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Os professores formados na Escola Normal Catharinense: salvadores da pátria?

HORÁRIO GERAL DA ESCOLA NORMAL – 1911 Primeiro ano

3.3 Os professores formados na Escola Normal Catharinense: salvadores da pátria?

Como a reforma do ensino estivesse, em síntese, na reforma da Escola Normal, nesse viveiro de professores primários, viveiro desses modestos servidores que iriam, como fator máximo, traçar o mais positivo combate à hydra do analfabetismo, a reforma naturalmente começou por ela, que absorvia, já então, perto de 1/5 do despedido com a instrução pública. Orestes Guimarães - Inspetor Geral do Ensino (GUIMARÃES apud REGIS, 1914, p. 124).

Uma grande escola forma um grande professor. Aquele que passa por uma escola de excelência se torna um professor de excelência.

Orestes Guimarães parece se empenhar em colocar a Escola Normal Catharinense em um lugar socialmente válido: um “viveiro” para formar os “sacerdotes da religião do saber”, os “guardiões da República”, os “bandeirantes da instrução”, os “arquitetos do porvir”, os “alicerces da pátria”, ou qualquer outro predicado que designasse o professor primário (TEIVE, 2008, p. 147).

Neste sentido, “as Escolas Normais são idealizadas e edificadas como verdadeiros templos” (SILVA, 2004, p. 131), sendo expostos à visibilidade social e desejado pela comunidade. Ser um ou uma

normalista formado neste espaço deveria traduzir a mais alta honra na luta pela educação do povo.

A criação de vários instrumentos, legais e práticos, que cumpriam a finalidade de inculcar culturalmente os preceitos republicanos, foram implantados e implementados pela reforma, o que já ocorria em São Paulo e em vários lugares no mundo ocidental. De acordo com Chervel (1990, p. 184), o sistema escolar possui o papel de “formar não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, modificar a cultura da sociedade global”.

Desta forma, nossa proposta aqui é levantar os principais instrumentos utilizados por Orestes Guimarães para a construção da imagem de uma escola de excelência e de professores salvadores da educação brasileira, com o propósito de refletir um pouco mais as representações sociais que se formaram da formação que era oferecida ao candidato a professor do ensino primário. Também, discutem-se as formas de profissionalização do magistério no cenário da reforma.

Um dos primeiros instrumentos de instauração da nova ordem na reforma da Escola Normal foi a normatização com relação à admissão de alunos. Ficou determinado por meio do Decreto nº 572/1911 que todos os interessados em frequentar a Escola Normal deveriam se subter ao “exame de suficiência ou de admissão, como é praticado em todas as escolas normais, considerando que o candidato à matrícula numa Escola Normal deve provar que leva habilitação suficiente para acompanhar o ensino normal” (GUIMARÃES apud REGIS, 1914, p. 124).

Orestes Guimarães (GUIMARÃES apud REGIS, 1914, p. 124) acreditava que os alunos que saíssem da escola primária e entravam para a Escola Normal diretamente, como ocorria antes da reforma, não estavam aptos a acompanhar o ensino desta escola. Neste sentido, se estabelece um rígido programa de admissão que era composto de prova escrita, oral e prática (SANTA CATARINA, 1911c). Com relação aos conhecimentos matemáticos que deveriam constar da prova escrita, constam apenas os conteúdos básicos de aritmética, mas podem assinalar que a escola formadora de professores pretendia ir além dos conteúdos mínimos do ensino primário:

Arithmetica – Resolver quatro problemas faceis nos quaes entrem, simultaneamente, as quatro operações sobre inteiros, fracções ordinarias e decimaes. Conhecer praticamente os caracteres da divisibilidade. Achar praticamente o maximo commum divisor e o minimo multiplo commum,

confórme os diversos processos. Decompôr os numeros em seus factores primos. Reduzir fracções ao mesmo denominador, simplifical-as e extrahir os inteiros. Tudo praticamente (SANTA CATARINA, 1911c, p. 8).

Segundo Teive (2010, p. 4), o exame de admissão para a Escola Normal foi incorporado à cultura escolar da Escola Normal Catharinense, sendo definido para além de um simples rito de passagem, mas como uma “linha divisória, uma separação entre os que conseguiam ‘passar’ e os que ‘não passavam’, instituindo ‘uma diferença duradoura’ entre ambos”.

Um instrumento de entrada na Escola Normal requer, também, um instrumento de saída, ou seja, para aqueles que conseguiam permanecer deveria haver uma saída honrosa e pública: a formatura. Teive (2010) informa que entrar para esta escola não significava que iria sair, pois o sistema de avaliação (também modificado pela reforma) consistia em um rigoroso processo de sabatinas e exames, onde os índices de promoção eram baixos.

No entanto, para aqueles que concluíam o curso estava reservado um momento público que traduziria o significado social de ser professor do ensino primário na república. A formatura “consubstanciado nos discursos das autoridades, paraninfos e oradores, atribuía-lhes uma competência, [...] instituindo e legitimando um modo particular de ser professor/a, socialmente reconhecido” (TEIVE, 2008, p. 143-144).

A importância e a força que os rituais de formatura tinham para as normalistas e para a sociedade florianopolitana em geral pode ser atestado nas notas publicadas nos principais jornais do Estado, na presença do mais alto escalão da administração pública na solenidade de formatura e, sobretudo, pelo fato das normalistas [entrevistadas] terem guardado os diplomas recebidos nesses eventos e até mesmo, no caso de Dona Passinha, o convite de formatura, guardado durante 86 anos (TEIVE, 2008, p. 145).

Entre honras e dificuldades passadas durante o curso, os normalistas, ao serem admitidos como alunos da Escola Normal, também deveriam ter uma conduta irrepreensível como a do professor. De acordo com os pressupostos da pedagogia moderna, defendida por

Orestes Guimarães, o professor “precisava converter-se em modelo, exemplo a ser seguido pelos/as seus alunos e alunas, exemplo de moral e de bons costumes” (TEIVE, 2008, p. 57).

Para tanto, consta do Regulamento de Instrução Pública de 1911 que uma das atribuições do professor do ensino primário estadual seria “dar exemplo de moralidade e de polidez em seus atos, tanto na escola como fora dela” (SANTA CATARINA, 1911g, p. 25).

Teive (2008, p. 180) relata que uma normalista entrevistada por ela chamada Dona Passinha:

[...] aprendeu na escola normal que deveria ser modelo para os alunos. Esta exigência, apesar de ser seguida à risca ao longo de sua vida profissional, tornava a professora, segundo a sua própria avaliação, “muito cativa”, “não podia ser...não sei...não podia agir como...não podia ter namorado, não podia ir ao baile. Tinha que dar exemplo.

A mesma autora citada anteriormente chama a atenção para o controle exacerbado na vida dos professores normalistas exercida pelo governo e pela sociedade catarinense que se apropriou desta identidade social controladora. Segundo ela, tudo era controlado, sendo “comum as alunas encontrarem funcionários da escola perambulando pelo centro da cidade, nos horários de entrada e de saída da escola normal, vigiando, fiscalizando as suas condutas, lembrando-as, enfim, do que eram e, sobretudo, do que deveriam ser” (TEIVE, 2010, p. 12).

De forma ainda mais controladora, em 1917, a Assembleia Legislativa aprova a lei que proíbe as normalistas que pretendiam lecionar no ensino primário de se casarem. Tal lei foi repudiada por Orestes Guimarães que lutou pela revogação (TEIVE, 2010).

Para Silva (2004, p. 187):

O forte aparato regulador das atitudes do professorado, expresso em regulamentos e outros dispositivos legais e sociais, revela que, para além da regulamentação da profissão e da carreira, os professores tinham a própria vida regulada, o que, de certa forma, provoca uma espécie de fusão entre o “eu pessoal” e o “eu profissional”. Mas, apesar de corresponderem a muitas das exigências – seja por concordância, seja pela falta de espaço

para a discordância -, resistiam a outras, através de estratégias particulares ou coletivas (como as associações) e participaram, cada um a seu modo, da construção desta carreira que, certamente, não foi organizada gratuitamente pelos estados.

Para a escola formadora dos mestres, o reformador estabeleceu um rigoroso concurso para aqueles que queriam se candidatar a professor, contendo prova escrita, prova oral e prova pedagógica nos termos do Regulamento da Escola Normal, conforme figura nº 4:

Figura 4 - Excerto do Regulamento da Escola Normal Catarinense. Aprovado e mandado observar pelo Decreto n. 593 de 30 de maio de 1911, p. 31.

Fonte: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina

O conteúdo do concurso deveria ir além do ler, escrever e das quatro operações, pois segundo o próprio Orestes (apud COSTA, 1912,p. 58):

Nesse exame exige-se o conhecimento da língua vernácula até princípios de análise lexicológica; aritmética até frações decimais, sua redução ao mesmo denominador e extração de inteiros, decomposição de fatores primos, etc; geografia até ideia geral sobre a terra, familiaridade com os mapas da Europa e América e conhecimento da geografia do Brasil e especialmente do Estado; desenho, noções elementares, figuras geométricas, etc.

Segundo Teive (2010, p. 4), fazer concurso de ingresso para professores e alunos da Escola Normal parecia natural para a sociedade da época, pois tratava-se de “uma instituição que passara a ser considerada ‘o coração do Estado’ e a ter como função precípua formar os ‘soldados de primeira linha’ para a batalha contra o analfabetismo”.

No estado de São Paulo há registros de “dispositivos formais” (CHARTIER, 1991, p.186) de construção de uma imagem imaculada para a escola de formadores. De acordo com Silva (2006, p. 184), houve a “exigência de ‘atestado de moralidade’ (ou similar como atestado de bons costumes) ou ter ‘bom comportamento moral e civil’ para requerer matrícula na escola normal”. Também, constava de documentos a “previsão de pena de demissão quando o professor ‘tiver mau procedimento moral’” (SILVA, 2006. p. 185), assim como “suspensão para professores que, entre outros motivos, dessem ‘maus exemplos’ ou inoculassem ‘maus princípios no animo dos alunos’; àqueles que entre os alunos fomentassem imoralidades ou tivessem comportamento contrário aos bons costumes”.

Com relação ao levantado até aqui, o sentido dado à prática de ser professor primário no contexto da Reforma Orestes Guimarães parece estar relacionado à instituição de rigorosas normas, no entanto, cabe pensar que as representações de normalista ou da Escola Normal não se estabeleceram em uma relação linear e óbvia diante dos discursos. Há de se considerar que os “dispositivos formais — textuais ou materiais — inscrevem em suas próprias estruturas as expectativas e as competências do público a que visam, organizando-se, portanto a partir de uma representação da diferenciação social” (CHARTIER, 1991, p. 186).

Com a prática dos reformadores catarinenses em aplicar “formas institucionalizadas e objetivadas” (CHARTIER, 1991, p. 183) de representações do professor, buscava-se “fazer conhecer uma identidade, a exibir uma maneira própria de ser no mundo”. Nesta relação, a articulação entre o discurso e a prática passa a ter valor à medida que se leva em consideração a “maneira como indivíduos e os grupos se percebem e são percebidos”.

De forma significativa, também é possível identificar neste momento histórico pelo qual a Escola Normal Catharinense passou, que a intervenção do Estado no remodelamento de toda a estrutura, com vistas a dar forma de uma escola profissional, provoca “uma homogeneização, bem como uma unificação e uma hierarquização à escala nacional [...]: é o enquadramento estatal que institui os professores como corpo profissional” (NÓVOA, 1995, p. 17).

Quanto ao estabelecimento de uma seleção para o ingresso no magistério publico, Julia (2001, p. 30) lembra que uma das etapas de profissionalização dos professores foi a superação de uma seleção livre de condições, sem critérios, que reinava principalmente nas escolas ligadas à Igreja. Os exames e concursos introduzem “uma visibilidade que repousa nas provas escritas e orais codificados; o exame ou concurso definem, tanto na forma das provas como nos conteúdos dos saberes propostos aos candidatos, a base mínima de uma cultura profissional a possuir”.

4 O CURRÍCULO DA ESCOLA NORMAL CATHARINENSE