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OS PROCESSOS DE FICCIONALIZAÇÃO NA ARTE CONTEMPORÂNEA

E SOBRE OS PROCESSOS DE FICCIONALIZAÇÃO NA ARTE

OS PROCESSOS DE FICCIONALIZAÇÃO NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Procurar as razões dos artistas se ocuparem em criar realidades levou- me a Investigar os processos de ficcionalização na arte contemporânea. No meu entender esta necessidade de criar realidades estaria, entre outras razões, ligada à necessidade de estabelecer diálogo com o público. Diálogo aparentemente pautado na relação com as histórias contadas que, na sua base, está estabelecendo um outro diálogo mais profícuo, ou seja, aquele entre o criador em processo de criar e seu público. Podemos observar ainda, nos artistas que analisaremos, um grande investimento em tornar visível seus processos de constituição de obras.

A atuação meta-lingüística não impede a fruição em um primeiro nível – o da ficção – ao contrário, estabelece uma relação de surpreendente eficácia (como poderemos observar) ao mesmo tempo em que dá a ver, num segundo nível, os processos de constituição destas obras. Retomamos aqui neste momento a questão colocada no barroco francês, quando indicamos uma curiosa aproximação com a produção contemporânea. Contrário a este período histórico, estamos longe da possibilidade de tomarmos como modelos de humanidade aqueles personagens míticos, bíblicos ou heróicos. A valorização da ficção para salvar o princípio da imitação e da conseqüente identificação do espectador com a obra e seu autor na realidade atual, vai ocorrer através da verdade e da verossimilhança em obras de arte cujo desvio fictício é fundado na classique, rapportaient les uns aux autres artes visuels et ficitions verbales.”

qualidade da observação do artista através de sua narrativa não heróica e muito próxima do espectador. Nossos anseios e heróis são diferentes dos anseios e heróis do barroco francês. Logo, é necessário que as ficções estabelecidas para resgatar o princípio da mimese sejam passíveis de identificação imediata com o público atual.

Neste texto introduzirei a discussão sobre a ficção e o documentário na arte contemporânea a partir de exemplos de artistas como Sophie Calle, Alain Bublex, Vera Chaves Barcelos e do escritor Valêncio Xavier. A análise destes exemplos permitirá colocar algumas questões que servirão como base para discutir e apresentar algum dos meus trabalhos, principalmente o trabalho intitulado Saudade, que transita conceitualmente entre estes dois termos.

Como decorrência natural do tema documentário é necessário introduzir também o do documento. A questão do que é documento, seu estatuto dentro da arte contemporânea, seus usos e intensidade será desdobrado ao longo das análises após o que retomaremos.

Estabelecer uma discussão sobre documentário e ficção pode parecer, a princípio, inteiramente gratuita no contexto de um projeto em artes visuais. A verdade é que não se discute o caráter ficcional ou documental de uma obra de arte. Quando se está frente a um quadro, gravura, escultura, instalação, enfim, qualquer manifestação artística limitada ao campo das artes visuais nunca se discute se esta obra é uma obra de ficção ou um documentário.

Na realidade, nunca se discute o estatuto de verdade desta obra. As obras de artes plásticas são. Pura e simplesmente são. Jamais se pensou em

dizer que esta ou aquela obra é falsa, no sentido de que ela inventa uma outra realidade além da própria que vivemos. Complexa e talvez impertinente discussão. Talvez inoportuna se considerarmos que qualquer obra de arte, de qualquer período da história, independente de seu valor artístico intrínseco ou extrínseco - sua raridade por exemplo – lhe garantem um lugar na história da arte como um documento. Logo, enquanto documentos, as obras de arte são verdadeiras e não passíveis de discussão59.

A questão da ficção esta basicamente restrita a literatura e ao cinema, tanto o de ficção quanto o documentário. Não é muito pertinente discutir o caráter fictício de uma pintura (ou de qualquer obra de artes plásticas), conforme já escrevi, assim como não se firma uma discussão sobre o caráter documental ou de documentário de uma manifestação plástica.

O desenvolvimento deste segmento prende-se à necessidade de esclarecer como se dá o processo de criação de universos ficcionais na produção plástica contemporânea. Inicialmente percebe-se que este universo ficcional é constituído por informações oriundas de documentos cuidadosamente organizados e apresentados ao público como sendo “verdadeiros”.

59

Algumas discussões importantes em artes visuais no século XX dizem respeito às produções que estariam mais próximas da realidade e outras que seriam “alienadas”, em face de um certo tipo de

(14) Vera Chaves Barcellos. “Visitando Genet”, 2000. Instalação composta de quatro momentos: Galeria de Retratos, Reservoir, Cadernos de Hudinilson, Visita à Prisão. Composta de diversos elementos e com medidas variáveis. Apresentada no Santander Cultural, 2001.

realidade. Também neste caso, talvez, poderíamos dizer que são discussões sobre o estatudo de verdade dessas obras.

Análise de casos de constituição de ficções a partir de documentos

O Caso Vera Chaves Barcellos60

“Visitando Genet” (14) foi apresentada na mostra coletiva “Sem Fronteiras”61

. Até então inédita no Brasil a instalação de Vera Chaves Barcellos consistia em diversos elementos dispostos em quatro salas. A distribuição por salas é um tanto vaga, não correspondendo exatamente ao que podemos ver passando pela mostra62. Assim, prefiro o termo momentos que, a meu ver, corresponde mais exatamente ao espírito da obra, ou seja, partes concomitantes de um mesmo discurso. Nestes momentos Vera Chaves Barcellos desdobra suas leituras da vida e da obra de Jean Genet, promovendo uma verdadeira mise-en-scène de elementos e personagens dispersos nos romances do escritor. Curioso observar que a artista escolheu um escritor cuja obra é inteiramente permeada pela presença impositiva de sua própria biografia: quase não podemos ler Genet, apesar da excelência de sua prosa e do requinte de sua estrutura literária, sem levarmos em conta os elementos biográficos.

Assim é que a artista dispõe no primeiro momento, intitulado Galeria de

Retratos, retratos de homens, possivelmente de ladrões, cercados de flores,

numa clara referência ao romance “Notre-Dame-de-Fleurs” e ainda uma citação

60

Porto Alegre, 1936. Divide seu tempo entre Barcelona e Porto Alegre.

à obra de Andy Warhol que retrata os criminosos mais famosos dos EUA. No momento seguinte, intitulado Reservoir, podemos esquadrinhar as vitrines com objetos, plenos de poesia e memórias e escutar a prosa suntuosa e rica em detalhes de “Pompas Fúnebres” e lembrar ainda de Christiam Boltanski e suas vitrines.

O terceiro momento, Cadernos de Hudnilson, é o dos cadernos do artista paulistano Hudnilson Jr., projetados enquanto imagens, num processo de taxionomia que nos lembra a imensa Mnemosyne de Abby Warburg63. Neste momento a obra propõe uma leitura um tanto complexa, pois devemos ler não somente a obra de Hudnilson Jr., mas também a de Genet, enquanto projeção idealizada na de Hudnilson. Isto é, Vera Chaves Barcellos promove um verdadeira “mise-en-abîme” de informações que devemos ler sequenciadamente: taxionomia, homoerotismo, hudnilson, genet, vera, genet, hudnilsom, homoerotismo, taxionomia. A homenagem duplicada aos dois artistas admirados se espelha uma na outra, esclarecendo sobre a temática humanista e sobre o conteúdo sociológico das obras de ambos. Necessário informar que este momento também é dedicado ao ato de colecionar, mais especificamente ao colecionismo compulsivo, que se desdobra na infindável

62 Angélica de Moraes, no texto de apresentação da mostra intitulado “O Passo Seguinte”, utiliza a expressão “módulos sucessivos”, o que enfatiza a idéia de obra constituída a partir de fragmentos sequenciados.

63 Até onde pude me informar, a bibliografia sobre Aby Warburg, em português, é bastante restrita. Sobre sua biblioteca e seus sistemas de classificação, e também sobre seu escrito intitulado Mnemosyne, remeto para o texto de Salvatore Settis, intitulado “Warburg continuatus – descrição de uma biblioteca” publicado em “O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente” volume organizado por Marc Baratin e Christian Jacob, (RJ: Editora da UFRJ, 2000).

enumeração de nomes de homens que podemos ouvir enquanto vemos as imagens.

Chegamos finalmente no quarto momento – Visita à Prisão – no qual assistimos ao vídeo com um ator, uma máscara e um texto (Notre-Dame-des-

Fleurs). Momento de fingimento da imagem mesma de Genet, imagem

construída com recursos manuais (cabeça modelada em argila) e posta em movimento com recursos tecnológicos de computação gráfica, não devemos esquecer que o sentido de fingir, como no verso de Giacomo Leopardi que diz

Io nel pensier me fingo64, está duplicado em mentir, sentido usual do verbo no italiano, e também no português sendo, na origem latina do termo o de plasmar. Importante aqui o termo plasmar, pois nele está contida a significação mais precisa do termo ficção, aquele de sua origem, que significa exatamente dar vida a algo.

O discurso de Vera Chaves Barcelos está desdobrado em um grande número de possibilidades de leituras: ilustração da obra de Genet; universo de referências plásticas (Warhol, Boltanski, Hudinilson); na mentira literária da obra de Genet, ao mesmo tempo biografia e ficção; na análise dos conteúdos morais da obra de Genet etc.

Mas retenho aqui a constituição de um dispositivo ficcional, um híbrido composto por texto, imagens e sons, para estabelecer o retrato de um homem tornado personagem. As relações entre personagens reais – Genet e Hudnilson Jr. – e elementos documentais – fotos, objetos, obra de Hudnilson – estabelece

algo que poderíamos chamar de uma meta-ficção historiográfica, de acordo com a definição de Linda Hutcheon. A relação estabelecida entre a farta documentação levantada por Vera Chaves Barcellos e sua apresentação, mais do que uma ficção, nos mostra de maneira evidente seu modo de atuar. Partindo de uma base documental, a artista estabelece um percurso narrativo descontínuo, oferecendo ao público elementos dispersos de uma biografia misturando realidade e fantasia (como procede também em Les Revers du

Rêveur). Mas além deste percurso narrativo o que podemos observar, sendo

atentos, é uma descrição, através de imagens e textos, de sua maneira de criar. As informações que alimentam a artista, que fomentam seu modo de atuar, que finalmente a levam a criar e estabelecer, através da criação seu diálogo com seu público estão abertamente expostas. O percurso estabelecido – imagens apropriadas e plotadas, objetos colecionados, procedimentos audiovisuais e, por fim, a vídeo-animação – mostra a trajetória da artista no universo da criação contemporânea, seu processos investigativos, seu diálogo com outros criadores contemporâneos e, principalmente, seu modo de pensar suas obras. É claro que esta trajetória se faz a partir de uma base de documentos, ou seja, peças de demonstração previamente existentes que trazem em si uma carga que não pode ser neglicenciada.

Isto é especialmente notável ao observarmos que, em uma das vitrines do Reservoir, podemos ver um exemplar antigo de “Em busca do tempo

perdido”, de Marcel Proust. A referência a Proust ecoa tanto no espírito de

64 “No pensar eu me finjo”, conforme tradução de Haroldo de Campos em Giacomo Leopardi - Poesia e

recuperação do tempo quanto na estrutura mesmo da obra de Genet pois, conforme Alain Buisine, Genet trabalha (como Proust) “(...) sempre conforme um modelo vegetal, por ramificação e por enxerto. Com efeito, tanto em Genet quanto em Proust, o floral, longe de constituir uma temática entre outras, vale como paradigma fundador, ao mesmo tempo fisiológico, etológico, estético e estilístico.” 65

É esta construção seguindo um modelo vegetal de ramificações, pela articulação de informações documentais e um processo narrativo ficcional, que Vera Chaves Barcellos cria e demonstra sua maestria enquanto artista.

Prosa, Nova Aguillar, 1996.

65 “(...) toujours selon un modèle végétal, par ramification et par bouturage. En effet chez Genet comme

chez Proust, le floral, loin de constituer une thématique parmi d’autres, vaut comme paradigme fondateur, tout à fois physiologique, éthologique, esthétique et stylistique.” (tradução minha). Proust et Genet, floralies en tous genres. In Le siècle de Proust de la Belle Époque à l‟an 2000. Magazine littéraire,

(15) Sophie Calle. “Suite Veneziana”, 1980-1996. 56 fotografias preto e branco, 3 mapas, 22 textos, 16,8 x 23,2 cm (fotos) e 30 x 21 cm (textos).

(16) Sophie Calle. “Chagement d‟adresse”. Obra composta por fotografias e textos, vista na Galeria Emmanuel Perrotin, Paris, em outubro de 2001, sem medidas.

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