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OS PRESSUPOSTOS DIALÓGICOS PARA ANÁLISE DO

No documento O gênero relise na esfera da moda (páginas 110-116)

3 OS JÁ-DITOS SOBRE A MODA: REENUNCIANDO VOZES

5.2 OS PRESSUPOSTOS DIALÓGICOS PARA ANÁLISE DO

Nesta seção, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos que balizam os procedimentos utilizados para concretizar esta pesquisa à luz da perspectiva bakhtiniana. Organizamos essa exposição, portanto, em três momentos, nos quais serão descritas as etapas de análise do objeto desta pesquisa – o gênero relise de moda. No primeiro, analisamos brevemente o conceito da dupla orientação da realidade do gênero em Medviédev (2012[1928]) para significar a importância do estudo da dimensão social e sua correlação com a dimensão verbal do gênero, conforme as discussões de Rodrigues (2001). Em seguida, procuramos demonstrar quais pressupostos de análise do enunciado ancoram nossa abordagem, ao que remontaremos a alguns aspectos da arquitetônica da enunciação como discutidos em Bakhtin[Volochínov] (2014[1929]), Volochínov (2012[1930]) e Bakhtin (2013[1979]), para, ao cabo, destacar os parâmetros de análise que foram ora emulados, ora adaptados, da ADD, corrente contemporânea de enfrentamento dos problemas da linguagem – dentre eles o dos gêneros do discurso – cunhada por importantes interlocutores do Círculo, cujas orientações se encontram nos estudos de Brait (2006, 2007, 2012, 2013), Faraco (2007), Rodrigues (2001) e Acosta-Pereira (2012, 2015).

No primeiro movimento de análise, aludimos a Medviédev (2012[1928]), para o qual, faltava um estudo sociológico que fosse construído a partir das particularidades do material, das formas e dos propósitos de cada campo da criação ideológica, pois estes possuíam não só uma linguagem própria, mas também métodos e leis específicas

de refração ideológica de sua constituição na realidade circundante. Segundo o autor, essa especificação das diferentes ideologias presentes nesses campos diversos não poderia ser feita em termos abstratos, mas “[...] a partir do ponto de vista das formas da sua realidade concreta e material, e, por outro lado, de suas significações sociais, que se realizam nas formas da comunicação concreta [...]” (MEDVIÉDEV (2012[1928], p. 54).

Ainda segundo a sua argumentação, um dos constituintes da dupla orientação dos gêneros do discurso na realidade é proveniente da exterioridade, o que o vincula às circunstâncias temporais, espaciais e ideológicas, em outras palavras, ao momento, ao lugar de produção e principalmente à esfera ideológica a que ele se filia, elementos que orientam o discurso e o constituem. Sobre esse aspecto, Brait (2012) explica que, dada a reflexão bakhtiniana acerca do signo ideológico e sua dupla dimensão constitutiva e inseparável (semiose e ideologia), a concepção ampla de texto como conjunto coerente de signos ideológicos, que percorre os escritos do Círculo, assinala um diferencial. Essa singularidade ocorre pois os textos – ao implicarem um movimento articulatório entre materialidade semiótica e fenômeno ideológico e por estarem inseridos no domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica (esfera da atividade humana), onde o caráter semiótico coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição –, para serem analisados sob um viés bakhtiniano, não podem ser desvinculados desse seu caráter semiótico-ideológico. A autora amplia, ao esclarecer que os textos, conforme postura filosófica e teórico-metodológica que toma signo ideológico como elemento seminal da linguagem, precisam ser “[...] entendidos como organizações coerentes, conjuntos em que a associação materialidade sígnica-ideologia funciona como princípio organizador e revelador do domínio dos signos da esfera ideológica, da produtividade na vida social.” (BRAIT, 2012, p. 13).

Levando-se em consideração também essa relação entre signo e ideologia, partimos de uma análise da dimensão social do gênero (RODRIGUES, 2001), que é a esfera da moda. Investigamos, assim, nesse primeiro movimento, a sua (da esfera da moda) natureza, sua constituição como campo ideológico de criação, seus valores e seu sistema ideológico a partir de alguns dos seus intérpretes de diferentes áreas do conhecimento. Entendemos que essas peculiaridades, em termos de características constitutivo-funcionais, serão fundamentais para a constituição do gênero relise, pois elas, segundo Medviédev (2012[1928]), reverberam na arquitetônica discursiva do gênero.

Em consonância com esse viés, mas num segundo movimento, está a discussão de Volochínov (2012[1930]), o qual, ao fazer referência

à análise da questão da forma literária, explica ter-se convencido de que qualquer aspecto da forma aparece como produto da interação verbal, assim:

Todos os problemas da forma podem ser vistos na relação com o material, neste caso com a relação a uma língua compreensível desde o ponto de vista artístico; a análise técnica deste modo se reduz a uma questão de recursos linguísticos mediante os quais se leva ao fim a tarefa sócio-artística da forma. Porém, a análise técnica se torna absurda caso não se leve em conta essa tarefa e não se assimile previamente seu sentido. (VOLOCHÍNOV, 2012[1930], p. 99).

Nesse sentido, podemos compreender que a análise do gênero só será coerente se levarmos em consideração a dimensão social não apenas da obra literária, mas de qualquer outro produto ideológico das esferas da atividade humana pois, ainda segundo o autor, “Todas elas são completamente sociológicas, ainda que sua estrutura, flutuante e complexa, se submeta a análises com grande dificuldade. […] O estético, ou mesmo o jurídico, ou o cognitivo, são tão somente uma variedade do social.” (VOLOCHÍNOV, 2012[1930], p. 73-74).

Dessa forma, para contemplar essa dimensão social da linguagem, propomos uma análise cujo enfoque ocorra por meio de uma abordagem enunciativa da linguagem, consoante ao que afirma Bakhtin (2013[1979], p. 265), ao revelar que “O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana é de enorme importância para quase todos os campos da linguística e da filologia.” Ademais, o autor continua explicando que qualquer trabalho de pesquisa com um material linguístico concreto deve operar com enunciados concretos, escritos ou orais (e, podemos incluir, de outra forma semiótica), que estão relacionados a diferentes campos da atividade humana pois é por meio deles que a língua tanto passa a integrar a vida, quanto é invadida por esta.

À luz dessa demonstração da relevância de uma investigação da linguagem a partir da enunciação, destacamos a necessidade de se analisar a natureza do enunciado em si e sua relação com o gênero do discurso que nos propomos a estudar de forma a nos distanciarmos do salientado formalismo e da consequente abstração que ele pressupõe, embora ela seja, como afirmou Bakhtin (2010)[1963]), legítima e

necessária a alguns aspectos da vida concreta do discurso. Em complemento a essa diretriz, convém salientar a conclusão de Bakhtin[Volochínov] (2014[1929]) no final do capítulo sobre a interação verbal. Nesse trecho, os autores discorrem sobre a comunicação verbal e destacam a importância do estudo da relação entre as interações concretas e as situações extralinguísticas, compreendendo-se não só a situação imediata, mas, por meio dela, o contexto social mais amplo. Assim, ao apresentarem um contraponto aos estudos da língua como sistema abstrato e como psiquismo individual dos falantes e, ao reafirmarem o seu (da língua) caráter de vida e evolução histórica na comunicação verbal, sugerem a seguinte abordagem metodológica para o estudo da língua:

Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. (BAKHTIN[VOLOCHÍNOV], 2014[1929], p. 128-129).

Essas três etapas estabelecem, grosso modo, uma sequência em relação à proposta de Medviédev (2012[1928]), pois, após analisar, conforme indicamos, as peculiaridades da esfera da moda, procedemos, primeiramente, a análise dos tipos de interação verbal e sua relação com as circunstâncias concretas de produção para, em seguida, analisarmos a natureza dessas enunciações e sua relação com os gêneros, sua finalidade, a situação de interação imediata e a sócio-histórica mais ampla. Além do que, é preciso compreender os sujeitos historicamente constituídos que os produzem e o auditório que configura sua recepção, além de precisar a situação que tais gêneros medeiam na realidade da criação ideológica da moda para, numa terceira etapa, proceder a análise da dimensão verbal (RODRIGUES, 2001) por meio da identificação das regularidades linguísticas do gênero em termos estilísticos, temáticos e composicionais. Por isso, também, analisamos como se configura a posição autoral, qual é a sua recepção e como toda essa ação interlocutiva reverbera na constituição do gênero.

No terceiro movimento de análise, nosso enfoque recai sobre as relações dialógicas e tudo o que esse processo significa, como explicamos na seção 2.3, no entanto, mesmo sabendo que, em nossa abordagem teórico-metodológica, o objeto investigado é o discurso, e que o próprio Bakhtin confirmou serem elas claramente extralinguísticas, convém salientar que elas não podem ser separadas da língua como fenômeno integral concreto. Por isso, remontamos à explicação de Brait (2013) de que, na ADD, pode-se lançar mão das categorias e procedimentos da Linguística de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar relações sintáticas, reconhecer, identificar e interpretar marcas e articulações enunciativas, as quais não só particularizam o discurso, mas também o seu (do discurso) caráter heterogêneo de constituição, bem como o dos sujeitos, envolvidos na interlocução. O objetivo, de acordo com a pesquisadora, é ultrapassar a simples “materialidade linguística”, encontrando, em relação ao gênero, os gêneros que se-lhe articulam, a tradição de atividades em que ele se insere, seu modo discursivo de se constituir e a sua forma de participar das esferas de produção, circulação e recepção, a fim de delimitar sua identidade na relação com outros discursos e sujeitos. (BRAIT, 2013, p. 88).

Em busca dessa identidade do gênero nas relações dialógicas, ressaltamos, outrossim, a afirmação da linguista sobre o fato de a ADD encontrar “no sujeito histórico, social, múltiplo, o centro de suas preocupações, entendendo a linguagem como constitutiva desse sujeito.” (BRAIT, 2013, p. 85). A autora, subsequentemente, destaca vários aspectos que distinguem a abordagem metodológica em questão, dentre os quais enfocamos:

a) o reconhecimento da multiplicidade de discursos que constituem um texto ou um conjunto de textos e que se modificam, alteram ou subvertem suas relações, por força da mudança de esfera de circulação; […] c) o pressuposto teórico- metodológico de que as relações dialógicas se estabelecem a partir de um ponto de vista assumido por um sujeito; d) as consequências teórico-metodológicas de que as relações dialógicas não são dadas, não estando, portanto, jamais prontas e acabadas num determinada objeto de pesquisa, mas sempre estabelecidas a partir de um ponto de vista; e) o papel das linguagens e dos sujeitos na construção dos sentidos; f) a concepção de texto como assinatura de um sujeito individual ou coletivo, que mobiliza

discursos históricos, sociais, e culturais para constituí-lo e constituir-se. (BRAIT, 2013, p. 85).

Nesse processo, portanto, sintetizamos esses três movimentos por meio das contribuições teórico-metodológicas desenvolvidas nos trabalhos de Rodrigues (2001) e Acosta-Pereira (2012), as quais adaptamos a este trabalho, conforme demonstra a Figura 3.

Em síntese, nossa análise parte da dimensão social/externa do gênero constituída pela esfera da moda para investigar quais amplitudes histórico-culturais, ideológicas e valorativas encontram-se em confluência e como essa movência contribui para a materialidade do gênero, levando-se em consideração as condições de produção, circulação e recepção do relise para, na sequência, investigar a dimensão verbal-visual/interna do gênero com vistas a identificar suas feições por meio das três instâncias (conteúdo temático, estilo e composição), além dos aspectos linguístico-textuais que são agenciados em função dessas feições.

Isso posto, partimos agora para a apresentação do universo de pesquisa e do objeto de estudo.

Figura 3: Dimensões de análise dos textos-enunciados

Dimensão Social Dimensão Verbal-visual

Condições de Produção

Esfera, autoria, horizonte apreciativo- ideológico, valoração

Aspectos enunciativo-discursivos

Feições do gênero (o que é dizível- tema), estratégias estilísticas para dizer (estilo) e formas relativamente

estáveis de acabamento, de orquestração do dizer (composição)

Condições de Circulação

Esfera, interlocutor, horizonte apreciativo-ideológico do outro, meios

de circulação, espaços de circulação e tempo de circulação

Aspectos linguístico-textuais

Que recursos textuais da língua são agenciados à luz das feições do

gênero?

Condições de Recepção

Modos de publicação, situação imediata de circulação

Aspectos visuais

Como os elementos visuais se relacionam aos verbais para a

construção de sentidos? Fonte: Acosta-Pereira (2014, p. 13).

5.3 UNIVERSO DE PESQUISA, OBJETO DE ESTUDO E

No documento O gênero relise na esfera da moda (páginas 110-116)