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OS PODCASTS DO BOLETIM CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS: UMA ESCUTA

No documento Cientistas Sociais e o Coronavírus (páginas 38-45)

ANTROPOLÓGICA DE EXPERIÊNCIAS DE

QUARENTENA E ISOLAMENTO SOCIAL

Por Felipe Bruno Martins Fernandes

publicado em 20/11/2020 Atuei como editor da série de Podcasts “Cientistas Sociais e o Coronavírus”, publicados entre abril e julho de 2020, paralelamente aos textos do Boletim pre- sentes nessa obra. Rodrigo Toniol teve a ideia de editarmos podcasts a partir do depoimento de uma de suas amigas de infância, a enfermeira Camila Martins, que lhe narrou, por meio de áudio, os dilemas de ter sido destacada para a linha de frente de enfrentamento do novo coronavírus, ainda nos primeiros dias da pande- mia. Tendo compartilhado essa ideia com Miriam Grossi, ambos me convidaram para assumir a tarefa específica de editoria do podcast como extensão do Boletim. O objetivo da série de podcasts foi “inverter o vetor do Boletim”, alternando o protagonismo das análises de especialistas para a intensificação das variadas ex- periências da quarentena e do isolamento social de interlocutoras e interlocutores de nossas pesquisas. Com base nas teorias antropológicas, a série de podcasts se sustentou na possibilidade de afetação (cf. FAVRET-SAADa1) que as histórias particulares têm para cientistas sociais e também para o público mais amplo que acessava o Boletim naquele momento. Como apontou Rodrigo Toniol no Episó- dio 2 da série, “a proposta [foi] apostar na escuta, esse exercício fundamental da Antropologia, a partir do qual conseguimos ampliar a nossa própria imaginação sobre o mundo”. Em parceria com os editores-chefes, tive a oportunidade de tra- balhar na produção de nove episódios, os quais apresento abaixo, oferecendo às leitoras e leitores o endereço eletrônico para o acesso aos arquivos de áudio: 1 FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005.

Cientistas Sociais e o Coronavírus

• Episódio 1: Profissionais de Saúde (14/04/2020).

O episódio contou com a participação da enfermeira Camila Martins, que atua no Sistema Único de Saúde (SUS) do estado de São Paulo, e aborda a sua experiência na ponta do atendimento. Sua fala apresentou, especifica- mente, as expectativas quanto à chegada do novo coronavírus no Brasil. Além disso, ela tratou das mudanças que ocorreram em seu cotidiano de trabalho e os desafios de uma profissional da saúde em sua relação familiar pois, como pertencente ao grupo de risco, não pôde conviver com suas familiares mais próximas. Por meio desse episódio compreendemos os de- safios de uma profissional de saúde nesse período permeado de angústias e dúvidas, ademais de uma insegurança sobre um vírus que se alastrava e cujos sintomas se mostravam drásticos para um quadro gripal.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Profissionais-de-sade-ecpqsn/a-a1uh84q. • Episódio 2: De Porta em Porta (17/04/2020)

O episódio contou com a participação da vendedora de Yakult, Ana, que, com o seu “carrinho”, vende o produto de porta em porta na peri- feria de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Ana é uma mulher de 61 anos, cuja renda foi impactada pela pandemia do novo corona- vírus na medida em que a demanda da bebida na rua diminuiu. Cabe mencionar que em abril de 2020 havia grande circulação de discursos que apontavam as pessoas mais velhas como mais vulneráveis à in- fecção pelo vírus e que, mesmo com apreensão, a vendedora tinha que manter suas vendas na rua, pois delas dependia financeiramente. Seu depoimento mostra a contradição entre se proteger (por meio da polí- tica do isolamento social) e garantir a renda mínima de sua família.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---De-porta-em-Porta-ectacl/a-a1v6ppq.

• Episódio 3: Empregada Doméstica (21/04/2020)

O episódio contou com a participação da empregada doméstica Luana Guedes, moradora do município de São Félix, no Recôncavo da Ba-

hia2. Luana é mãe de dois filhos, um de 11 anos e outro que celebrou

2 Uma análise sobre a situação do município de São Félix durante a pandemia do novo coronavírus está publicada neste livro (p. 209) e é intitulada “Desigualdades Sociais e as Agendas da Pandemia em um Município do Recôncavo Baiano”, de autoria de Felipe Bruno Martins Fernandes.

seu primeiro ano de vida durante as políticas de isolamento social, e é beneficiária do programa Bolsa Família. Esse episódio foi realizado em um município do interior do Nordeste, marcado pela narrativa de uma mulher dependente de políticas sociais. Desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, as parcelas mais empobrecidas da sociedade brasileira vivem em um clima de incertezas em relação aos benefícios sociais e isto se reflete em disputas políticas locais, como bem nos contou essa interlocutora. A situação de Luana conjetura o que a Antropologia da Catástrofe tem analisado, como momentos de muitas temporalidades: uma mais imediata como a fome, e outra de médio e longo prazo, que nos faz refletir sobre como sairemos dessa situação.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Empregada-domstica-ed34pb/a-a20amvn. • Episódio 4: Ciganos em Quarentena (24/04/2020)

O episódio contou com a participação de quatro pesquisadores, profis- sionais e ativistas ciganos, de várias regiões do Brasil e uma brasileira vivendo na Argentina. Aloísio de Azevedo, da etnia Calon e morador do município de Cuiabá/MT, é jornalista, especialista em Cinema, mes- tre em Educação e doutor em Comunicação e Saúde, tendo se dedica- do a pesquisas sobre os Povos Romani. A cantora e produtora cultural Aline Miklos mora há mais de cinco anos em Buenos Aires/AR e é do grupo Rom Kalderash, atualmente doutoranda em História da Arte. Já Suênia Mangueira é enfermeira moradora do município de Sousa, no interior da Paraíba, também da etnia Calon. Por fim, Jucelho Dantas, da etnia Calon, é Professor da Universidade Estadual de Feira de San- tana (UEFS), na Bahia. Nesse episódio, é possível compreender que, apesar das vozes diversas em termos geográficos e de capital simbólico, as situações vividas pelos Romi são semelhantes no Brasil, particular- mente em termos de preconceito histórico, falta de reconhecimento e difícil articulação com o poder público. Como apontou a antropóloga Edilma Nascimento, as quatro narrativas entrecruzadas nos possibili- tam tencionar a omissão do estado e explicitar a resiliência dos povos ciganos, além de ampliar o nosso olhar sobre a realidade dessa popula- ção no território nacional.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

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• Episódio 5: A América Latina Espelhada (01/05/2020)

O episódio contou com a participação da antropóloga Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves e do boliviano de etnia Aimará Roger Adan Chambi Mayta, mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPGIELA) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz do Iguaçu/PR. A pri- meira, idealizadora deste episódio, mora há três anos com uma família indígena na cidade de El Alto, na Bolívia, onde residem os familiares do segundo que ali fez também o seu isolamento social. A cidade de El Alto, como apontam, é eminentemente indígena e o episódio trouxe os dilemas da pandemia em uma cidade onde a economia é focada no trabalho informal. As consequências do período de isolamento foram drásticas, semelhantes a relatos ouvidos em diferentes regiões do Brasil, nas quais há uma dependência da população dos alimentos comerciali- zados diariamente de origem da agricultura familiar. O episódio conta as diferentes soluções do governo boliviano para compensar a quaren- tena daqueles que não podem deixar de circular. Além disso, as narra- tivas expõem conflitos entre o poder estatal e as populações indígenas.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---A-Amrica-latina-espelhada-edgi5r/a-a233kd7. • Episódio 6: Cuidada e Cuidadora (15/05/2020)

Nesse episódio conhecemos Marilene Quadros, cadeirante e concluinte do curso de Antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), orientanda da antropóloga Alinne Bonetti, docente na mesma instituição, que contribuiu para a produção deste episódio. O episó- dio mostra os desafios de uma mulher com deficiência, esposa e mãe de duas filhas, sem a presença de sua cuidadora, no momento da pan- demia e do ensino remoto. Na fala de Marilene, acometida por uma doença degenerativa, percebemos a insegurança gerada em pessoas com deficiência acerca da chegada da pandemia do novo coronavírus, afetando os planos e as certezas de quem já enfrentava tantas barreiras na manutenção de uma vida independente. Em momento de escrita de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre Gênero, Deficiência e Cuidado, Marilene é enfática em apontar que, apesar de cuidada pelo esposo e filhas, não deixa o seu lugar de cuidadora, tendo sido esse apenas transformado sem planejamento com o início das políticas de

isolamento social. Portanto, para essa futura cientista social, o fato de ser uma mulher e de subscrever as normas hegemônicas de gênero que depositam sobre as mulheres o cuidado da família, essa função, que já é invisibilizada no geral, no caso de uma mulher com deficiência se torna invisível, promovendo a ideia de que uma pessoa com deficiência não cuida, é apenas cuidada.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Cuidada-e-cuidadora-ee44i7/a-a2742c1. • Episódio 7: Dona Maria (23/05/2020)

O episódio se passa em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Nele, ouvimos a pastora evangélica Dona Maria, que além de profetisa é também mãe e avó e uma líder em sua comunidade. Como afirma a antropóloga Réia Sílvia Pereira, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sua relação com Dona Maria ultrapassa os limites da pesquisa e se tornou muito profunda. Apesar de a pandemia ser o fio condutor do episódio, ele nos possibilita conexões com muitas outras dimensões do cotidiano de uma mulher negra e religiosa, que vive as incertezas e inseguranças sobre a chega- da de um vírus e da implementação das políticas de isolamento social. Acostumada a oferecer acolhimento espiritual e material para as pes- soas de sua comunidade, ela nos presenteia com uma oração que pede a proteção “aos sociólogos”, num discurso que demonstra compromisso ético e político com o seu tempo. Assim, como aponta Réia Sílvia Perei- ra, toda ação de Dona Maria se pauta na Ética do Cuidado, atribuição geralmente depositada nas mulheres, principalmente nas mulheres ne- gras, o que nos leva à conclusão de que o cuidado também é político.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Dona-Maria-eef955/a-a29co9m. • Episódio 8: Moçambique (30/05/2020)

Neste episódio Cleyton da Silva Guerreiro, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (UNICAMP), apresenta dois religiosos evangélicos de Maputo/Moçambique, local em que realiza a sua investigação sobre a atuação da Igreja Universal do Reino de Deus. Orlando Sérgio é eletricista e Maria Novela é pastora. Por meio das nar-

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rativas de ambos, assentadas no campo religioso, podemos compreen- der como a pandemia afetou as suas vidas. A vida em Maputo apresen- ta formas de sociabilidade caracterizadas pelo contato social, seja no transporte público lotado ou nos mercados a céu aberto com animada circulação de vendedores e clientes, seja nos templos evangélicos re- pletos de fiéis. Os cultos religiosos são também marcados pelo contato corporal, com muitos abraços e apertos de mão e horas de cânticos e orações. Para superar as políticas de isolamento social, os evangélicos moçambicanos recorreram a diferentes tecnologias sociais, como os cultos domésticos e o uso da internet e celulares, que os permitiram fazer conexões espirituais e sociais mesmo a distância. Assim, aprende- mos, no episódio, como esses grupos superaram as angústias e a ausên- cia do convívio social impostas nesse momento por meio de ações de ajuda mútua e intensificação dos afetos on-line em suas comunidades religiosas, garantindo a disciplina espiritual em tempos de pandemia.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Moambique-eep8es/a-a2bcd3d. • Episódio 9: Saúde Mental (23/07/2020)

Neste episódio ouvimos o psicólogo Edcarlos de Faria, que há tempos produz conhecimento na área de Saúde Mental e Redução de Danos, e que trabalha em um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e ou- tras Drogas (CAPS-AD) de Campinas/SP. Esses centros promovem uma forma de cuidado aos usuários de drogas e à população de rua que promove a liberdade e a autonomia em detrimento do encarceramento e da exclusão social. Entretanto, em um momento de sucateamento e desvalorização de todas as políticas de assistência social, mesmo em um contexto que antecede a pandemia, com a chegada do novo coro- navírus essa situação se intensificou, apesar dos atendimentos terem se mantido fruto do engajamento dos profissionais e das poucas parcerias que puderam estabelecer nesse momento tão difícil. Como podemos ouvir no episódio a partir da intervenção do antropólogo João Baliei- ro Bardy, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Campinas (UNICAMP), os cuidados ofere- cidos às populações de rua e a outras populações em situação de vulne- rabilidade, particularmente, mas não especificamente nesse CAPS-AD, dependem dos afetos previamente consolidados, exigindo a reinvenção

do cuidado em tempos de pandemia, principalmente por parte desses “incansáveis promotores de saúde”, como nomeia os trabalhadores des- se serviço, que tiveram que reinventar não apenas os seus atendimen- tos, mas toda a sua rotina pessoal e familiar.

Link do Episódio: https://anchor.fm/cienciassociaisecorona/episodes/Cin-

cias-Sociais-e-Coronavirus---Sade-mental-eh503v/a-a2p6418.

Como pudemos ver nesse texto, a série de Podcasts “Cientistas Sociais e o Coronavírus” possibilitou o acesso a vozes, durante a pandemia, antes muito circunscritas aos contextos de pesquisa, ensino ou extensão de determinadas antropólogas e antropólogos. Garantindo uma pluralidade de experiências, os diferentes episódios da série permitem a contextualização de como a pandemia impactou diferentes grupos sociais que vivenciam graus variados de opressão e vulnerabilidades. Além disso, por meio da escuta dessas vivências, podemos tecer paralelos com as nossas próprias experiências de saúde, inseguranças, angústias e sociabilidades durante a pandemia, ampliando a nossa própria compreensão da pandemia como uma crise sanitária mas também de intensificação de desigualda- des em um país tão marcado pelas clivagens de classe, raça, etnia, gênero, geração e outras. Como editor dessa série, pude me dedicar muitas horas aos muitos ar- quivos de áudio que me chegaram, muitas vezes com narrativas tensas e desorga- nizadas. Tive a oportunidade, em meio às lágrimas, de montá-las em uma linha que pudesse promover o diálogo e o aprendizado mútuo entre cientistas sociais e a sociedade como um todo. Escutando esses episódios quatro meses após a con- clusão da série, percebo que fui bem-sucedido, pois em cada narrativa tive novos aprendizados e outros questionamentos surgiram.

Felipe Bruno Martins Fernandes é Professor da Universidade Federal da Bahia e coordenador do GIRA: Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação.

BALANÇOS

No documento Cientistas Sociais e o Coronavírus (páginas 38-45)

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