do desgaste dos governos petistas e o convencimento da população de um projeto societal por meio da ativação de pânicos morais se constituíram como importantes elementos de uma nova agenda

conservadora (em termos socioculturais, políticos e econômicos) que, naquele momento, se rearticulava no país.

Posteriormente, após duas horas de pronunciamentos, já próximo do fim da sessão, o deputado Flavinho (PSB/SP) voltou a fazer referências ao combate à “ideologia de gênero” – no entanto, sem retornar aos pronunciamentos efetuados por Valim e Bolsonaro. Assim, o deputado trouxe em seu pronunciamento a necessidade da rejeição da “ideologia de gênero” na votação dos planos municipais de educação, no qual destacamos os seguintes trechos que explicitam as suas posições:

(III) (1) venho aqui hoje para fazer um agradecimento a todos os Vereadores (...) que rejeitaram o texto que foi enviado pela Conferência Nacional de Educação – CONAE e que inclui a ideologia de gênero nos Planos Municipais de Educação.

(2) É uma grande vitória que estamos tendo em nosso País ao preservarmos nossas crianças dessa ideologia maquiavélica, que visa destruir as nossas famílias e também a inocência das nossas crianças.

(3) de forma arbitrária, o MEC e o Ministro da Educação, num fórum que aconteceu em maio deste ano, colocaram de novo no texto toda essa questão da ideologia de gênero e enviaram para os Municípios – de forma arbitrária, repito –, contrariando a Lei nº 13.005, de 2014, aprovada nesta casa.

(4) queremos pedir e clamar aos Prefeitos das cidades onde já foi votado o PNE para vetarem e suprimirem do texto a ideologia de gênero, porque não foi aprovada nesta Casa, e o Governo Federal não tem autoridade para passar por cima desta Casa (...)78.

É interessante notarmos que, neste pronunciamento, apesar de também presenciarmos uma tensão em relação ao Governo Federal e às políticas implementadas pelo Ministério da Educação, não existe um ataque direto ao PT ou uma oposição radical ao governo. Desse modo, o pronunciamento de Flavinho se apresentou mais como um discurso de pressão, do que de oposição e ataque frontal ao governo, sem o estabelecimento de um vínculo orgânico entre o PT e a “ideologia de gênero”.

Por outro lado, o deputado deu ênfase a um conflito entre o Poder Executivo, na figura do Ministério da Educação (3), e o Poder Legislativo, na figura da Câmara dos Deputados (4), que nas suas palavras teria aprovado o Plano Nacional de Educação sem a “ideologia de

78 Trechos do pronunciamento realizado pelo dep. Flavinho (PSB/SP) no Plenário da Câmara em 23/06/2015, às

gênero”. Neste sentido, nesta lógica argumentativa, o envio pelo MEC de um texto base que ampara a elaboração dos planos municipais de educação com a presença das questões de gênero e sexualidade seria uma arbitrariedade, pois tal ação infringiria a lei que regulamenta o Plano Nacional de Educação (3).

Conjuntamente, o deputado optou por dar evidência a atores institucionais, como os “vereadores”, se demonstrando agradecido pela rejeição nos municípios do texto enviado pela