• Nenhum resultado encontrado

3. No mosaico de Veríssimo

3.2. Os recursos cômicos em Ri, Gervásio

Na crônica Ri, Gervásio, o principal recurso para se instaurar a comicidade é o exagero cômico. E, para ser cômico, o exagero necessita revelar um defeito (ou, no caso da crônica, vários), de tal maneira que, “se este não existe, já não se enquadra no domínio da comicidade. É possível demonstrá-lo através do exame de três formas fundamentais do exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco”. (PROPP, 1992, p.88).

Na crônica, a comicidade ocorre por meio da sucessão de infortúnios na vida da personagem protagonista, os quais, ampliados, contrastam com o real, destacando-se e, assim, tornando-se cômicos. A situação que chamamos de incongruente está no fato de a personagem rir (pois seu trabalho a obriga), quando, na verdade, não tem nenhum motivo para isso.

Predominantemente, a figura de linguagem que exerce a função de exagerar é a hipérbole, que consiste em dar ênfase a um fato ou objeto, atribuindo a ele maior expressividade e significância.

Propp considera a hipérbole como uma variedade da caricatura, pois enquanto esta exagera um pormenor, aquela amplia o todo, como ocorre com a personagem da crônica:

Gervásio não estava com problemas em casa porque não tinha mais casa. Fora destruída num incêndio, junto com todos os seus bens, inclusive a mãe de 80 anos [...]. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).

Um dos consensos entre os teóricos do riso se refere à potencialidade cômica da hipérbole. O exercício de aumentar extraordinariamente as dimensões dos elementos ou das situações (no caso da crônica), impressionando o espectador pela estranheza, constitui um dos procedimentos mais tradicionais da comédia ou de qualquer obra que se vale da comicidade.

O engrandecimento de proporções, característica da hipérbole, pode ser transposto: à sátira visando à degradação; à paródia, tornando perceptível a diferença em relação ao “modelo”; à ironia, que a utiliza, freqüentemente, como um processo de caracterização moral de personagens, ou mesmo, com um propósito exclusivamente cômico, gerando o riso pelo contraste entre a dimensão normal do objeto ou da situação, (como é o caso da crônica), e a sua ampliação hiperbólica. Assim, mesmo restrita ao cômico, a hipérbole intensifica e apresenta todo o vigor e expressividade que a palavra busca comportar.

O enredo inicia-se quando o produtor da claque de humor, a que Gervásio pertencia, nota que havia algo diferente nas risadas, pois elas não eram mais contagiantes como as de outrora. O assistente vai verificar se o quadro de funcionários era o mesmo e, num primeiro momento, nota que eram os mesmos de sempre: “Gente aposentada atrás de um dinheiro extra”. (VERÍSSIMO, 1987, p.51). Pode-se reconhecer nessa frase uma idéia camuflada: o desprezo que envolve a atividade do humorista, uma vez que se trata de um emprego informal, sem importância, de irrelevante significação social, uma atividade extra, para quem precisa de dinheiro e que a exerce simplesmente por falta de opção. Nota-se o contraste entre a vida difícil dessas personagens e o riso (forçado), pois, apesar de não terem motivos para regozijar-se, eram obrigadas a rir, reiterando, desse modo, a ambivalência do riso, através de sua imposição a pessoas que não tinham nenhuma razão para rir.

Na seqüência, é constatada a falta de Gervásio, um velho funcionário que, segundo Amelita, tinha uma excelente risada. Amelita era a funcionária mais antiga da claque e demonstrava conhecimento de causa: “Tinha uma grande risada [...] Uma das melhores que já ouvi”. (VERÍSSIMO, 1987, p.52). Ela acreditava tanto no riso aberto e contagiante de Gervásio que sente prazer em detalhar (teorizar) seu riso:

- Ele ria por baixo – explicou - Uma boa claque ri em três níveis. O baixo, o médio e o alto. O riso baixo é o mais importante. É o que sustenta os outros dois. Sem um bom baixo a claque perde consistência. Perde ritmo. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).

Desse modo, todos se convencem da importância de Gervásio e mandam chamá-lo a qualquer custo; pois precisavam dele para dar consistência à claque de humor, já que era ele que proporcionava a harmonia ao grupo (com seu riso baixo) e, assim, garantia o sucesso da “instituição do riso”.

No entanto, a vida pessoal de Gervásio se encontrava repleta de problemas, o que o tinha levado a perder o ânimo e o entusiasmo:

Gervásio não estava com problemas em casa porque não tinha mais casa. Fora destruída em um incêndio, junto com todos os seus bens, inclusive a mãe de 80 anos. A mulher de Gervásio fugira do incêndio para a casa do vizinho, pelo qual desenvolveu uma paixão súbita e ardente que nem os bombeiros – mesmo que tivessem chegado a tempo – conseguiriam apagar. A filha mais velha de Gervásio casara com um estivador inativo que, para não perder a forma, jogava a filha mais velha de Gervásio como um fardo para cima do telhado e a pegava na volta, às vezes. O filho de Gervásio se envolvera com traficantes de tóxico e estava jurado de morte por três delegacias. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).

A sucessão de acontecimentos trágicos na vida da personagem torna-se risível pela arte do exagero, expresso comicamente pela hipérbole. Há, no entanto, a inserção de elementos trágicos, que não anulam os contornos cômicos e hiperbólicos, visto que realçam somente os aspectos mais negativos da vida da personagem, compondo um retrato de vida inverossímil, se considerarmos o encadeamento e a simultaneidade de “desgraças” que atingem a personagem.

Não se pode negar, com isso, uma dialética entre o trágico e o cômico, uma vez que constatamos ser possível rir daquilo que é trágico. Essa dialética é responsável pela origem do gênero tragicômico, modalidade em que se misturam

elementos trágicos e cômicos, e que, originalmente, significava a mistura do real com o imaginário.

Por conta da dimensão trágica, a consciência e a emotividade, que fazem o elo com a pungente realidade da personagem, ficam amortecidas por algum tempo, o que acentua a tragicidade do excerto:

- Ânimo, rapaz. O teu valor foi reconhecido. A produção quer você de volta no programa de qualquer jeito.

Gervásio estava com o olhar parado. Não dizia nada.

- A claque decaiu muito sem você. Você precisa voltar, Gervásio. Gervásio parecia não estar ouvindo. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).

Há, porém, a retomada de consciência quando percebe a dimensão da gravidade dos fatos:

- Você precisa voltar a rir, Gervásio.

Gervásio começou a chorar. (VERÍSSIMO, 1987, p.52).

Rir e chorar são ações que revelam a ambivalência do riso e o caráter antitético de que se vale o cronista para desvelar as duas faces de uma mesma realidade. Gervásio precisava voltar a rir em virtude do trabalho, de uma necessidade, como algo imposto, quando sua única vontade – na vida - era chorar. A postura da personagem (rir e chorar) mostra a sua consciência dos fatos, mas revela, principalmente sua impotência diante da sucessão de eventos trágicos que a atingem.

É válido - porém difícil – visualizarmos como se dá essa conjunção do cômico e do trágico e, sobretudo, o ponto em que se encontra um domínio e outro, para que se perceba como são tênues seus limites. Para Propp (1996) e Bergson (2004), o riso é manifestação da inteligência, uma vez que quando se expressa emoção, se anula o riso. Quando, então, numa primeira leitura, um riso lúdico e prazeroso é suscitado, a inteligência é acionada, sem, portanto, manter qualquer vínculo sensitivo ou afetivo com o objeto do riso (aqui, a vida de Gervásio), já que é preciso tão somente realizar uma operação mental, a fim de decodificar o discurso cômico. Mas, justamente quando o leitor se dá conta da problemática vivida pela personagem, é que começa a ser ativado e trabalhado nele a reflexão, e então, desconstrói-se aquela primeira imagem, o riso se vai inibindo, e o que antes era só uma advertência do contrário (cômico), passa a se manifestar como sentimento do

contrário. E porque a crônica contrasta comicidade com elementos que enveredam para o trágico, sente-se compaixão da personagem (sentimento esse que sustenta a catarse), e, por isso, deixamos de manifestar um riso alegre, lembrando a tese de Propp e Bergson, isto é: quando a emoção é suscitada, o riso se anula, ou ao menos, nesse caso, se turba.

Tal consideração, desse modo, confirma nossas impressões: o cômico não se opõe ao trágico, mas ambos caminham lado a lado, tanto que a hibridização dos elementos dos dois gêneros resulta em outro, a tragicomédia - modalidade essa já citada mais acima. É importante retomá-la para destacar a confluência das características da comédia e da tragédia, tal como acontece na crônica que estamos analisando, pois nela há tanto a representação de fatos trágicos que inspiram piedade, quanto a representação de fatos inspirados na vida e no sentimento comum, de riso fácil, que critica os costumes e o comportamento humanos.

No caso, a crônica de Veríssimo alude a uma tragicomédia contemporânea, já que, nela, há o registro de situações (trágicas e cômicas) mais relacionadas à realidade diária de todos nós: a morte da mãe, o casamento mal-sucedido da filha, a profissão do genro, o envolvimento do filho com drogas, a fuga da esposa; tudo hiperbolicamente expresso com comicidade contrastante, tendo como mola propulsora a claque do riso e a ausência de Gervásio.

Há, na seqüência do enredo, uma tentativa frustrada de substituir Gervásio, o que revela a importância de seu riso e, principalmente, uma situação incongruente, pois o riso de que necessitam vem justamente de alguém que não tem nenhum motivo para isso. Mas o assistente, movido pela necessidade do riso profissional (riso falso e imposto), insiste para que ele volte:

Desta vez, foi o assistente em pessoa. Encontrou Gervásio no enterro do genro. A filha mais velha de Gervásio caíra fora do telhado na cabeça do marido, quebrando o seu pescoço. Fora um acidente, mas a família do marido prometera vingança. Queria uma indenização. Gervásio não tinha dinheiro. O que escapara do incêndio a mulher levara. E ainda por cima o filho foragido de Gervásio aparecera no enterro, arriscando-se a ser baleado de três lados. O assistente teve dificuldade em prender a atenção de Gervásio, que olhava nervosamente para todos os lados.

- Você tem que voltar, Gervásio. Surgiu uma briga [...]

- Você é indispensável, Gervásio[...]. (VERÍSSIMO, 1987, p.53).

No excerto acima, o efeito risível se dá pelo encadeamento de cenas trágicas apresentadas ao leitor em flashes de imagens, ora focando o assistente, que pede

para Gervásio voltar, ora os acontecimentos trágicos que ocorrem simultaneamente à oferta de trabalho.

É interessante destacar ainda que os acontecimentos trágicos se desenvolvem numa espécie de efeito dominó, numa reação em cadeia de novos eventos desastrosos ao longo da narrativa, mostrando vários momentos tensivos da história. No entanto, são todos esses eventos que fazem a personagem voltar para a claque, mas exigindo um salário maior, visto que necessitava dele para que a situação de sua família não se agravasse ainda mais:

Combinaram que, por um aumento de salário, Gervásio voltaria para a claque. Precisava de dinheiro para sustentar a filha viúva, subornar os policiais que caçavam o seu filho e pagar o enterro do genro. Mas a mulher o esperava na saída do estúdio e levava todo o dinheiro. Gervásio pedia mais dinheiro. A verba para a claque era limitada, mas o Gervásio valia tudo que pedisse. (VERÍSSIMO, 1987, p.54).

Ao final, quando Gervásio volta a trabalhar na claque, solta um riso desenfreado e, mormente, desesperado, o riso imposto, evidente, sobretudo, no título da crônica Ri, Gervásio, em que o imperativo do verbo rir destaca a ação como obrigação e não como prazer. O riso, no caso, pode ser considerado ainda uma “válvula de escape”, uma fuga do real, um momento de breve alienação, uma vez que enfrentar a situação real seria demasiadamente doloroso, desesperador. Tal possibilidade de análise nos permite tomar, da tradição antiga, uma premissa presente na consideração feita pelo filósofo Demócrito a Hipócrates, segundo a qual o riso era o melhor antídoto contra a melancolia, ou na frase de Rabelais, inscrita no prólogo de seu livro Gargantua, que diz que não há como o riso para espantar o luto: “Vendo o luto que vos mina e consome/É melhor de risos que de lágrimas escrever/Pois rir é próprio do homem”. (apud ROUANET, 2007). O último riso de Gervásio funciona, aqui, como uma reação a toda tristeza, ou até mesmo à sua própria loucura, frente aos infortúnios de uma vida sem sorte.

Ainda, é necessário que se atente para a indiferença dos funcionários da claque, que tinham como único interesse os efeitos do riso contagiante, que só Gervásio era capaz de manifestar, e que garantiam o sucesso da claque:

Segundo a Amelita, estava rindo como nunca na sua carreira. Um riso, aberto, contagiante. O produtor estava satisfeito. - Isso é que é risada! E o Gervásio ria, ria de bater o pé. Um profissional, murmurava a Amelita. Um verdadeiro profissional. (VERÍSSIMO, 1987, p.54).

Todo o processo destinado a despertar a emotividade do leitor, que tem a vida dramática de Gervásio como motivação, enseja uma análise crítica sobre a nossa própria vida, e especialmente, sobre o significado da existência humana a ponto de suscitar questionamentos filosóficos em torno do pragmatismo, que congela as relações humanas, mecaniza e estanca a sensibilidade do homem. Enfim, a crônica lembra-nos que a alegria e a tristeza são faces complementares do mesmo rosto; mantendo-se, desse modo, uma relação dialética.

Documentos relacionados